Oremus et pro iudaeis: a nova aliança e os judeus

Nos tempos atuais existe uma grande confusão a respeito da Antiga Aliança e o caráter salvífico do judaísmo pós-cristão. Sem dúvida essa dificuldade no conhecimento de uma ótica ortodoxa, pautada nos perenes ensinos da Igreja, é devido a má vontade de religiosos que preterem a Tradição, o Magistério e a interpretação correta da Sagrada Escritura por opiniões pessoais, tendências teológicas particulares, e uma hermenêutica obtusa de documentos eclesiásticos.

O Catecismo da Igreja diz que “Ao invés das outras religiões não cristãs, a fé judaica é já uma resposta à Revelação de Deus na Antiga Aliança”, assim como repete uma antiga máxima crist㠓Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet (o Novo Testamento está escondido no Antigo, ao passo que o Antigo é desvendado no Novo)”, como interpretar tais afirmações à luz da Tradição? A Igreja realmente assegura que a Antiga Aliança é válida, mas se guiando na perenidade do Antigo Testamento, dos ensinamentos ali contidos e revelados por Deus através dos Profetas. Ademais, a religião judaica tem em sua continuidade a Igreja Católica, que passou a exercer o papel que o judaísmo tinha antes da Encarnação. O Catecismo ensina que “§69 Deus revelou-se ao homem, comunicando-lhe gradualmente seu próprio Mistério por meio de ações e de palavras.”, ou seja, a revelação retilínea do Antigo Testamento desaguou naturalmente no cristianismo, fruto das vontades do Pai, da encarnação do Verbo, na plenitude dos Tempos, já que o “O Filho é a Palavra definitiva do Pai”. A novidade em caracterizar a Antiga Aliança como perene e completa nos tempos de Cristo é um erro de grandes conseqüências. Existe a impressão de que a revelação de Deus no Antigo Testamento se sustenta sem o Verbo. Ora, Cristo é o Filho Unigênito, e desde o momento em que o Senhor agiu junto a Abraão, a Encarnação da Palavra e a consumação da revelação na Nova e Eterna Aliança estava traçada.

Na vanguarda dessa novidade doutrinal se encontra Franz Mussner, um teólogo alemão que escreveu um livro chamado “Tratado sobre os Judeus”, onde entre outras coisas afirma que o judaísmo é meio de salvação e que a Igreja não é a Nova Israel, que é a “extensão do povo de Deus, que junto com Israel forma o único povo de Deus”. E nessa Israel inclui obviamente os judeus que rejeitaram Cristo, que para ele são salvos por um “caminho especial”. Diz que a Igreja e a sinagoga tem “tarefas e objetivos em comum” que poderão ajudar na “shalomitização do mundo”. Ainda afirma que era o tempo dos cristãos trocarem os tratados dos tempos medievais e patrísticos contra os judeus, por um tratado para os judeus. Claro que tudo isso é embebido em interpretações pessoais da Sagrada Escritura, e desvencilhamento dos ensinamentos da Igreja.

Quando Mussner afirma que “Atrás deste livro (Tratado sobre os judeus) está um processo de aprendizagem de muitos anos, uma verdadeira mudança de mentalidade”, ele esquece que essa transformação não modifica apenas uma forma de pensar, mas ataca de forma violenta a Tradição da Igreja e seu Magistério. Teólogos da mesma linha afirmam que a Igreja não substituiu Israel, mas passou a compartilhar dos seus privilégios. Concluem então, que existe a Nova Israel e a Velha Israel, a Antiga Aliança e a Nova Aliança, e mesmo a Nova Aliança completando o que se iniciou na Antiga Aliança, com a Plenitude dos Tempos na Encarnação do Verbo, dizem que a Antiga Aliança e a Velha Israel continuaram com o mesmo grau de comunhão com Deus, mesmo depois do fim da Revelação. Nesse pensamento a Nova Israel não é vista como desenvolvimento da mesma religião, Igreja hebraica, que com a vinda do Verbo originou a Igreja de Cristo, mas como distinta da Velha Israel.

Eles esquecem do fato de que Israel é uma prefigura da Igreja. Desde o Logos, Jesus Cristo, que tinha com Deus desde a Criação, a Igreja teve a sua origem na mente divina, e foi revelada pelas ações de Cristo uma vez Encarnado. Primeiro, Deus criou Israel pela Sua promessa feita pelos anjos na tenda, e logo confirmada a Abraão em Moriá, no sacrifico de Isaque. Deus primeiro revelou a Israel, onde Ele criou pela Sua promessa a Abraão. Então, na plenitude dos tempos, Ele revelou a Igreja. E de acordo com os Padres, a Nova Aliança foi renovada, e fora da Igreja, a Nova Israel e continuação da religião hebraica, nenhuma aliança passou a existir. São João Crisóstomo diversas vezes usou o termo “Arca de Noé” como referência à Igreja.

No Sermão 4 de Santo Agostinho ele diz; “Agora por Igreja, irmãos, vocês devem entender não só aqueles que começaram a ser santos depois do Advento do Senhor e natividade, mas todos que foram santos pertencem a mesma Igreja. Você não pode dizer que o nosso o pai Abraão não nos pertence, somente porque ele viveu antes de Cristo ser carregado pela Virgem. ”

Karl Rahner e J. N. D. Kelly atestam respectivamente; “A Igreja está consciente que vive em continuidade com Israel, cuja história foi interpretada
na luz do evento central da…..morte e ressurreição de Jesus Cristo.” Encyclopedia of Theology. p.217, “A Igreja é considerada como a nova, a autêntica Israel, que herdou as promessas que Deus fez a Velha.” Christian Doctrines, p.190

A imagem de Moisés com um véu por cima de seu rosto quando ele volta do Sinai é uma alegoria do véu suspenso sobre o Antigo Testamento. Ele contém verdades veladas que não podem ser apreciadas sem conhecimento de Cristo. “Enquanto Moisés era lido, o véu estava sob seu coração? Pois o véu não foi removido, porque Cristo ainda não veio” (Tratado de Agostinho 24,5 em João)

Quando o Evangelho de São Mateus versa que o véu do Templo se rasgou em dois após a morte de Jesus, isso pareceu, para alguns leitores patrísticos, significar que a obscuridade acerca do verdadeiro sentido do Antigo Testamento foi removida. “A Escritura era fechada? Ninguém a entendeu? O Senhor foi crucificado, e Escritura se derreteu como cera, para que assim todos os fracos pudessem entendê-la” (Augustine Enerr in Psalmos 21, II, 15)

Tertuliano também ensinou; “E, de fato, primeiro devemos perguntar se é esperado um Doador da Nova Lei, e um herdeiro do Novo Testamento, e um sacerdote dos novos sacrifícios, e um purificador da nova circuncisão, e um observador do sábado eterno, para suprimir a Velha Lei, e instituir o Novo Testamento, e ofertar os novos sacrifícios, e reprimir as cerimônias antigas, e suprimir a velha circuncisão em conjunto com o próprio sábado, e anunciar o novo reino que não é corruptível.

Digo, se o Doador da nova lei, o observador do sábado espiritual, o sacerdote dos sacrifícios eternos, o eterno soberano do eterno reino, já veio ou não: isto é, se ele já veio, o serviço deveria ser dado a ele; se ele ainda não veio, ele deveria ser esperado, e pelo seu advento onde será manifesto, os preceitos da velha Lei serão suprimidos, e o começo da nova lei deve surgir. E, principalmente, temos que deixar a opinião de que, com a Sua vinda, a lei antiga e os profetas não podiam ter cessado, aquele que foi constantemente anunciado através da mesma Lei e dos mesmos profetas, para vir.

(…)

Portanto, já que as propiciações da primeira aliança eram obscurecidas por figuras secundárias, e contaminadas de toda desonra, a segunda (que fora profetizada) manifestou a dignidade de Deus, e resultou como conseqüência a obrigação de acreditarmos e entendermos que a primeira (isto é, a segunda em honra e glória) foi desmerecida com ainda mais obscuridade – todos os seus acontecimentos feitos ainda mais indignos – por causa da primeira em honra e glória. E então até o presente momento eles afirmam que Cristo não veio, pois Ele não veio em majestade, enquanto são ignorantes do fato d’Ele ter vindo primeiro em humildade.”

Na carta de Teodoreto aos Monges de Eufratensian, Orshoene, Síria, Fenícia e Silícia, ele diz; “Ó Senhor, não conhecemos nada além de Ti. Clamamos pelo Teu nome, ‘Faça-nos unos e inquebráveis dentre a parede de divisão’, chamada de iniqüidade que tem aumentado. Reúna-nos um a um, a Tua Nova Israel, construindo a Jerusalém e reunindo os renegados de Israel. Faça-nos cada vez mais Teu rebanho alimentado por Ti: pois Tu és o Bom Pastor ‘que dá a vida pelo rebanho’. Despertai, porque dormes Senhor, levanta-se, não nos abandone para sempre. Apascente os ventos e mar, dê a Tua Igreja tranqüilidade e segurança das ondas.”

Recordando que essa teoria, ao sustentar a Velha Israel e a Antiga Aliança com funções perenes e eternas, mesmo fora de Cristo, fornece validade aos sacramentos da antiga Lei, beirando a uma equiparação com os sacramentos da Nova e Eterna Aliança, idéia essa já condenada pelo Concílio de Trento: “Se alguém disser que estes sacramentos da nova lei, não são diferentes da lei antiga, senão nos ritos cerimoniais externos, seja excomungado” (D 845). É claro que no conteúdo patrístico, doutrinário, Tradicional, não há nada, nenhuma possibilidade da aliança com os judeus ter continuado e persistido fora da Igreja de Cristo.

Tamanhas invencionices se sustentam na má compreensão do fato de que a religião de Deus é una, e sua origem é uma evolução em consonância com a Revelação. Assim como na Antiga Aliança era o judaísmo o herdeiro das promessas do Pai, com a importância em preparar a comunidade para a chegada do Messias, com a plenitude dos tempos, a realização das profecias, a Encarnação do Verbo, naturalmente do judaísmo floresceu o cristianismo, que sustentado no Antigo e Novo Testamento, vivia e gozava da graça de seguir a totalidade da revelação do Senhor. Os judeus que aderiram a Cristo continuaram na promessa, os que repudiaram saíram dela, e o fato de persistirem na Antiga Aliança não caracterizava certeza alguma. O Antigo Testamento foi revelado preparando os homens para a encarnação da Palavra (“Pelos profetas preparou este povo a acolher a salvação destinada à humanidade inteira.”), e com a consumação desta (“Cristo Senhor, em quem se consuma a revelação do Sumo Deus”), o seu seguimento sem a luz da plenitude tornou-se inócuo, porque “Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4), isto é, de Jesus Cristo.”

O Servo de Deus João Paulo II numa alocução à comunidade judaica de Mainz, na Alemanha, disse que a Antiga Aliança nunca tinha sido “revogada por Deus”, mas numa audiência em 1999 o próprio Santo Padre esclareceu essa questão, que infelizmente foi interpretada como a abertura para um relativismo religioso. O Pontífice Romano ao repetir essa afirmação, continuou: “embora este adquira o seu sentido pleno à luz do Novo Testamento e contenha promessas que se cumprem em Jesus.”

Ademais, no passado os judeus viviam as revelações dos Profetas preparando-se para a chegada do Messias, enquanto hoje, a Esposa de Cristo zela pela plenitude do conteúdo dado por Deus aos homens, em sua totalidade, tanto o Antigo Testamento quanto o Novo Testamento e a herança deixada por Nosso Senhor.

O Concílio de Florença ensinou que; “A sacrossanta Igreja Romana … crê firmemente, professa, e ensina que a matéria pertencente ao Velho Testamento, da Lei Mosaica, dividida em cerimônias, ritos sagrados, sacrifícios e sacramentos, porque foram estabelecidos para significar algo no futuro, embora fossem adequados ao culto divino naquele tempo, depois da vinda de Nosso Senhor, que eles significavam, cessaram, e os sacramentos do Novo Testamento começaram; … Todos aqueles, portanto, que a partir desta altura observam a circuncisão e o dia de Sábado e as demais obrigações da lei, [a Igreja Romana] declara-os afastados da Fé Cristã e de modo algum capazes de participar na salvação eterna, a não ser que um dia abandonem estes erros.” (D.S. 1348) Ora, como entender a atual visão de certos religiosos relativistas com a compreensão que a Igreja sempre teve e tem de si mesma? Como encaixar tamanhas novidades teológicas com a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição? Sem dúvida é através da interpretação da ruptura do Vaticano II que tentam endossar suas novas teorias. Dessa forma, eles chegam a uma conclusão infantil ao acreditar que a Igreja até 1964 considerava os judeus fora da Aliança com Deus, e que ao final do Concílio, em 1965, os judeus já gozavam da comunhão com o Pai, não necessitando de contrição e conversão. Ora, nem se Cristo aparecesse em pleno Vaticano II os Padres Conciliares modificariam com tanta radicalidade a doutrina da Igreja. Transformar um ponto tão importante da nossa fé, afinal envolve a plenitude dos tempos e a consolidação da Nova e Eterna Aliança, seria atacar a Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério, os séculos de vivência no depósito da fé.

A tentativa de modificar essa compreensão que a Igreja sempre teve a respeito da Revelação, sustentada nas heranças deixadas por Nosso Senhor, de tão radical não encontra aparato nos ensinamentos da Esposa de Cristo. Para tanto, se baseiam em interpretações erradas de pronunciamentos papais e conciliares, assim como uma compreensão pessoal da Tradição e da Bíblia. Considerar que tais religiosos estão certos, é afirmar que a Igreja errou durante mais de mil anos ao afirmar o contrário, conseqüentemente, ao considerar essa possibilidade de defectibilidade, estamos dizendo que o Depósito da Fé foi mal utilizado pelo Magistério. Isso sem levar em consideração os graves problemas teológicos causados por estas afirmações

Quem coloca tanto coisa em risco para endossar tamanhos erros doutrinários?

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