“Orientale lumen” (João Paulo II: 02.05.1995)

Carta Apostólica
ORIENTALE LUMEN
no Centenário da “Orientalium Dignitas” do Papa Leão XIII.

Ao Episcopado, ao Clero e aos fiéis

Veneráveis Irmãos
Caríssimos Filhos e Filhas da Igreja

1. A LUZ DO ORIENTE iluminou a Igreja Universal, a partir do momento em que sobre nós apareceu «a luz do alto» (Lc 1, 78), Jesus Cristo nosso Senhor, que todos os cristãos invocam como Redentor do homem e esperança do mundo.

Aquela luz inspirara ao meu Predecessor o Papa Leão XIII a Carta Apostólica Orientalium dignitas, com a qual ele quis defender o significado das tradições orientais para a Igreja inteira (1).

Ocorrendo o centenário daquele acontecimento e das iniciativas concomitantes, com as quais esse Pontífice pretendia favorecer a recomposição da unidade com todos os cristãos do Oriente, quis eu que um apelo semelhante, enriquecido por tantas experiências de conhecimento e de encontro que se realizaram neste último século, fosse dirigido à Igreja Católica.

Visto que, de facto, acreditamos que a veneranda e antiga tradição das Igrejas Orientais é parte integrante do património da Igreja de Cristo, a primeira necessidade para os católicos é conhecê-la para se poderem nutrir dela e, na maneira possível a cada um, favorecer o processo da unidade.

Os nossos irmãos orientais católicos têm viva consciência de que são os portadores, juntamente com os irmãos ortodoxos, desta tradição. É necessário que também os filhos da Igreja Católica de tradição latina possam conhecer em plenitude este tesouro e sentir assim, juntamente com o Papa, a paixão por que seja restituída à Igreja e ao mundo a manifestação plena da catolicidade da Igreja, que não se exprime apenas por uma única tradição, nem tampouco por uma comunidade contra a outra; e para que também a todos nós seja concedido saborear plenamente aquele património divinamente revelado e indiviso da Igreja universal (2), que se conserva e cresce na vida tanto das Igrejas do Oriente como das do Ocidente.

2. O meu olhar dirige-se para a Orientale lumen que resplandece de Jerusalém (cf. Is 60, 1; Ap 21, 10), a cidade na qual o Verbo de Deus, feito homem para a nossa salvação, hebreu «nascido da descendência de David» (Rm 1, 3; 2 Tm 2, 8), morreu e ressuscitou. Naquela cidade santa, quando chegou o dia de Pentecostes e «se encontravam todos reunidos no mesmo lugar» (Act 2, 13), o Espírito Paráclito foi enviado sobre Maria e os discípulos. De lá, a Boa Nova foi irradiada pelo mundo, porque, cheios do Espírito Santo, «anunciavam a Palavra de Deus com desassombro» (Act 4, 31). De lá, da mãe de todas as Igrejas (3), o Evangelho foi pregado a todas as nações, muitas das quais se gloriam de ter tido num dos apóstolos a primeira testemunha do Senhor (4). Naquela cidade, as mais variadas culturas e tradições encontraram hospitalidade no nome do único Deus (cf. Act 2, 9-11). Dirigindo-nos a ela com saudade e gratidão, encontramos a força e o entusiasmo para intensificar a procura da harmonia naquela autenticidade e pluriformidade que permanece o ideal da Igreja (5).

3. Um Papa, filho de um povo eslavo, sente particularmente no coração o apelo daqueles povos aos quais se dirigiram os dois santos irmãos Cirilo e Metódio, exemplo glorioso de apóstolos da unidade, que souberam anunciar Cristo na procura da comunhão entre Oriente e Ocidente, embora no meio das dificuldades que já, por vezes, contrapunham os dois mundos. Várias vezes me detive sobre o exemplo das suas acções (6), dirigindo-me também a todos aqueles que são seus filhos na fé e na cultura.

Estas considerações desejam agora alargar-se para abraçar todas as Igrejas Orientais, na variedade das suas diferentes tradições. Aos irmãos das Igrejas do Oriente vai o meu pensamento, com o desejo de procurarmos juntos a força de uma resposta às interrogações que o homem, hoje, lança em todas as latitudes do mundo. Ao seu património de fé e de vida quero dirigir-me, consciente de que o caminho da unidade não pode conhecer hesitações, mas é irreversível como o apelo do Senhor à unidade. «Caríssimos, temos esta tarefa comum: devemos dizer juntos, o Oriente com o Ocidente: Ne evacuetur Crux! (cf. 1 Cor 1, 17). Não se desvirtue a Cruz de Cristo, porque, se se desvirtua a Cruz de Cristo, o homem perde as raízes, já não tem perspectivas: destrói-se! Este é o grito no final do século XX. É o grito de Roma, o grito de Constantinopla, o grito de Moscovo. É o brado de toda a cristandade: das Américas, da África, da Ásia, de todos. É o grito da nova evangelização» (7).

Às Igrejas do Oriente dirige-se o meu pensamento, como numerosos outros Papas o fizeram no passado, sentindo dirigido, antes de mais, a si mesmos o mandato de manter a unidade da Igreja e de procurar incansavelmente a união dos cristãos onde tivesse sido dilacerada. Um laço particularmente estreito já nos une. Temos em comum quase tudo (8); e sobretudo temos em comum o anelo sincero da unidade.

4. A todas as Igrejas, do Oriente e do Ocidente, chega o grito dos homens de hoje que pedem um sentido para a vida. Nele divisamos a invocação de quem procura o Pai esquecido e perdido (cf. Lc 15, 18-20; Jo 14, 8). As mulheres e os homens de hoje pedem-nos que lhes indiquemos Cristo, que conhece o Pai e no-Lo revelou (cf. Jo 8, 55; 14, 8-11). Deixando-nos interpelar pelas perguntas do mundo, ouvindo-as com humildade e ternura, em plena solidariedade com quem as formula, nós somos chamados a mostrar com palavras e gestos de hoje as imensas riquezas que as nossas igrejas conservam nos cofres das suas tradições. Aprendamos do próprio Senhor que, ao longo do caminho, parava no meio da gente, escutava-a, comovia-Se quando a via «como ovelhas sem pastor» (Mt 9, 36; cf. Mc 6, 34). D’Ele devemos aprender aquele olhar de amor com o qual reconciliava os homens com o Pai e consigo próprios, comunicando-lhes aquela força que é a única que pode sarar o homem todo.

Perante este apelo, as Igrejas do Oriente e do Ocidente são chamadas a concentrar-se sobre o essencial: «Não podemos apresentar-nos diante de Cristo, Senhor da História, tão divididos como infelizmente nos temos encontrado ao longo do segundo milénio. Estas divisões devem ceder o lugar à reaproximação e à concórdia; devem ser cicatrizadas as feridas no caminho da unidade dos cristãos» (9).

Para além das nossas fragilidades, devemos dirigir-nos a Ele, único Mestre, participando na sua morte, de maneira e purificar-nos daquele apego cioso aos sentimentos e às recordações, não das grandes coisas que Deus fez por nós, mas das vicissitudes humanas de um passado que ainda pesa muitíssimo sobre os nossos corações. Que o Espírito Santo torne límpido o nosso olhar, para que juntos possamos ir ao encontro do homem contemporâneo, que espera a boa nova. Se, perante os anseios e os sofrimentos do mundo, dermos uma resposta concorde, iluminante, vivificadora, contribuiremos verdadeiramente para um anúncio mais eficaz do Evangelho no meio dos homens do nosso tempo.

I – CONHECER O ORIENTE CRISTÃO, UMA EXPERIÊNCIA DE FÉ

5. «No estudo da verdade revelada, o Oriente e o Ocidente usaram métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. Não admira, por isso, que alguns aspectos do mistério revelado sejam por vezes apreendidos mais convenientemente e postos em melhor luz por um que por outro. Nestes casos, deve dizer-se que aquelas várias fórmulas teológicas, em vez de se oporem, não poucas vezes se completam mutuamente» (10).

Tendo no coração as perguntas, as aspirações e as experiências a que fiz referência, a minha mente dirige-se ao património cristão do Oriente. Não é minha intenção descrevê-lo nem interpretá-lo: coloco-me em atitude de escuta das Igrejas do Oriente, sabendo que são intérpretes vivas do tesouro tradicional que guardam. Contemplando-o, vejo aparecer elementos de grande significado para uma compreensão mais plena e integral da experiência cristã, e, portanto, para dar uma resposta cristã mais completa aos anseios dos homens e das mulheres de hoje. Em relação a qualquer outra cultura, o Oriente cristão tem, de facto, um papel único e privilegiado enquanto contexto original da Igreja nascente.

A tradição oriental cristã implica certa maneira de acolher, compreender e viver a fé no Senhor Jesus. Nesse sentido, ela está muitíssimo perto da tradição cristã do Ocidente, que nasce e se alimenta da mesma fé. E, contudo, diferencia-se legítima e admiravelmente, enquanto o cristão oriental tem uma forma própria de sentir e compreender, e, portanto, também uma forma original de viver a sua relação com o Salvador. Quero, aqui, abeirar-me com temor e tremor do acto de adoração que exprimem estas Igrejas, mais do que assinalar este ou aquele ponto teológico específico, que emergiu ao longo dos séculos em contraposição polémica no debate entre Ocidentais e Orientais.

O Oriente cristão, desde as suas origens, mostra-se multiforme no próprio interior, capaz de assumir os traços característicos de cada cultura individual, e com um respeito máximo por cada comunidade particular. Não podemos deixar de agradecer a Deus, com profunda comoção, a admirável variedade com que permitiu a composição, com tesselas diferentes, de um mosaico tão rico e variegado.

6. Existem alguns traços da tradição espiritual e teológica, comuns às várias Igrejas do Oriente, que distinguem a sua sensibilidade, em relação às formas assumidas pela transmissão do Evangelho, nas terras do Ocidente. O Concílio Vaticano II sintetiza-as da seguinte maneira: «é conhecido de todos com quanto amor os cristãos orientais realizam as cerimónias litúrgicas, principalmente a celebração eucarística, fonte da vida da Igreja e penhor da glória futura, pela qual os fiéis unidos ao bispo, tendo acesso a Deus Pai mediante o Filho, o Verbo encarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, conseguem a comunhão com a Santíssima Trindade, feitos “participantes da natureza divina” (2 Ped 1, 4)» (11).

Nestes traços, delineia-se a visão oriental do cristão, cujo fim é a participação na natureza divina, mediante a comunhão no mistério da Santíssima Trindade. Ali se delineiam a «monarquia» do Pai e a concepção da salvação segundo a economia que apresenta a teologia oriental na linha de Santo Ireneu de Lião e como se espelha nos Padres Capadócios (12).

A participação na vida trinitária realiza-se através da liturgia e, de maneira particular, através da Eucaristia, mistério de comunhão com o corpo glorificado de Cristo, semente de imortalidade (13). Na divinização e sobretudo nos sacramentos, a teologia oriental atribui um papel muito particular ao Espírito Santo: pela força do Espírito que habita no homem, a deificação inicia-se já na Terra, a criatura é transfigurada, e o Reino de Deus inaugurado.

O ensinamento dos Padres Capadócios sobre a divinização entrou na tradição de todas as Igrejas Orientais e constitui parte do seu património comum. Isto pode-se resumir no pensamento já expresso por Santo Ireneu, em finais do século II: Deus fez-Se filho do homem, para que o homem pudesse ser filho de Deus (14). Esta teologia da divinização permanece uma das aquisições particularmente queridas do pensamento cristão oriental (15).

Neste caminho de divinização, precedem-nos aqueles que a graça e o empenho no caminho do bem tornaram «muito semelhantes» a Cristo: os mártires e os santos (16). E, entre estes, ocupa um lugar muito particular a Santíssima Virgem Maria, da qual germinou o Rebento de Jessé (cf. Is 11, 1). A sua figura aparece não só como a Mãe que nos espera, mas também como a Puríssima que — realização de tantas prefigurações do Antigo Testamento — é ícone da Igreja, símbolo e antecipação da humanidade transfigurada pela graça, modelo e esperança segura para todos aqueles que dirigem os seus passos para a Jerusalém do Céu (17).

Embora acentuando fortemente o realismo trinitário e a sua implicação na vida sacramental, o Oriente associa a fé na unidade da natureza divina à incognoscibilidade da essência divina. Os Padres Orientais afirmam sempre que é impossível saber o que é que Deus é; pode saber-se apenas que Ele é, pois que Se revelou na história da salvação como Pai, Filho e Espírito Santo (18).

Este sentido da inefável realidade divina reflecte-se na celebração litúrgica, onde o sentido do mistério é apreendido tão fortemente por todos os fiéis do Oriente cristão.

«No Oriente, encontram-se as riquezas daquelas tradições espirituais que o monaquismo, sobretudo, expressou. Pois, desde os gloriosos tempos dos Santos Padres, floresceu no Oriente aquela elevada espiritualidade monástica, que de lá se difundiu para o Ocidente e da qual a vida religiosa dos Latinos se originou como de sua fonte, e em seguida, sem cessar, recebeu novo vigor. Recomenda-se, por isso, vivamente que os católicos se abeirem com mais frequência destas riquezas espirituais dos Padres do Oriente, que elevam o homem todo à contemplação das coisas divinas» (19).

Evangelho, Igrejas e culturas

7. Já outras vezes pus em evidência que um primeiro grande valor vivido particularmente no Oriente cristão consiste na atenção aos povos e às suas culturas, para que a Palavra de Deus e o seu louvor possam ressoar em todas as línguas. Sobre este tema, já me detive na carta encíclica Slavorum Apostoli, pondo em relevo que Cirilo e Metódio «quiseram tornar-se semelhantes, sob todos os aspectos, àqueles a quem levavam o Evangelho; procuraram integrar-se naqueles povos e compartilhar em tudo a sua sorte» (20); «tratava-se de um novo método de catequese» (21). Agindo assim, eles manifestaram uma atitude muito difundida no Oriente cristão: «Ao encarnarem o Evangelho na cultura peculiar dos povos que evangelizavam, os Santos Cirilo e Metódio tiveram méritos particulares na formação e no desenvolvimento dessa mesma cultura, ou, melhor dito, de numerosas culturas» (22). O respeito e consideração pelas culturas particulares unem-se neles à paixão pela universalidade da Igreja, que incansavelmente se esforçam por realizar. A atitude dos dois irmãos de Salonica é representativa, na antiguidade cristã, de um estilo típico de muitas Igrejas: a revelação anuncia-se adequadamente e torna-se plenamente compreensível quando Cristo fala a língua dos vários povos, e estes podem ler a Escritura e cantar a Liturgia na respectiva língua e com as suas expressões características, como que a renovar os prodígios do Pentecostes.

Numa época em que se reconhece ser cada vez mais fundamental o direito de cada povo se exprimir segundo o próprio património de cultura e de pensamento, a experiência das várias Igrejas do Oriente apresenta-se-nos como um exemplo autorizado de inculturação bem sucedida.

A partir deste modelo, aprendemos que, se queremos evitar o renascimento de particularismos e também de nacionalismos exacerbados, devemos compreender que o anúncio do Evangelho deve ser, ao mesmo tempo, profundamente enraizado na especificidade das culturas e aberto para confluir numa universalidade, que é permuta para o enriquecimento comum.

Entre memória e expectativa

8. Hoje, muitas vezes, sentimo-nos prisioneiros do presente: é como se o homem tivesse perdido a percepção de fazer parte de uma história que o precede e o segue. A esta dificuldade de situar-se entre passado e futuro, com espírito grato pelos benefícios recebidos e pelos esperados, as Igrejas do Oriente, em particular, oferecem um acentuado sentido da continuidade, que assume os nomes de Tradição e de expectativa escatológica.

A Tradição é património da Igreja de Cristo, memória viva do Ressuscitado, encontrado e testemunhado pelos Apóstolos, que transmitiram a sua recordação viva aos sucessores, numa linha ininterrupta que é garantida pela sucessão apostólica, através da imposição das mãos, até aos Bispos de hoje. A Tradição articula-se no património histórico e cultural de cada Igreja, nela plasmado pelo testemunho dos Mártires, dos Padres e dos Santos, bem como pela fé viva de todos os cristãos, ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Não se trata de uma repetição rígida de fórmulas, mas de um património que guarda o núcleo querigmático vivo e original. É a Tradição que livra a Igreja do perigo de recolher apenas opiniões mutáveis, e garante a sua certeza e continuidade.

Quando os usos e costumes próprios de cada Igreja são entendidos como pura imobilidade, certamente corre-se o risco de tirar à Tradição aquele carácter de realidade viva, que cresce e se desenvolve, e que o Espírito lhe garante precisamente para que ela fale aos homens de todos os tempos. E como a Escritura cresce com quem a lê (23), assim qualquer outro elemento do património vivo da Igreja cresce na compreensão dos crentes e enriquece-se de contributos novos, na fidelidade e na continuidade (24). Somente uma zeloza assimilação, na obediência da fé, daquilo que a Igreja chama «Tradição», permitirá a esta encarnar-se nas diferentes situações e condições histórico-culturais (25). A Tradição não é jamais pura nostalgia de coisas ou formas passadas, ou lamento de privilégios perdidos, mas memória viva da Esposa mantida eternamente jovem pelo amor que nela habita.

Se a Tradição nos coloca em continuidade com o passado, a expectativa escatológica abre-nos ao futuro de Deus. Cada Igreja deve lutar contra a tentação de absolutizar aquilo que faz e, portanto, de autocelebrar-se ou de abandonar-se à tristeza. O tempo é de Deus, e tudo aquilo que se realiza nunca se identifica com a plenitude do Reino, que é sempre dom gratuito. O Senhor Jesus veio morrer por nós e ressuscitou dos mortos, enquanto a criação, salva na esperança, sofre ainda as dores de parto (cf. Rm 8, 22); o mesmo Senhor voltará para entregar o cosmos ao Pai (cf. 1 Cor 15, 28). A Igreja invoca este retorno, e dele são testemunhas privilegiadas o monge e o religioso.

O Oriente exprime de maneira viva as realidades da tradição e da expectativa. Toda a sua liturgia, em particular, é memorial da salvação e invocação do retorno do Senhor. E, se a Tradição ensina às Igrejas a fidelidade àquilo que as gerou, a expectativa escatológica leva-as a serem aquilo que ainda não são em plenitude e em que o Senhor deseja que se tornem, e a procurarem, portanto, sempre novos caminhos de fidelidade, vencendo o pessimismo porque projectadas para a esperança de Deus que não desilude.

Devemos mostrar aos homens a beleza do memorial, a força que nos vem do Espírito e que nos torna testemunhas porque somos filhos de testemunhas; fazer-lhes saborear as coisas maravilhosas que o Espírito disseminou na História; mostrar que é precisamente a Tradição que as conserva, dando, assim, esperança àqueles que, não tendo visto coroados de êxito os seus esforços de bem, sabem que outros os levarão a cabo; então o homem sentir-se-á menos só, menos fechado no canto estreito das suas acções individuais.

O monaquismo como paradigma de vida baptismal

9. Desejaria agora olhar para o vasto panorama do cristianismo do Oriente, a partir de uma altitude particular, que permite distinguir muitos dos seus traços: o monaquismo.

No Oriente, o monaquismo conservou uma grande unidade, não conhecendo, como no Ocidente, a formação dos diferentes tipos de vida apostólica. As várias expressões da vida monástica, desde o rígido cenobismo, como o concebiam os santos Pacómio e Basílio, até ao eremitismo mais rigoroso de Santo Antão ou de S. Macário o Egípcio, correspondem mais a fases diferentes do caminho espiritual do que à escolha entre diferentes estados de vida. De facto, todos fazem apelo ao monaquismo em si, qualquer que seja a forma com a qual se exprima.

Além disso, o monaquismo não foi visto no Oriente apenas como uma condição à parte, própria de uma categoria de cristãos, mas particularmente como ponto de referência para todos os baptizados, na medida dos dons oferecidos a cada um pelo Senhor, propondo-se como uma síntese emblemática do cristianismo.

Quando Deus chama de uma forma total como na vida monástica, então a pessoa pode atingir o ponto mais elevado de tudo aquilo que a sensibilidade, cultura e espiritualidade são capazes de exprimir. Isto é válido com maior razão para as Igrejas Orientais, nas quais o monaquismo constituiu uma experiência essencial e que ainda hoje floresce nelas, logo que termina a perseguição e os corações podem elevar-se livremente para os Céus. O mosteiro é o lugar profético no qual a criação se torna louvor de Deus, e o preceito da caridade, vivida concretamente, se torna ideal de convivência humana, e onde o ser humano procura Deus sem barreiras nem impedimentos, tornando-se referência para todos, levando-os no coração e ajudando-os a procurar Deus.

Desejaria recordar também o fulgurante testemunho das monjas no Oriente cristão. Ele representa um modelo de valorização da especificidade feminina na Igreja, forçando mesmo a mentalidade do tempo. Durante recentes perseguições, sobretudo nos países do Leste europeu, quando muitos mosteiros masculinos foram encerrados à força, o monaquismo feminino conservou acesa a chama da vida monástica. O carisma da monja, com as características que lhe são específicas, é um sinal visível daquela maternidade de Deus à qual muitas vezes alude a Sagrada Escritura.

Por isso considerarei o monaquismo, para nele especificar aqueles valores que hoje tenho por muito importantes para exprimir o contributo do Oriente cristão para o caminhar da Igreja de Cristo em direcção ao Reino. Estes aspectos, embora às vezes não sejam exclusivos, quer da experiência monástica, quer do património do Oriente, todavia frequentemente adquiriram nele uma conotação particular. De resto, o que procuramos valorizar, não é a exclusividade, mas o enriquecimento recíproco naquilo que o único Espírito suscitou na única Igreja de Cristo.

O monaquismo foi desde sempre a própria alma das Igrejas Orientais: os primeiros monges cristãos nasceram no Oriente e a vida monástica foi parte integrante da lumen oriental transmitida ao Ocidente pelos grandes Padres da Igreja indivisa (26).

Os fortes traços comuns que unem a experiência monástica do Oriente e do Ocidente tornam-na uma ponte admirável de fraternidade, onde a unidade vivida resplandece até mais do que se pode manifestar no diálogo entre as Igrejas.

Entre Palavra e Eucaristia

10. O monaquismo revela de maneira particular que a vida está suspensa entre dois vértices: a Palavra e a Eucaristia. Isto significa que ele é sempre, inclusive nas suas formas eremíticas, resposta pessoal a uma chamada individual e simultaneamente acontecimento eclesial e comunitário.

A palavra de Deus é o ponto de partida do monge: uma Palavra que chama, que convida, que pessoalmente interpela, como aconteceu com os Apóstolos. Quando uma pessoa é atingida pela Palavra, nasce a obediência, isto é, a escuta que muda a vida. Diariamente o monge alimenta-se com o pão da Palavra. Privado dele, é como se estivesse morto, e não tem mais nada para comunicar aos irmãos, porque a Palavra é Cristo com quem é chamado a conformar-se.

Mesmo quando canta com os seus irmãos a oração que santifica o tempo, ele continua a sua assimilação da Palavra. A riquíssima hinografia litúrgica, da qual justamente se sentem orgulhosas todas as Igrejas do Oriente cristão, não é senão a continuação da Palavra lida, compreendida, assimilada e finalmente cantada: aqueles hinos são em grande parte paráfrases sublimes do texto bíblico, filtradas e personalizadas através da experiência do indivíduo e da comunidade.

Perante o abismo da misericórdia divina, ao monge não resta senão proclamar a consciência da própria pobreza radical, que imediatamente se torna invocação e grito de júbilo por uma salvação ainda mais generosa porque inesperada no abismo da própria miséria (27). Eis porque a invocação de perdão e a glorificação de Deus constituem a substância de grande parte da oração litúrgica. O cristão vive imerso no assombro deste paradoxo, o último de uma série infinita, toda ela enobrecida de reconhecimento na linguagem da liturgia: o Imenso torna-se limite; uma Virgem dá à luz; através da morte, Aquele que é a vida vence a morte para sempre; no alto dos Céus, um corpo humano está sentado à direita do Pai.

No apogeu desta experiência orante, está a Eucaristia, o outro vértice ligado indissoluvelmente à Palavra, enquanto lugar no qual a Palavra se faz Carne e Sangue, experiência celeste onde ela volta a ser acontecimento.

Na Eucaristia, manifesta-se a natureza profunda da Igreja, comunidade dos convocados à sinapse para celebrar o dom d’Aquele que é oferente e oferta: eles, participando nos Santos Mistérios, tornam-se «consanguíneos» (28) de Cristo, antecipando a experiência da divinização no laço, já inseparável, que, em Cristo, liga divindade e humanidade.

Mas a Eucaristia é também aquilo que antecipa a pertença de homens e coisas à Jerusalém celeste. Revela assim cabalmente a sua natureza escatológica: como sinal vivo de tal expectativa, o monge continua e leva à plenitude na liturgia a invocação da Igreja, a Esposa que suplica o retorno do Esposo num «maranatha» repetido continuamente, não só com palavras, mas com a existência inteira.

Uma liturgia para o homem inteiro e para o cosmos inteiro

11. Na experiência litúrgica, Cristo Senhor é a luz que ilumina o caminho e desvenda a transparência do cosmos, precisamente como na Escritura. Os acontecimentos do passado encontram em Cristo significado e plenitude, e a criação revela-se por aquilo que é: um conjunto de traços que somente na liturgia encontram a sua perfeição, a sua plena finalidade. Eis o motivo pelo qual a liturgia é o Céu sobre a Terra, e nela o Verbo que assumiu a carne envolve a matéria de uma potencialidade salvífica que se manifesta plenamente nos sacramentos: aqui a criação comunica a cada um o poder que lhe foi conferido por Cristo. Assim o Senhor, imerso no Jordão, transmite às águas um poder que as habilita a serem banho de regeneração baptismal (29).

Neste quadro, a oração litúrgica no Oriente mostra uma grande capacidade de envolver a pessoa humana na sua totalidade: o Mistério é cantado na sublimidade dos seus conteúdos, mas também no calor dos sentimentos que suscita no coração da humanidade que foi salva. Na acção sagrada, também a corporeidade é convidada ao louvor, e a beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada (30), mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes. O tempo prolongado das celebrações, a repetida invocação, tudo exprime um progressivo compenetrar-se da pessoa inteira no mistério celebrado. E a oração da Igreja torna-se, assim, já participação da liturgia celeste, antecipação da bem-aventurança final.

Esta valorização integral da pessoa nos seus componentes racionais e emotivos, no «êxtase» e na imanência, é de grande actualidade, constituindo uma escola admirável para a compreensão do significado das realidades criadas: estas nem são um absoluto, nem um ninho de pecado e de iniquidade. Na liturgia, as coisas manifestam a sua própria natureza de dom, oferecido pelo Criador à humanidade: «Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa» (Gn 1, 31). Se tudo isto está marcado pelo drama do pecado, que torna pesada a matéria e dificulta a sua transparência, ela é redimida na Encarnação e feita plenamente teofórica, isto é, capaz de colocar-nos em relação com o Pai: esta propriedade é sumamente manifestada nos Santos Mistérios, os Sacramentos da Igreja.

O Cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra a sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se ao Senhor Jesus, feito também Ele corpo para a salvação do mundo. Isto não significa uma exaltação absoluta de tudo aquilo que é físico, porque sabemos bem a desordem que o pecado introduziu na harmonia do ser humano. A liturgia revela que o corpo, atravessando o mistério da Cruz, está a caminho da transfiguração, da pneumatização: no monte Tabor, Cristo mostra-o resplandecente, como é desejo do Pai que volte a ser.

E também a realidade cósmica é chamada a dar acção de graças, porque o cosmos inteiro é chamado à recapitulação em Cristo Senhor. Manifesta-se nesta concepção um ensinamento equilibrado e admirável sobre a dignidade, o respeito e a finalidade da criação e do corpo humano em particular. Este, tendo rejeitado igualmente todo o tipo de dualismo e todo o tipo de culto do prazer como fim em si próprio, torna-se lugar luminoso da graça e, portanto, plenamente humano.

A quem procura uma relação de autêntico significado consigo próprio e com o cosmos, tantas vezes ainda desfigurado pelo egoísmo e pela cobiça, a liturgia revela o caminho para o equilíbrio do homem novo e convida ao respeito pela potencialidade eucarística do mundo criado: ele está destinado a ser assumido na Eucaristia do Senhor, na sua Páscoa presente no sacrifício do altar.

Um olhar límpido à descoberta de si próprio

12. Para Cristo, o Homem-Deus, volta-se o olhar do monge: no seu rosto desfigurado, homem da dor, ele já divisa o anúncio profético do rosto transfigurado do Ressuscitado. Ao olhar contemplativo, Cristo revela-Se como às mulheres de Jerusalém, que subiram a contemplar o espectáculo misterioso do Calvário. E assim, formado naquela escola, o olhar do monge habitua-se a contemplar Cristo também nas pregas escondidas da criação e na história dos homens, também ela inserida na sua conformação progressiva ao Cristo total.

O olhar, progressivamente cristificado, aprende desta maneira a separar-se da exterioridade, do turbilhão dos sentidos, isto é, de tudo aquilo que impede ao homem aquela suave disponibilidade a deixar-se agarrar pelo Espírito. Percorrendo este caminho, ele deixa-se reconciliar com Cristo num processo incessante de conversão: na consciência do próprio pecado e do afastamento do Senhor, que se torna contrição do coração, símbolo do próprio baptismo na água salutar das lágrimas; no silêncio e na quietude interior procurada e doada, onde se aprende a fazer bater o coração de harmonia com o ritmo do Espírito, eliminando toda a duplicidade ou ambiguidade. Este tornar-se cada vez mais sóbrio e essencial, mais transparente a si próprio, pode fazê-lo cair no orgulho e na intransigência, se chegar a considerar que isso é fruto do seu esforço ascético. O discernimento espiritual, na purificação contínua, torna-o então humilde e manso, capaz de perceber apenas alguns traços daquela verdade que o sacia, porque é dom do Esposo, somente Ele plenitude de felicidade.

Ao homem que procura o significado da vida, o Oriente oferece esta escola para se conhecer e ser livre, amado por aquele Jesus que disse: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e aliviar-vos-ei» (Mt 11, 28). A quem procura o restabelecimento interior, ele convida a continuar a procurar: se a intenção é recta e o rumo honesto, no fim o rosto do Pai far-se-á reconhecer, pois está impresso nas profundidades do coração humano.

Um pai no Espírito

13. O percurso do monge, em geral, não é traçado unicamente pelo esforço pessoal, mas apoia-se num pai espiritual, a quem se abandona com confiança filial, na certeza de que nele se manifesta a terna e exigente paternidade de Deus. Esta figura dá ao monaquismo oriental uma extraordinária maleabilidade: graças à obra do pai espiritual, o caminho de cada monge é, de facto, fortemente personalizado nos tempos, nos ritmos, na maneira de procurar a Deus. Precisamente porque o pai espiritual é o ponto de ligação e de harmonização, isto permite ao monaquismo a maior variedade de expressões, cenobíticas e eremíticas. Desta maneira, o monaquismo no Oriente pôde ser a realização das expectativas de cada Igreja nos diferentes períodos da sua história (31).

Nesta procura, o Oriente ensina de maneira particular que existem irmãos e irmãs a quem o Espírito dispensou o dom de guia espiritual: eles são pontos de referência preciosos, porque vêem com o olhar de amor que Deus mantém sobre nós. Não se trata de renunciar à própria liberdade, para se deixar governar por outros: trata-se de tirar proveito do conhecimento do coração, que é um verdadeiro carisma, para ser ajudado, com doçura e firmeza, a encontrar o caminho da verdade. O nosso mundo tem uma necessidade extrema de pais espirituais. Muitas vezes recusou-os, porque lhe pareciam pouco credíveis, ou o seu modelo aparecia como já superado e pouco atraente para a sensibilidade comum. Contudo tem dificuldade em encontrar outros novos, e então sofre no medo e na incerteza, sem modelos nem pontos de referência. Aquele que é pai no Espírito, se o é verdadeiramente — e o povo de Deus mostrou sempre que sabe reconhecê-lo —, não fará os outros iguais a si próprio, mas ajudá-los-á a encontrar o caminho para o Reino.

Certamente, também ao Ocidente é concedido o dom admirável de uma vida monástica, masculina e feminina, que guarda o dom do guia no Espírito e espera ser valorizado. Nesse âmbito, e onde quer que a graça suscite tais instrumentos preciosos de amadurecimento interior, possam os responsáveis cultivar e valorizar tal dom e todos possam servir-se dele: experimentarão assim a consolação e apoio que é a paternidade no Espírito para o seu caminho de fé (32).

Comunhão e serviço

14. Precisamente na separação progressiva daquilo que no mundo lhe dificulta a comunhão com o seu Senhor, o monge reencontra o mundo como lugar onde se reflecte a beleza do Criador e o amor do Redentor. Na sua oração, o monge pronuncia uma epiclese do Espírito sobre o mundo e tem a certeza de que será ouvido, porque ela participa da mesma oração de Cristo. Deste modo, ele sente nascer em si um amor profundo pela humanidade, aquele amor que a oração, no Oriente, tantas vezes celebra como atributo de Deus, o Amigo dos homens, que não hesitou em oferecer o seu Filho para a salvação do mundo. Nesta atitude, é então concedido ao monge contemplar aquele mundo já transfigurado pela acção deificante de Cristo, morto e ressuscitado.

Seja qual for a modalidade que o Espírito lhe reserva, o monge é sempre e essencialmente o homem da comunhão. Com este nome se indicou também desde a antiguidade o estilo monástico da vida cenobítica. O monaquismo mostra-nos como não existe vocação autêntica que não tenha nascido da Igreja e para a Igreja. Disso é testemunha a experiência de tantos monges que, fechados nas suas celas, mostram nas suas orações uma paixão extraordinária, não só pela pessoa humana, mas por todas as criaturas, na invocação incessante para que tudo se converta à corrente salvadora do amor de Cristo. Este caminho de libertação interior na abertura ao Outro torna o monge o homem da caridade. Na escola do apóstolo Paulo, que indica a plenitude da lei na caridade (cf. Rm 13, 10), a comunhão monástica oriental esteve sempre atenta a garantir a superioridade da caridade em relação a qualquer lei.

Ela manifesta-se, antes de mais, no serviço aos irmãos na vida monástica, mas também à comunidade eclesial, segundo formas que variam nos tempos e nos lugares e que vão das obras sociais à pregação itinerante. As Igrejas do Oriente viveram com grande generosidade este empenho, a começar pela evangelização, que é o serviço mais elevado que o cristão pode oferecer ao irmão, para prosseguir em muitas outras formas de serviço espiritual e material. Mais, pode-se dizer que o monaquismo foi na antiguidade — e, com interrupções, também em tempos posteriores — o instrumento privilegiado para a evangelização dos povos.

Uma pessoa em relação

15. A vida do monge justifica a unidade que existe entre espiritualidade e teologia no Oriente.

O cristão, e o monge em particular, mais do que procurar verdades abstractas, sabe que somente o seu Senhor é Verdade e Vida, mas sabe também que ele é o Caminho (cf. Jo 14, 6) para atingir a ambas: conhecimento e participação são, portanto, uma única realidade: da pessoa ao Deus em três Pessoas, através da Encarnação do Verbo de Deus.

O Oriente ajuda-nos a delinear com grande riqueza de elementos o significado cristão da pessoa humana. Ele está centrado na Encarnação, da qual recebe luz a própria criação. Em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, manifesta-se a plenitude da vocação humana: para que o homem se tornasse Deus, o Verbo assumiu a humanidade. O homem que conhece continuamente o gosto amargo do seu limite e do seu pecado, não se perde na recriminação ou na angústia, porque sabe que dentro de si actua o poder da divindade. A humanidade foi assumida por Cristo sem separação da natureza divina nem confusão (33), e o homem não é deixado sozinho a tentar, de mil maneiras e muitas vezes frustradas, uma subida impossível ao Céu; existe um tabernáculo de glória, que é a Pessoa santíssima de Jesus, o Senhor, onde o divino e o humano se encontram num abraço que nunca poderá ser desfeito: o Verbo fez-Se carne, em tudo semelhante a nós, excepto no pecado. Ele derrama a divindade no coração doente da humanidade e, infundindo-lhe o Espírito do Pai, torna-a capaz de tornar-se Deus pela graça.

Mas, se isto nos foi revelado pelo Filho, então a nós é concedido abeirar-nos do mistério do Pai, princípio de comunhão no amor. A Trindade Santíssima aparece-nos então como comunidade de amor: conhecer um tal Deus significa sentir a urgência de que Ele fale ao mundo, que comunique; e a história da salvação não é senão a história do amor de Deus pela criatura, que Ele amou e escolheu, querendo-a «como o ícone do ícone» — assim se exprime a intuição dos Padres orientais (34) —, isto é, plasmada à imagem da Imagem, que é o Filho, conduzida à comunhão perfeita pelo santificador, o Espírito de amor. E mesmo quando o homem peca, este Deus procura-o e ama-o, para que a relação não seja rompida e o amor continue a fluir. E ama-o no mistério do Filho, que Se deixa matar na cruz por um mundo que não O reconheceu, mas é ressuscitado pelo Pai, como garantia perene de que ninguém pode matar o amor, porque todo aquele que dele participa é atingido pela glória de Deus: é este homem transformado pelo amor, que os discípulos contemplaram no Tabor, o homem que todos nós somos chamados a ser.

Um silêncio que adora

16. Contudo, este mistério esconde-se continuamente, cobre-se de silêncio (35), para evitar que, em vez de Deus, seja construído um ídolo. Somente numa purificação progressiva do conhecimento de comunhão, o homem e Deus se encontrarão e reconhecerão, no abraço eterno, a sua nunca extinta conaturalidade de amor.

Nasce assim aquele que é chamado o apofatismo do Oriente cristão: quanto mais o homem cresce no conhecimento de Deus, mais O percebe como mistério inacessível, insondável na sua essência. Isto não se deve confundir com um misticismo obscuro, onde o homem se perde em enigmáticas realidades impessoais. Antes, os cristãos do Oriente dirigem-se a Deus como Pai, Filho, Espírito Santo, Pessoas vivas, carinhosamente presentes, às quais exprimem uma doxologia litúrgica solene e humilde, majestosa e simples. Eles, porém, percebem que nos aproximamos desta presença sobretudo deixando-nos educar para um silêncio de adoração, porque, no ápice do conhecimento e da experiência de Deus, está a sua transcendência absoluta. Mais do que através de uma meditação sistemática, chega-se a um tal silêncio mediante a assimilação orante da Escritura e da Liturgia.

Nesta humilde aceitação do limite da criatura perante a transcendência infinita de um Deus que não cessa de revelar-Se como o Deus-Amor, Pai do Senhor nosso Jesus Cristo, no júbilo do Espírito Santo, vejo expressa a atitude da oração e o método teológico que o Oriente prefere e continua a oferecer a todos os crentes em Cristo.

Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora: a teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante que seremos obrigados a cobri-lo com um véu (cf. êx 34, 33) e para que as nossas assembleias saibam dar espaço à presença de Deus, evitando a celebração de si próprias; a pregação, para que não se iluda julgando suficiente multiplicar palavras para atrair a experiência de Deus; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão. Dele precisa o homem de hoje, que muitas vezes não sabe calar-se com medo de ter de enfrentar-se consigo mesmo, de revelar-se, de sentir o vazio que se torna ânsia de significado; o homem que se atordoa no barulho. Todos, crentes e não-crentes, precisam de aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra.

II – DO CONHECIMENTO AO ENCONTRO

17. Passaram-se trinta anos desde que os Bispos da Igreja Católica, reunidos em Concílio com a presença de não poucos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, escutaram a voz do Espírito, que iluminava verdades profundas sobre a natureza da Igreja, manifestando assim que todos os crentes em Cristo se encontravam muito mais próximos do que se poderia pensar, todos em caminho para o único Senhor, todos apoiados e sustentados pela sua graça. Emergia daqui um convite cada vez mais premente à unidade.

A partir de então, muito caminho foi percorrido no conhecimento recíproco. Ele intensificou a estima e frequentemente permitiu-nos rezar juntos ao único Senhor e também uns pelos outros, num caminho de caridade que é já peregrinação de unidade.

Depois dos passos importantes que foram dados pelo Papa Paulo VI, eu quis que se prosseguisse pelo caminho do conhecimento recíproco na caridade. Posso testemunhar a alegria profunda que suscitou em mim o encontro fraterno com tantos Chefes e Representantes de Igrejas e Comunidades eclesiais durante estes anos. Juntos partilhámos preocupações e anseios, juntos invocámos a união entre as nossas Igrejas e a paz no mundo. Sentimo-nos conjuntamente mais responsáveis pelo bem comum, não só individualmente, mas também em nome dos cristãos dos quais o Senhor nos fez pastores. A esta Sé de Roma têm chegado, por vezes, os prementes apelos de outras Igrejas, ameaçadas ou atingidas pela violência e pela prepotência. A todas, ela procurou abrir o coração. Por elas, logo que foi possível, levantou-se a voz do Bispo de Roma, para que os homens de boa vontade ouvissem o grito daqueles nossos irmãos sofredores.

«Entre os pecados que requerem maior empenho de penitência e conversão, devem certamente ser incluídos os que prejudicaram a unidade querida por Deus para o seu povo. Ao longo dos mil anos que estão para se concluir, mais ainda do que no primeiro milénio, a comunhão eclesial, «algumas vezes não sem culpa dos homens de um e de outro lado» (36), conheceu dolorosas rupturas que contradizem abertamente a vontade de Cristo e são escândalo para o mundo. Tais pecados do passado fazem sentir ainda, infelizmente, o seu peso e permanecem como tentações igualmente no presente. É necessário emendar-se, invocando intensamente o perdão de Cristo» (37).

O pecado da nossa divisão é gravíssimo: sinto a necessidade de que aumente a nossa disponibilidade comum ao Espírito, que nos chama à conversão, a aceitar e a reconhecer o outro com respeito fraterno, a cumprir novos gestos corajosos, capazes de dissolver qualquer tentação de retraimento. Sentimos a necessidade de ultrapassar o grau de comunhão que já atingimos.

18. Cada dia se torna em mim mais vivo o desejo de rememorar a história das Igrejas, para escrever finalmente uma história da nossa unidade, e voltar assim ao tempo, logo após a morte e ressurreição do Senhor Jesus, em que o Evangelho se difundiu pelas culturas mais diferentes, e teve início uma permuta fecundíssima, ainda hoje testemunhada pelas liturgias das Igrejas. Embora não faltem dificuldades e contrastes, as cartas dos Apóstolos (cf. 2 Cor 9, 11-14) e dos Padres (38) mostram laços fraternos estreitíssimos entre as Igrejas, numa plena comunhão de fé no respeito pelas especificidades e identidades. A experiência comum do martírio e a meditação das Actas dos mártires de cada Igreja, a participação na doutrina de tantos santos Mestres da fé, numa profunda intercomunicação e partilha, reforçam este sentimento admirável de unidade (39). O desenvolvimento de diferentes experiências de vida eclesial não impedia que, mediante relações recíprocas, os cristãos pudessem continuar a saborear a certeza de estarem na sua própria casa em qualquer Igreja, porque de todas se elevava, numa admirável variedade de línguas e de entoações, o louvor do único Pai, por Cristo, no Espírito Santo; todas se reuniam para celebrar a Eucaristia, coração e modelo da comunidade, não só no que diz respeito à espiritualidade ou à vida moral, mas também pela própria estrutura da Igreja, na variedade dos ministérios e dos serviços sob a presidência do Bispo, sucessor dos Apóstolos (40). Os primeiros concílios são um testemunho eloquente desta constante unidade na diversidade (41).

E mesmo quando se adensaram certas incompreensões dogmáticas — ampliadas muitas vezes pelo influxo de factores políticos e culturais — que conduziam já a dolorosas consequências nas relações entre as Igrejas, permaneceu vivo o esforço de invocar e promover a unidade da Igreja. No primeiro enlace do diálogo ecuménico, o Espírito Santo permitiu-nos a consolidação na fé comum, perfeita continuação do querigma apostólico, e disto damos graças a Deus de todo o coração (42). E se, lentamente, já nos primeiros séculos da era cristã, foram surgindo contraposições no interior do corpo da Igreja, não podemos esquecer que durante todo o primeiro milénio, não obstante as dificuldades, perdurou a unidade entre Roma e Constantinopla. Compreendemos cada vez melhor que não foi tanto um episódio histórico ou uma simples questão de preeminência a dilacerar o tecido da unidade, mas um progressivo alheamento, de modo que a diversidade dos outros deixou de ser percebida como riqueza comum, para ser vista como incompabilidade. E quando o segundo milénio conhece um endurecimento na polémica e na divisão, aumentando cada vez mais a ignorância recíproca e o preconceito, não cessam, contudo, encontros construtivos entre Chefes de Igrejas, desejosos de intensificar as relações e favorecer os intercâmbios, assim como não esmorece a obra santa de homens e mulheres que, reconhecendo no antagonismo um grave pecado e estando apaixonados pela unidade e pela caridade, de muitas maneiras tentaram promover, com a oração, com o estudo e a reflexão, com o encontro aberto e cordial, a procura da comunhão (43). É toda esta obra meritória que vai confluir na reflexão do Concílio Vaticano II e encontrar como que um emblema na abrogação das excomunhões recíprocas de 1054, desejada pelo Papa Paulo VI e pelo Patriarca ecuménico Atenágoras I (44) .

19. O caminho da caridade conhece novos momentos de dificuldade, após os acontecimentos recentes que envolveram a Europa central e oriental. Irmãos cristãos, que juntos tinham sofrido a perseguição, olham-se com desconfiança e temor no momento em que se abrem perspectivas e esperanças de maior liberdade: não é este um novo e grave risco de pecado que todos, com todas as forças, devemos tentar vencer, se queremos que povos à procura do Deus do amor, mais facilmente O possam encontrar, em vez de serem escandalizados de novo pelas nossas divisões e contraposições? Quando, por ocasião da Sexta-Feira Santa de 1994, Sua Santidade o Patriarca de Constantinopla Bartolomeu I ofereceu como prenda à Igreja de Roma a sua meditação sobre «O Caminho da Cruz», quis recordar esta comunhão na recente experiência do martírio: «Nós estamos unidos nestes mártires entre Roma, a «Montanha das Cruzes» e as Ilhas Solovieskj e tantos outros campos de extermínio. Estamos unidos, tendo estes mártires como pano de fundo: não podemos deixar de estar unidos» (45).

Portanto, é urgente que se tome consciência desta gravíssima responsabilidade: hoje podemos cooperar para o anúncio do Reino ou tornarmo-nos fautores de novas divisões. O Senhor abra os nossos corações, converta as nossas mentes e nos inspire passos concretos, corajosos, capazes, se for necessário, de romper com lugares-comuns, fáceis resignações ou posições de impasse. Se quem deseja ser primeiro é chamado a tornar-se servo de todos, então do ímpeto desta caridade ver-se-á crescer o primado do amor. Peço ao Senhor que inspire, antes de mais, a mim próprio e aos Bispos da Igreja Católica, gestos concretos como testemunho desta certeza interior. Exige-o a natureza mais profunda da Igreja. Todas as vezes que celebramos a Eucaristia, sacramento da comunhão, nós encontramos no Corpo e no Sangue partilhado o sacramento e o apelo da nossa unidade (46). Como poderemos ser plenamente credíveis, se nos apresentamos divididos perante a Eucaristia, se não somos capazes de viver a participação no mesmo Senhor que somos chamados a anunciar ao mundo? Perante a exclusão recíproca da Eucaristia, sentimos a nossa pobreza e a exigência de envidar todos os esforços para que chegue o dia no qual participaremos juntos do mesmo Pão e do mesmo Cálice (47). Então a Eucaristia voltará a ser plenamente sentida como profecia do Reino e ecoarão com plena verdade estas palavras tiradas de uma antiquíssima oração eucarística: «Como este pão partido estava espalhado pelas colinas e, colhido, se tornou uma só coisa, assim a tua Igreja se reúna, dos confins da Terra, no teu Reino» (48).

Experiências de unidade

20. Efemérides de particular significado encorajam-nos a dirigir o nosso pensamento, com afecto e reverência, às Igrejas Orientais. Antes de mais, como se disse, o centenário da Carta apostólica, «Orientalium Dignitas». A partir de então, teve início um caminho que, entre outras coisas, levou, em 1917, à criação da Congregação para as Igrejas Orientais (49) e à instituição do Pontifício Instituto Oriental (50), pelo Papa Bento XV. Depois, a 5 de Junho de 1960, foi instituído por João XXIII o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos (51). Em tempos recentes, a 18 de Outubro de 1990, promulguei o Código dos Cânones das Igrejas Orientais (52), para que fosse salvaguardada e promovida a especificidade do património oriental.

São estes os sinais de uma atitude que a Igreja de Roma sentiu sempre parte integrante do mandato confiado por Jesus Cristo ao apóstolo Pedro: confirmar os irmãos na fé e na unidade (cf. Lc 22, 32). As tentativas do passado tinham os seus limites derivados da mentalidade dos tempos e da própria compreensão das verdades sobre a Igreja. Mas desejaria aqui reafirmar que este empenho tem na sua raiz a convicção de que Pedro (cf. Mt 16, 17-19) quer colocar-se ao serviço de uma Igreja unida na caridade. «A tarefa de Pedro é a de procurar constantemente os caminhos que servem a conservação da unidade. Assim, ele não deve criar obstáculos, mas sim procurar caminhos. O que não está, de facto, em contradição com a tarefa que lhe foi entregue por Cristo de «confirmar os irmãos na fé» (cf. Lc 22, 32). Além disso, é significativo que Cristo tenha pronunciado estas palavras precisamente quando o Apóstolo estava para O renegar. Era como se o próprio Mestre lhe quisesse dizer: «Recorda-te de que és fraco, que também tu tens necessidade de uma incessante conversão. Podes confirmar os outros enquanto tens consciência da tua fraqueza. Dou-te como tarefa a verdade, a grande verdade de Deus, destinada à salvação do homem, mas esta verdade não pode ser pregada e realizada senão amando». É necessário, sempre, «veritatem facere in caritate» — «praticar a verdade na caridade» (cf. Ef 4, 15)» (53). Hoje, sabemos que a unidade pode ser realizada pelo amor de Deus, somente se as Igrejas o quiserem juntas, no pleno respeito das várias tradições e da necessária autonomia. Sabemos que isto pode realizar-se somente a partir do amor de Igrejas que se sentem chamadas a manifestar sempre cada vez mais a única Igreja de Cristo, nascida de um único Baptismo e de uma única Eucaristia, e que querem ser irmãs (54). Como já tive oportunidade de afirmar, «é una a Igreja de Cristo; se existem divisões devem ser superadas, mas a Igreja é una, a Igreja de Cristo entre o Oriente e o Ocidente não pode ser senão uma, una e unida» (55).

Certamente, na perspectiva actual, sabemos que uma união verdadeira só será possível no pleno respeito da dignidade dos outros, sem considerar o conjunto de usos e costumes da Igreja Latina como sendo mais completo ou mais idóneo para mostrar a plenitude da recta doutrina; e sabemos ainda que tal união deverá ser precedida por uma consciência de comunhão que penetre inteiramente a Igreja e não se limite a um acordo entre cúpulas. Hoje estamos conscientes — e já foi reafirmado várias vezes — de que a unidade se realizará como e quando o Senhor quiser, e que ela exigirá o contributo da sensibilidade e criatividade do amor, talvez mesmo indo para além das formas já experimentadas historicamente (56).

21. As Igrejas Orientais que entraram na plena comunhão com esta Igreja de Roma quiseram ser manifestação de tal solicitude, expressa segundo o grau de amadurecimento da consciência eclesial naquele tempo (57). Entrando na comunhão católica, elas não tinham de modo nenhum a intenção de renegar a fidelidade à sua tradição, que testemunharam secularmente com heroísmo e muitas vezes pagando com o sangue. E se, às vezes, nas relações com as Igrejas Ortodoxas, se verificaram equívocos e abertas contraposições, todos sabemos que devemos invocar incessantemente a misericórdia divina e um coração novo capaz de reconciliação, para além de qualquer afronta sofrida ou infligida.

Várias vezes foi reafirmado que a já realizada união plena das Igrejas Orientais Católicas com a Igreja de Roma não deve comportar para elas uma diminuição na consciência da própria autenticidade e originalidade (58). No caso de isto se ter verificado, o Concílio Vaticano II exortou-as a redescobrir plenamente a sua identidade, tendo elas «o direito e o dever de se regerem segundo as próprias disciplinas peculiares, enquanto se recomendam por veneranda antiguidade, são mais conformes aos costumes dos seus fiéis e resultam mais aptas a buscar o bem das almas» (59). Estas Igrejas trazem na sua carne uma dilaceração dramática, porque é ainda impedida uma comunhão total com as Igrejas Orientais Ortodoxas, com as quais, contudo, partilham o património dos seus pais. Uma conversão constante e comum é indispensável, para que elas procedam decididamente e com desassombro para a compreensão recíproca. E conversão é pedida também à Igreja Latina, para que respeite e valorize plenamente a dignidade dos Orientais, e acolha com gratidão os tesouros espirituais de que as Igrejas Orientais são portadoras para proveito da inteira comunhão católica (60); mostre concretamente, muito mais do que no passado, quanto estima e admira o Oriente cristão e quanto considera essencial o seu contributo para que seja vivida plenamente a universalidade da Igreja.

Encontrar-se, conhecer-se, trabalhar juntos

22. Grande é o meu desejo de que as palavras que São Paulo dirigia do Oriente aos fiéis da Igreja de Roma, ressoem hoje nos lábios dos cristãos do Ocidente a respeito dos seus irmãos das Igrejas Orientais: «Em primeiro lugar, dou graças ao meu Deus, por Jesus Cristo, a respeito de vós, porque a vossa fé é conhecida em todo o mundo» (Rm 1, 8). E logo depois o Apóstolo das Gentes declarava com entusiasmo o seu propósito: «Na verdade, desejo-vos ver, para vos comunicar alguma graça espiritual, a fim de vos fortalecer, ou antes, para convosco me reconfortar no meio de vós, pela fé que nos é comum a vós e a mim» (Rm 1, 11-12). Eis, portanto, delineada admiravelmente a dinâmica do encontro: o conhecimento dos tesouros de fé dos outros — que procurei descrever — produz espontaneamente o estímulo para um novo e mais íntimo encontro entre irmãos, que seja de autêntico e sincero intercâmbio recíproco. é um estímulo que o Espírito suscita constantemente na Igreja e que se torna mais insistente precisamente nos momentos de maior dificuldade.

23. De resto, tenho bem consciência de que neste momento algumas tensões entre a Igreja de Roma e algumas Igrejas do Oriente tornam mais difícil o caminho da estima recíproca em vista da comunhão. Várias vezes esta Sé de Roma se esforçou por emanar directrizes que favorecessem o caminho comum de todas as Igrejas, num momento tão importante para a vida do mundo, sobretudo na Europa Oriental, onde acontecimentos históricos dramáticos impediram muitas vezes às Igrejas Orientais, em tempos recentes, a plena realização do mandato da evangelização que, contudo, sentiam premente (61). Hoje, situações de maior liberdade oferecem-lhes renovadas oportunidades, embora os meios à sua disposição sejam limitados, por causa das dificuldades dos países onde estão presentes. Desejo afirmar fortemente que as comunidades do Ocidente estão prontas para favorecer em tudo — e não são poucas aquelas que já trabalham neste sentido — a intensificação deste ministério de diaconia, pondo à disposição de tais Igrejas a experiência adquirida em anos de exercício mais livre da caridade. Ai de nós, se a vantagem de um fosse causa da humilhação do outro ou de estéreis e escandalosas competições! Da sua parte, as comunidades do Ocidente considerarão, antes de mais, um dever partilhar, onde for possível, projectos de serviço com os irmãos das Igrejas do Oriente, ou contribuir para a realização de tudo aquilo que elas empreenderão ao serviço dos seus povos e, em todo o caso, nunca ostentarão, nos territórios em que convivem juntas, uma atitude que possa parecer desrespeitadora dos fatigantes esforços que as Igrejas do Oriente procuram cumprir, com tanto maior mérito quanto mais precárias são as suas disponibilidades.

Exprimir gestos comuns de caridade uma para com a outra e juntas em relação aos homens que se encontram em necessidade, aparecerá como um acto de imediata persuasão. Deixar de cumpri-lo, ou até mesmo testemunhar o contrário, levará quantos nos observam a pensar que qualquer empenho de aproximação entre as Igrejas na caridade é apenas afirmação abstracta, sem convicção nem consistência.

Vejo como fundamental o apelo do Senhor a trabalhar de todas as maneiras para que todos os crentes em Cristo testemunhem juntos a própria fé, sobretudo nos territórios onde é mais consistente a convivência entre os filhos da Igreja Católica — latinos e orientais — e os filhos das Igrejas Ortodoxas. Após o martírio comum padecido por Cristo sob a opressão dos regimes ateus, chegou o momento de sofrer, se for necessário, para nunca faltar ao testemunho da caridade entre cristãos, porque, se entregarmos o nosso corpo a fim de ser queimado, mas não tivermos caridade, de nada nos servirá (cf. 1 Cor 13, 3). Teremos de rezar intensamente para que o Senhor toque as nossas mentes e os nossos corações e nos dê a paciência e a mansidão.

24. Penso que uma forma importante de crescermos na compreensão recíproca e na unidade, consiste precisamente em melhorar o nosso conhecimento uns dos outros. Os filhos da Igreja Católica já conhecem os caminhos que a Santa Sé indicou para que eles possam atingir tal objectivo: conhecer a liturgia das Igrejas do Oriente (62); aprofundar o conhecimento das tradições espirituais dos Padres e Doutores do Oriente cristão (63); seguir o exemplo das Igrejas do Oriente na inculturação da mensagem do Evangelho; combater as tensões entre Latinos e Orientais e estimular o diálogo entre Católicos e Ortodoxos; formar, em instituições especializadas sobre o Oriente cristão, teólogos, liturgistas, historiadores e canonistas, que, por sua vez, possam difundir o conhecimento das Igrejas do Oriente; oferecer, nos seminários e faculdades teológicas, um ensino adequado sobre tais matérias, sobretudo aos futuros sacerdotes (64). São indicações sempre muito válidas, sobre as quais desejo insistir com ênfase particular.

25. Para além do conhecimento, julgo muito importante o contacto recíproco. A este propósito, faço votos por que uma acção particular seja exercida pelos mosteiros, precisamente pelo papel muito especial que reveste a vida monástica no interior das Igrejas, e pelos muitos pontos que unem a experiência monástica, e portanto a sensibilidade espiritual, no Oriente e no Ocidente. Uma outra forma de encontro é constituída pelo acolhimento de docentes e estudantes ortodoxos nas Universidades Pontifícias e outras instituições académicas católicas. Continuaremos a fazer todo o possível para que tal acolhimento possa assumir maiores proporções. Que Deus abençoe, também, o nascimento e o desenvolvimento de lugares destinados precisamente à hospitalidade dos nossos irmãos do Oriente, também nesta cidade de Roma, que guarda a memória viva e comum dos chefes dos apóstolos e de tantos mártires.

é importante que as iniciativas de encontro e intercâmbio envolvam da maneira e forma mais ampla as comunidades eclesiais: sabemos, por exemplo, quão positivas podem resultar iniciativas de contacto entre paróquias, como que «geminadas» por um recíproco enriquecimento cultural e espiritual, mesmo no exercício da caridade.

Considero de modo muito positivo as iniciativas de peregrinações comuns aos lugares onde a santidade se manifestou de maneira particular, recordando homens e mulheres que, em todos os tempos, enriqueceram a Igreja com o sacrifício da própria vida. Neste sentido, seria, portanto, um acto de grande significado chegar ao reconhecimento comum da santidade daqueles cristãos que, nos últimos decénios, em particular nos países do Leste europeu, derramaram o sangue pela única fé em Cristo.

26. Um pensamento particular vai também para os territórios da diáspora onde vivem, no âmbito de maioria latina, muitos fiéis das Igrejas Orientais que deixaram as suas terras de origem. Estes lugares, onde é mais fácil o contacto sereno no interior de uma sociedade pluralista, poderiam ser o ambiente ideal para melhorar e intensificar a colaboração entre as Igrejas na formação dos futuros sacerdotes, nos projectos pastorais e caritativos, inclusive em proveito das terras de origem dos Orientais.

Aos Ordinários latinos daqueles Países, recomendo de maneira particular o estudo atento, a plena compreensão e a fiel aplicação dos princípios enunciados por esta Sé Apostólica sobre a colaboração ecuménica (65) e sobre os cuidados pastorais dos fiéis das Igrejas Orientais Católicas, sobretudo quando estes se encontram desprovidos de uma Hierarquia própria.

Convido os Hierarcas e o clero oriental católico a uma colaboração estreita com os Ordinários latinos para uma pastoral eficaz, que não seja fragmentária, sobretudo quando a sua jurisdição se estende por territórios muito vastos onde a falta de colaboração significa, efectivamente, isolamento. Que os Hierarcas orientais católicos não descurem nenhum meio para favorecer um clima de fraternidade, de estima recíproca e sincera, e de colaboração com os seus irmãos das Igrejas às quais não nos une ainda uma comunhão plena, em particular em relação àqueles que pertencem à mesma tradição eclesial.

No Ocidente, onde não houver sacerdotes orientais para assistir os fiéis das Igrejas Orientais Católicas, os Ordinários latinos e os seus colaboradores envidem esforços para que aumentem naqueles fiéis a consciência e o conhecimento da própria tradição, e sejam chamados a cooperar activamente, com o seu contributo específico, para o crescimento da comunidade cristã.

27. Relativamente ao monaquismo, tendo em consideração a sua importância no cristianismo do Oriente, desejamos que ele floresça nas Igrejas Orientais Católicas e sejam encorajados todos aqueles que se sentem chamados a trabalhar para esta consolidação (66). De facto, existe uma ligação intrínseca entre a oração litúrgica, a tradição espiritual e a vida monástica, no Oriente. Precisamente por isso, também para eles, uma retomada bem constituída e motivada da vida monástica poderia significar um autêntico florescimento eclesial. Não se deverá pensar que isto irá diminuir a eficácia do ministério pastoral, que, pelo contrário, sairá fortalecida por uma tão robusta espiritualidade e, desta maneira, reencontrará a sua posição ideal. Este voto refere-se também aos territórios da diáspora oriental, onde a presença de mosteiros orientais daria maior solidez às Igrejas orientais naqueles países, oferecendo, além disso, um contributo precioso à vida religiosa dos cristãos do Ocidente.

Caminhar juntos para a «Orientale Lumen»

28. Ao concluir esta Carta, o meu pensamento vai para os queridos Irmãos: os Patriarcas, os Bispos, os Sacerdotes e os Diáconos, os Monges e as Monjas, os homens e as mulheres das Igrejas do Oriente.

No limiar do terceiro milénio, todos nós sentimos chegar às nossas Sés o grito dos homens, esmagados pelo peso de ameaças graves e no entanto, talvez mesmo sem o saberem, desejosos de conhecer a história de amor querida por Deus. Esses homens sentem que um raio de sol, se for acolhido, pode ainda dispersar as trevas do horizonte da ternura do Pai.

Maria, «Mãe do astro que não conhece ocaso» (67), «aurora do místico dia» (68) «oriente do Sol de glória» (69), indica-nos a Orientale Lumen.

Do Oriente, todos os dias surge de novo o sol da esperança, a luz que restitui ao género humano a sua existência. Do Oriente, segundo uma linda imagem, voltará o nosso Salvador (cf. Mt 24, 27).

Os homens e as mulheres do Oriente são para nós sinal do Senhor que volta. Nós não podemos esquecê-los, não só porque os amamos como irmãos e irmãs, redimidos pelo mesmo Senhor, mas também porque a saudade santa dos séculos vividos na plena comunhão da fé e da caridade nos impele, censura os nossos pecados, as nossas incompreensões recíprocas: nós privámos o mundo de um testemunho comum que teria, talvez, podido evitar tantos dramas, se não mesmo mudar o sentido da História.

Nós sentimos a dor de ainda não podermos participar na mesma Eucaristia. Agora que o milénio se encerra e o nosso olhar se dirige completamente para o Sol que nasce, reencontramo-los com gratidão no trajecto do nosso olhar e do nosso coração.

O eco do Evangelho, palavra que não desilude, continua a ressoar com força, enfraquecida apenas pela nossa divisão: Cristo grita, mas o homem tem dificuldade em ouvir a sua voz, porque não conseguimos transmitir palavras unânimes. Escutamos juntos a invocação dos homens que querem ouvir a Palavra de Deus inteira. As palavras do Ocidente precisam das palavras do Oriente, para que a Palavra de Deus manifeste cada vez melhor as suas riquezas insondáveis. As nossas palavras encontrar-se-ão para sempre na Jerusalém do Céu; mas invocamos e queremos que esse encontro seja antecipado na Santa Igreja que ainda caminha para a plenitude do Reino.

Queira Deus abreviar o tempo e o espaço! Cedo, bem cedo, Cristo, a Orientale Lumen, nos conceda a graça de descobrir que, na realidade, não obstante tantos séculos de afastamento, estávamos muito próximos, porque juntos, talvez sem o sabermos, caminhávamos para o único Senhor, e portanto uns para os outros.

Que o homem do terceiro milénio possa gozar desta descoberta, finalmente atingido por uma palavra concorde e, por isso, plenamente credível, proclamada por irmãos que se amam e agradecem as riquezas que se doam reciprocamente. E, desta maneira, apresentar-nos-emos a Deus com as mãos puras da reconciliação, e os homens do mundo terão uma nova motivação sólida para acreditar e para esperar.

Com estes votos, sobre todos estendo a minha Bênção.

Vaticano, 2 de Maio, memória de Santo Atanásio, Bispo e Doutor da Igreja, do ano de 1995, décimo sétimo de Pontificado.

João Paulo II Papa

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