– “Qual seria a explicação das seguintes passagens de Daniel: 7,7-8 e 7,23-25? A que reinos se referem? Ouvi dizer que o quarto animal é a Igreja Católica e os dez chifres são os povos bárbaros” (Ivanildo – Campinas-SP).
Eis os textos cujo sentido nos propomos averiguar:
– “Dan 7,7. “Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha dentes grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente do todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez pontas (ou chifres).
8. Estando eu considerando as pontas (ou chifres), eis que entre elas subiu outra ponta (ou chifre) pequena, diante da qual três das pontas primeiras foram arrancadas; e eis que nesta ponta havia olhos, como olhos de homem, e uma boca que falava grandiosamente.
.
.
.
23. Disse assim (o Anjo): ‘O quarto animal será o quarto reino na terra, o qual será diferente de todos os reinos; e devorará toda a terra, e a pisará aos pés, e a fará em pedaços. 24. E, quanto às dez pontas, daquele mesmo reino se levantarão dez reis; e depois deles se levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis. 25. E proferirá palavras contra o Altíssimo, e destruirá os santos do Altíssimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei; e eles serão entregues na sua mão por um tempo, e tempos, e metade de um tempo'” (cf. tradução de João Ferreira de Almeida).
Uma regra básica de exegese manda que se procure a interpretação de um texto no respectivo contexto ou nas páginas escritas pelo mesmo autor; é preciso averiguar a mentalidade, as regras de estilo e o vocabulário do escritor para que se perceba o que ele queria dizer e não se lhe atribuam teses estranhas.
Ora, é assaz evidente que a visão dos quatro animais, aos quais se sucede o reino messiânico, em Daniel 7, é paralela à visão da estátua confeccionada de quatro metais, que também cede ao reino messiânico, em Dan 2: a estrutura e a conclusão das passagens são as mesmas; Daniel 7, por conseguinte, deverá ser ilustrado por Daniel 2.
Numa primeira aproximação, deve-se dizer que, no estilo profético e apocalíptico, animais (reais ou fantásticos) muitas vezes designam nações; cf. Isaías 27,1; 51,9; Ezequie 29,3; 32,2 (veja-se também Salmo 67,31; 74,13). É o que se verifica no livro de Daniel: este autor quer designar os quatro grandes reinos que sucessivamente entraram em relações com o povo de Israel antes da vinda do Messias.
O primeiro animal (leão com asas de águia) simboliza o reino neobabilônico (625-539 a.C.), cujo principal monarca foi Nabucodonosor (604-526 a.C.); com efeito, no cap. 2, a cabeça de ouro da estátua é explicitamente identificada com Nabucodonosor e seu reino (cf. 2,37-38). Dizendo que o leão perdeu as asas e recebeu um coração de homem (cf. 7,4), o autor sagrado queria talvez aludir à cena do cap. 4: o monarca se tornou mais humano após reconhecer o verdadeiro Deus.
O segundo animal (urso que se erguia sobre um dos seus lados apenas e tinha na boca três costelas) significa o reino dos medos, que, conforme as perspectivas de Daniel (cf. 6,1), se sucedeu ao dos babilônios. Corresponde ao peito e aos braços de prata da estátua (ver Daniel 2,32). Esta interpretação é confirmada por Daniel 8,20. O reino dos medos, sendo mais fraco que o de Nabucodonosor (cf. 2,39), é apresentado em estado de desequilíbrio (erguido sobre um dos seus lados apenas).
O terceiro animal (leopardo com quatro asas e quatro cabeças) representa o reino dos persas (538-333 a.C.); corresponde ao ventre e às coxas de cobre da estátua, em 2,32.39. Também em Daniel 8,20 se obtém a confirmação desta exegese. As quatro asas simbolizam os quatro cantos do mundo aos quais se estendeu o domínio persa; os quatro chifres são quatro reis da Pérsia, os únicos (dentre nove) que o autor sagrado parecia conhecer (Ciro, Cambises, Dario I e Xerxes I; cf. 11,2).
A quarta fera finalmente não se assemelha a algum dos animais da terra: tinha dez chifres, entre os quais surgiu repentinamente outro pequeno chifre, que arrancou três dos anteriores. É, de acordo com Daniel 2,40; 8,5.21; 11,3, o símbolo do império macedônio de Alexandre Magno (336-323 a.C.). Os dez chifres são os três generais e os sete reis que se sucederam a Alexandre no governo da Síria; a estes seguiu-se Antioco IV Epifanes (175-163) – o pequeno chifre -, que só obteve prestígio depois de haver eliminado alguns de seus rivais (designados pelos três chifres arrancados, em 7,8).
Antioco IV é o perseguidor do povo judaico que provocou a heroica resistência dos Macabeus. Os traços com que é descrito em 7,7-8 e 7,23-25 coincidem com os que o caracterizam em 8,9-14.23-25; 11,21-45; estes trechos posteriores ajudam a compreender o cap. 7. Vê-se que Antioco Epifanes era tido como figura do Anticristo; São Paulo mesmo, em 2Tessalonicenses 2,3-10, descreve o Anticristo aludindo aos dizeres de Daniel. Conforme Daniel 7,25, o perseguidor sírio (o pequeno chifre) procurou mudar os tempos e a lei, porque quis proibir aos judeus a observância do calendário sagrado (cf. 1Macabeus 1,41-52); oprimiu o povo eleito durante “um tempo, tempos e meio-tempo”, isto é, durante três anos e meio (desde a missão de Apolônio em Jerusalém no mês de junho de 168 até a nova dedicação do Templo em dezembro de 165); cf. Daniel 4,13; 8,14; 9,27; 12,7. O número «três e meio», metade de «sete» (que é o símbolo da perfeição, segundo a mentalidade antiga), designa na Escritura a calamidade; calamidade, porém, que não chega a devastar tudo, pois é oportunamente detida por Deus.
Justamente durante a perseguição de Antioco Epifanes (entre 168 e 165) parece ter sido redigido o cap. 7 do livro de Daniel. O hagiógrafo visava corroborar o ânimo dos judeus oprimidos, fazendo-lhes ver como a história, desde os tempos de Nabucodonosor, se desenrolava sob as disposições da Providencia Divina. Curta e frustrada, queria ele dizer, seria a perseguição movida por Antioco (era caracterizada pelo número 3,5); a ela se seguiria o reino messiânico, o reino do Filho do Homem e dos Santos, cuja instauração é solenemente descrita em 7,9-14; tal reino seria eterno, jamais sujeito à destruição. Que se avivasse, pois, a esperança dos leitores judeus, acabrunhados pela luta religiosa!
Como se vê, ao redigir o cap. 7 de Daniel, o hagiógrafo, por volta de 165 a.C., tinha em vista a História pretérita e as circunstâncias em que se achava o povo do Israel; era a tais elementos que ele queria aludir mediante os seus símbolos, particularmente mediante a figura dos quatro animais poderosos. Seria errôneo, portanto, procurar a interpretação do quarto animal na história posterior ou na época do Cristianismo; neste caso, quebrar-se-ia a linha de pensamento do hagiógrafo; o livro de Daniel perderia sua estrutura e deixaria de significar algo para os seus leitores. Quando o hagiógrafo alude ao futuro (o que se dá depois de haver introduzido as quatro feras), descreve-o com todo o otimismo: é a vinda do Filho do Homem e a obra deste – a Igreja – que ele propõe como farol de esperança aos seus leitores; de modo nenhum visa incriminar o advento de Cristo no limiar da Era Cristã nem a Igreja em que Jesus vive e reina através dos séculos.
Percebe-se assim, após uma reflexão serena, quão descabido é identificar o quarto animal de Daniel 7 com a Igreja Católica.
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 2 – fev/1958