• Autor: Gerard Verschuuren
  • Fonte: Livro “Forty Anti-Catholic Lies: A Mythbusting Apologist Sets the Record Straight”, capítulo 3
  • Tradução: Fábio Salgado de Carvalho (Blog “In Pulverem Reverteris”)

A MENTIRA

Os católicos não apenas adicionaram os seus próprios livros à Bíblia, mas também lhe adicionaram a sua própria interpretação. Eles ignoram o fato de que somente a Escritura determina o que deveríamos crer no Cristianismo. Além disso, eles aceitam como doutrinas ensinamentos ou crenças que não são explicitamente mencionadas na Bíblia.

Os católicos violam a doutrina de Lutero do Sola Scriptura (Somente a Escritura), que deixa muito claro que a Escritura é a autoridade suprema em toda matéria de doutrina e de prática. A doutrina do Sola Scriptura sustenta que os crentes, individualmente, precisam apenas da Bíblia como regra de fé e que eles podem obter uma interpretação verdadeira de uma dada passagem bíblica simplesmente comparando-a com o resto daquilo que a Bíblia ensina.

A VERDADE

Os católicos têm uma visão bastante diferente: eles alegam que precisamos da Tradição em adição à Escritura. A idéia de que a Escritura é nossa única autoridade em matéria de fé é enganadora.

Antes de provarmos que também precisamos da Tradição, precisamos perguntar-nos: o que está errado com a idéia do Sola Scriptura? O problema com a regra — ou doutrina, se assim você quiser — do “Somente a Escritura” é que ela não pode funcionar por si mesma. Existem várias razões para isso. Vamos discuti-las brevemente.

A primeira razão é bastante simples: a doutrina do Sola Scriptura não se encontra em lugar algum da Escritura. Como diz o teólogo Joel S. Peters: “Não há um único versículo, em toda a Bíblia, que a ensine; portanto, ela se torna uma doutrina que refuta a si mesma”. Além do mais, é impossível afirmar que a Escritura é inspirada e verdadeira porque ela mesma diz isso. Afirmar algo assim seria como declarar réus inocentes, em um tribunal, porque eles alegam a sua própria inocência.

Como observa Tim Staples: “O apelo protestante à autoridade exclusiva da Escritura, a fim de defender o Sola Scriptura, é um exemplo clássico de raciocínio circular. Não se pode provar a inspiração da Escritura, ou de qualquer outro texto, a partir do próprio texto. O Livro dos Mórmons, os Vedas hindus, o Corão, os escritos de Mary Baker Eddy e muitos outros livros reivindicam inspiração, mas isso não os torna inspirados”. Uma reivindicação de inspiração não é uma garantia de inspiração. Todos os líderes de seitas reivindicam inspiração. É tarefa da Igreja separar o trigo inspirado do joio não inspirado.

A segunda razão é que a doutrina do Sola Scriptura requer que os protestantes mostrem, baseados somente na Escritura, quais livros pertencem à Escritura. No entanto, isso é algo impossível porque não há nenhuma lista do cânone que se pode encontrar na Escritura (veja o capítulo 2). Uma vez que a Bíblia não veio com um índice inspirado do seu conteúdo, a doutrina do Sola Scriptura cria a sua própria inconsistência: devemos assumir que sabemos com certeza quais livros pertencem à Bíblia baseando-nos na doutrina do “Somente a Escritura”. Como diz Joel Peters: “O fato inconteste é que não se pode saber qual é o cânon a menos que haja uma autoridade fora da Bíblia que nos diga isso”. Em outras palavras, a presença de um livro na Bíblia não pode ser o que o tornou bíblico, pois ele não estava inicialmente nela; pelo contrário, a Igreja primitiva julgou que certos livros eram divinamente inspirados e portanto os incluiu na Bíblia, tornando-os bíblicos.

A terceira razão é que a Escritura não poderia se tornar um padrão de ortodoxia até que ela estivesse completa, a fim de que soubéssemos o que se deveria supor que estaria nela. Se quisermos provar tudo a partir da Escritura somente, precisaríamos de um cânone da Escritura para começar. De fato, não se poderia começar a usar o Sola Scriptura antes de que se tivesse identificado o que faz parte das Escrituras. Isso não ocorreu até o Sínodo de Roma (382), sob o Papa Dâmaso I, e os Concílios de Hipona (393) e de Cartago (397), nos quais encontramos uma lista definitiva dos livros canônicos — e cada um desses Concílios reconheceu a mesma lista de livros. Até então, os livros específicos do Novo Testamento não estavam estabelecidos explicitamente. Então, em toda Bíblia, há uma página muito importante não inspirada pelo Espírito Santo: o seu índice.

A quarta razão é uma conseqüência do argumento anterior. Como poderiam os primeiros cristãos ter vivido pela “Escritura Somente” quando eles tinham apenas as Escrituras hebraicas, mas nada neotestamentário ainda? Talvez eles não fossem cristãos “reais”? A doutrina do Sola Scriptura nunca poderia ter funcionado para eles. Durante as suas viagens pelo Mediterrâneo, São Paulo não caminhava com uma cópia do Novo Testamento no seu bolso — uma vez que havia nenhum Novo Testamento ainda.

A quinta razão é que a Igreja não é produto da Escritura. É o contrário: a Escritura é produto da Igreja. O Novo Testamento não existiu por um tempo, embora a Igreja estivesse muito viva. Quando Paulo morreu no ano 67, a maior parte do Novo testamento não existia ainda. O Evangelho de Marcos estava provavelmente terminado pelo ano 70, o Evangelho de Mateus por volta do ano 80, o Evangelho de Lucas por volta do ano 85, o Evangelho de João por volta do ano 90 a 100. Em outras palavras, durante a maior parte da existência da Igreja no primeiro século, não havia nenhum Novo Testamento. O Novo Testamento estava em processo de ser criado no coração da Igreja.

A sexta razão pode ser bastante breve, embora seja muito reveladora. A doutrina do Sola Scriptura proíbe que se adicione ou que se exclua qualquer coisa da Bíblia. Entretanto, trata-se de um fato que não apenas os católicos acusam os protestantes de terem removido livros da Bíblia, mas os protestantes acusam os católicos de terem lhe adicionado livros. Aparentemente, deve haver algo mais que “somente a Escritura” que os leva a agir assim. “Somente a Escritura” não é suficiente para explicar as suas ações.

A sétima razão baseia-se no fato de que os textos da Escritura estão abertos a várias interpretações. A Escritura, portanto, não pode ser interpretada por si mesma. Como dizia Santo Tomás: “É tarefa do bom intérprete olhar não para as palavras, mas para o significado”. Em Atos dos Apóstolos, Filipe correu para o eunuco etíope na sua carruagem “e ouviu-o ler o profeta Isaías e perguntou: ‘Tu compreendes o que estás lendo?’. O eunuco respondeu: ‘Como poderia, se ninguém me orienta?'” (Atos 8,30-31). Até mesmo o próprio Jesus demonstrou, com freqüência, como os escribas e fariseus faziam uso de interpretações erradas e, portanto, Ele os corrigia interpretando as Escrituras apropriadamente, demonstrando, assim, que as Escrituras não interpretam a si mesmas. Além disso, se a doutrina do Sola Scriptura fosse verdadeira, seria esperado que todos os protestantes estivessem de acordo uns com os outros em termos de doutrina, pois a Bíblia não poderia ensinar, simultaneamente, crenças contraditórias.

A oitava razão baseia-se no fato de que há milhares de manuscritos bíblicos. Eles contêm variações numerosas do texto. Um escritor estima que existam mais de duzentas mil variações. Esses fatos deixam os protestantes na posição de não saberem se estão em posse daquilo que os escritores bíblicos escreveram originalmente. Graças à pesquisa bíblica e às descobertas arqueológicas, as versões modernas da Bíblia têm certa superioridade às versões antigas. Por outro lado, as Bíblias baseadas na Vulgata latina de São Jerônimo (século IV) — em inglês, esta é a bíblia católica de Douay-Rheims — são baseadas em textos originais que se perderam. Em outras palavras, essas versões mais antigas e tradicionais ultrapassam dezesseis séculos de possível corrupção textual. Isso significa que, embora os protestantes modernos possam ter, em alguns aspectos, uma Bíblia “melhor” ou mais acurada que aquela de seus antepassados, em outros aspectos, eles podem ter uma Bíblia mais “pobre” ou menos acurada.

Um caso interessante a esse respeito é a diferença entre as versões protestante e católica de Mateus 6,9-13 — daquilo que os católicos chamam geralmente de Pai-Nosso e que os protestantes tipicamente fazem referência como sendo a Oração do Senhor. Os dois lados podem orar juntos, quase em uníssono, durante eventos ecumênicos até chegarem ao final da oração. Depois de “livrai-nos do mal”, os protestantes sempre acrescentam uma linha extra: “porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre”. As traduções da Bíblia protestantes têm essa linha extra em Mateus 6,13, mas as Bíblias católicas não, porque São Jerônimo não a menciona na sua tradução da Vulgata. Jerônimo, e muitos outros eruditos bíblicos, ao longo dos séculos, eram da opinião de que, com o melhor das suas habilidades em pesquisar cópias antigas de Mateus, essa linha extra foi acrescentada por algum tradutor piedoso a alguma tradução muito antiga de Mateus, mas que ela não estava lá no início. Portanto, não é considerada como sendo parte da Bíblia. Nenhum cristão quer ficar à mercê de traduções e cópias do original feitas por pessoas que tenham suas próprias razões pessoais para mudar as coisas. Nem todas as fontes são da mesma qualidade; os textos antigos, por vezes, são mais confiáveis do que as versões mais recentes.

Eis a nona razão: se existem muitas interpretações legítimas da Escritura, por definição, não há interpretação definitiva, e, se não há nenhuma interpretação definitiva, então, não se pode saber se a sua interpretação é aquela objetivamente verdadeira. O corolário é este: se qualquer denominação alega que a sua própria interpretação é correta acima daquela de outras denominações, ela, efetivamente, coloca a si mesma como uma autoridade final. O Joel Peters conclui daí que, para os protestantes, “o problema aqui é que tal ato viola o Sola Scriptura, estabelecendo-se uma autoridade fora da Escritura”.

A décima razão é de natureza histórica. A doutrina do Sola Scriptura não existia antes de John Wycliffe (um precursor do Protestantismo), que a mencionou no século XIV, e não se difundiu até que Martinho Lutero surgisse no século XVI. De onde veio essa idéia? A alegação de que a Bíblia ensina essa doutrina não é nada mais do que um esforço repetido de projetar essa crença retroativamente às páginas da Escritura. Lutero estava, no fim das contas, dizendo que a autoridade final em matéria de fé é Martinho Lutero. Imagine, diz Joel Peters: “milhões e milhões de cristãos que viveram antes do século XIV seriam deixados sem uma autoridade final, abandonados para tropeçar espiritualmente, a menos que tivessem a sorte de ter acesso a uma cópia manuscrita da Bíblia”.

Com base em todas essas razões, devemos chegar à conclusão de que há mais, na fé cristã, do que somente a Escritura. É o que chamamos de Tradição na Igreja Católica. Deve haver alguma coisa anterior e além da Escritura que cria a Escritura, determina o que pertence a ela e que a interpreta. As Escrituras não caíram do Céu. Os protestantes têm tentado persistentemente rejeitar o papel da tradição, mas isso é uma missão difícil de ser cumprida, como discutiremos um pouco mais.

A Escritura é um produto da Tradição — a Tradição da Igreja primitiva, em particular, a sucessão apostólica, conectando todas as gerações posteriores à primeira geração dos apóstolos, e assim em linha direta com o próprio Jesus Cristo. Nós já encontramos tudo isso no começo da Igreja. Sabemos, por exemplo, que, quando São Clemente I sucedeu São Pedro como seu terceiro sucessor, ele enviou uma carta a Roma aos perturbadores da igreja de Corinto. A iniciativa de Clemente de instruir e disciplinar uma comunidade católica distante demonstra a influência do Bispo de Roma na Igreja primitiva. Quando Santo Inácio de Antioquia (c. 37-107) estava a caminho de Roma para ser martirizado, ele enviou cartas a sete comunidades, exortando-as a submeterem-se à autoridade dos seus Bispos. Ele foi o primeiro a usar a palavra “católico” para toda a Igreja. Somente a Escritura tende a dividir a Igreja, mas a Escritura combinada com a Tradição une a Igreja. Não é de se admirar que o Papa São João Paulo II chamou a Igreja Católica de especialista em unidade.

Aparentemente, a Tradição estava muito viva desde o começo. Essa verdade foi expressa de várias formas por membros ilustres da Igreja. São Thomas More afirma: “A Igreja foi reunida e a fé foi crida antes que qualquer parte do Novo Testamento fosse escrita”. Mais recentemente, o Arcebispo Fulton Sheen disse algo similar: “Quando finalmente os Evangelhos estavam escritos, eles registraram uma tradição, eles não a criaram. Ela já estava lá”.

A Escritura também nos diz que nem todas as coisas que Jesus disse e fez foram escritas. São Paulo diz: “ficai firmes e guardai cuidadosamente os ensinamentos que vos transmitimos, de viva voz ou por carta” (2 Tessalonicenses 2,15). Ele, obviamente, fala de dois tipos de tradição: oral e escrita. Toda a Palavra de Deus foi, em um dado momento, transmitida oralmente, o que é a Sagrada Tradição. Mais tarde, parte da Sagrada Tradição foi escrita na Escritura, tornando-se a Tradição Escrita. Em nenhum lugar, vemos Nosso Senhor comissionando seus apóstolos a evangelizar o mundo pela criação de manuscritos em Seu nome. A ênfase está sempre na pregação do Evangelho, não em escrevê-lo, imprimi-lo e distribuí-lo.

Joel Peters resume isso da seguinte maneira: “A doutrina do Sola Scriptura negligencia — ou ao menos deixa de enfatizar grosseiramente — o fato de que a Igreja veio antes da Bíblia, e não o contrário. Foi a Igreja, com efeito, que escreveu a Bíblia sob inspiração do Espírito Santo: os israelitas, como a Igreja do Antigo Testamento (ou “pré-católicos”) e os primeiros católicos, como a Igreja do Novo Testamento”.

É irônico que os mesmos protestantes que normalmente zombam da Tradição, em favorecimento da Escritura, façam uso de uma Bíblia baseada em uma tradição: eles usam a Bíblia que os reformadores transmitiram-lhes. Até mesmo a própria doutrina do Sola Scriptura tornou-se uma “tradição” protestante que surgiu muito recentemente e abruptamente no século XVI. De fato, não há Escritura sem Tradição. Os protestantes gostariam de livrar-se da Tradição, mas eles não podem viver sem ela. O Catecismo diz em poucas palavras: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um único e sagrado depósito da Palavra de Deus” (97). A Igreja Católica é a continuação viva da Tradição na qual as Escrituras nasceram.

CONCLUSÃO

Não é apenas a Escritura que é crucial no Cristianismo. Há também algo mais necessário. Na Igreja Católica, chama-se Tradição. A Tradição produziu a Escritura, salvaguardou-a e interpretou-a. A Escritura é uma autoridade vital no Cristianismo, mas isso não pode ser o caso sem a Tradição, pois a Escritura somente não pode determinar como lê-la e interpretá-la. É realmente difícil, se não for impossível, defender o Sola Scriptura de forma coerente. Assim, a Igreja Católica não manipula as Escrituras com a sua Tradição, mas ela percebe que a Escritura sem a Tradição assemelha-se a um esqueleto sem carne.

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