Parte I: [Princípios de Doutrina Social]

PRIMEIRA PARTE

«A dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas atuais da convivência humana» (Centesimus annus, 55)

CAPÍTULO I – O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS A TODA A HUMANIDADE

I. O AGIR LIBERTADOR DE DEUS NA HISTÓRIA DE ISRAEL

a) A proximidade gratuita de Deus

20 Toda autêntica experiência religiosa, em todas as tradições culturais, conduz a uma intuição do Mistério que, não raro, chega a divisar alguns traços do rosto de Deus. Ele aparece, por um lado, como origem daquilo que é, como presença que garante aos homens, socialmente organizados, as condições básicas de vida, pondo à disposição os bens necessários; por outro lado, como medida do que deve ser, como presença que interpela o agir humano ? tanto no plano pessoal como no social ? sobre o uso dos mesmos bens nas relações com os outros homens. Em toda experiência religiosa, portanto, se revelam importantes quer a dimensão do dom e da gratuidade, que se percebe como subjacente à experiência que a pessoa humana faz do seu existir junto com os outros no mundo, quer as repercussões desta dimensão sobre a consciência do homem, que adverte ser interpelado a gerir de forma responsável e convival o dom recebido. Prova disso é o reconhecimento universal da regra de ouro, em que se exprime, no plano das relações humanas, a lei que inscrita por Deus no homem: « Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles »[23].

21 Sobre o pano de fundo, compartilhado em vária medida, da experiência religiosa universal, emerge a Revelação que Deus faz progressivamente de Si próprio a Israel. Ela responde à busca humana do divino de modo inopinado e surpreendente, graças aos gestos históricos, pontuais e incisivos, nos quais se manifesta o amor de Deus pelo homem. Segundo o livro do Êxodo, o Senhor dirige a Moisés a seguinte palavra: «Eu vi, eu vi a aflição do meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa dos seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos. E desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo sair do Egito para uma terra fértil e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel» (Ex 3, 7-8). A proximidade gratuita de Deus ? à qual alude o Seu próprio Nome, que Ele revela a Moisés, «Eu sou aquele que sou» (cf. Ex 3, 14) ? manifesta-se na libertação da escravidão e na promessa, tornando-se ação histórica, na qual tem origem o processo de identificação coletiva do povo do Senhor, através da aquisição da liberdade e da terra que Deus lhe oferece em dom.

22 À gratuidade do agir divino, historicamente eficaz, acompanha constantemente o compromisso da Aliança, proposto por Deus e assumido por Israel. No Monte Sinai a iniciativa de Deus se concretiza na aliança com o Seu povo, ao qual é dado o Decálogo dos mandamentos revelados pelo Senhor (cf. Ex 19-24). As «dez palavras» (Ex 34, 28; cf. Dt 4, 13; 10, 4) «exprimem as implicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança. A existência moral é resposta à iniciativa amorosa do Senhor. É reconhecimento, homenagem a Deus e culto de ação de graças. É cooperação com o plano que Deus executa na história»[24].

Os dez mandamentos, que constituem um extraordinário caminho de vida indicam as condições mais seguras para uma existência liberta da escravidão do pecado, contêm uma expressão privilegiada da lei natural. Eles «ensinam-nos a verdadeira humanidade do homem. Iluminam os deveres essenciais e, portanto, indiretamente, os deveres fundamentais, inerentes à natureza da pessoa humana»[25]. Conotam a moral humana universal. Lembrados também por Jesus ao jovem rico do Evangelho (cf. Mt 19, 18), os dez mandamentos «constituem as regras primordiais de toda a vida social»[26].

23 Do Decálogo deriva um compromisso que diz respeito não só ao que concerne à fidelidade ao Deus único e verdadeiro, como também às relações sociais no seio do povo da Aliança. Estas últimas são reguladas, em particular, pelo que se tem definido como o direito do pobre: « Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmão… não endurecerás o teu coração e não fecharás a mão diante do teu irmão pobre; mas abrir-lhe-ás a mão e emprestar-lhe-ás segundo as necessidades da sua indigência» (Dt 15, 7-8). Tudo isto vale também em relação ao forasteiro: «Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota e tu amá-lo-ás como a ti mesmo, por que vós fostes já estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus» (Lv 19, 33-34). O dom da libertação e da terra prometida, a Aliança do Sinai e o Decálogo estão, portanto, intimamente ligados a uma praxe que deve regular, na justiça e na solidariedade, o desenvolvimento da sociedade israelita.

24 Entre as multíplices disposições inspiradas por Deus, que tendem a concretizar o estilo de gratuidade e de dom, a lei do ano sabático (celebrado a cada sete anos) e do ano jubilar (cada cinqüenta anos)[27] se distingue como uma importante orientação — ainda que nunca plenamente realizada — para a vida social e econômica do povo de Israel. È uma lei que prescreve, além do repouso dos campos, a remissão das dívidas e uma libertação geral das pessoas e dos bens: cada um pode retornar à sua família e retomar posse do seu patrimônio.

Esta legislação entende deixar assente que o evento salvífico do êxodo e a fidelidade à Aliança representam não somente o princípio fundante da vida social, política e econômica de Israel, mas também o princípio regulador das questões atinentes à pobreza econômica e às injustiças sociais. Trata-se de um princípio invocado para transformar continuamente e a partir de dentro a vida do povo da Aliança, de maneira a torná-la conforme ao desígnio de Deus. Para eliminar as discriminações e desigualdades provocadas pela evolução sócio-econômica, a cada sete anos a memória do êxodo e da Aliança é traduzida em termos sociais e jurídicos, de sorte que a questão da propriedade, das dívidas, das prestações de serviço e dos bens seja reconduzida ao seu significado mais profundo.

25 Os preceitos do ano sabático e do ano jubilar constituem uma doutrina social «in nuce»[28]. Eles mostram como os princípios da justiça e da solidariedade social são inspirados pela gratuidade do evento de salvação realizado por Deus e não têm somente o valor de corretivo de uma praxe dominada por interesses e objetivos egoístas, mas, pelo contrário, devem tornar-se, enquanto «prophetia futuri», a referência normativa à qual cada geração em Israel se deve conformar se quiser ser fiel ao seu Deus.

Tais princípios tornam-se o fulcro da pregação profética, que visa a proporcionar a sua interiorização. O Espírito de Deus, derramado no coração do homem ? anunciam-no os Profetas ? fará aí medrar aqueles mesmos sentimentos de justiça e solidariedade que moram no coração do Senhor (cf. Jr 31, 33 e Ez 36, 26-27). Então a vontade de Deus, expressa na Decálogo doado no Sinai, poderá enraizar-se criativamente no próprio íntimo do homem. Desse processo de interiorização derivam maior profundidade e realismo para o agir social, tornando possível a progressiva universalização da atitude de justiça e solidariedade, que o povo da Aliança é chamado a assumir diante de todos os homens, de todo o povo e nação.

b) Princípio da criação e agir gratuito de Deus

26 A reflexão profética e sapiencial atinge a manifestação primeira e a própria fonte do projeto de Deus sobre toda a humanidade, quando chega a formular o princípio da criação de todas as coisas por parte de Deus. No Credo de Israel, afirmar que Deus é criador não significa exprimir somente uma convicção teorética, mas perceber o horizonte originário do agir gratuito e misericordioso do Senhor em favor do homem. Ele, na verdade, livre e gratuitamente dá o ser e a vida a tudo aquilo que existe. O homem e a mulher, criados à Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-27), são por isso mesmo chamados a ser o sinal visível e o instrumento eficaz da gratuidade divina no jardim em que Deus os pôs quais cultivadores e guardiões dos bens da criação.

27 No agir gratuito de Deus Criador encontra expressão o sentido mesmo da criação, ainda que obscurecido e distorcido pela experiência do pecado. A narração do pecado das origens (cf. Gn 3, 1-24), com efeito, descreve a tentação permanente e ao mesmo tempo a situação de desordem em que a humanidade veio a encontrar-se com a queda dos primeiros pais. Desobedecer a Deus significa furtar-se ao seu olhar de amor e querer administrar por conta própria o existir e o agir no mundo. A ruptura da relação de comunhão com Deus provoca a ruptura da unidade interior da pessoa humana, da relação de comunhão entre o homem e a mulher e da relação harmoniosa entre os homens e as demais criaturas[29]. É nesta ruptura originária que se há de buscar a raiz mais profunda de todos os males que insidiam as relações sociais entre as pessoas humanas, de todas as situações que, na vida econômica e política, atentam contra a dignidade da pessoa, contra a justiça e a solidariedade.

II. JESUS CRISTO CUMPRIMENTO DO DESÍGNIO DE AMOR DO PAI

a) Em Jesus Cristo cumpre-se o evento decisivo da história de Deus com os homens

28 A benevolência e a misericórdia, que inspiram o agir de Deus e oferecem a sua chave de interpretação, tornam-se tão próximas do homem a ponto de assumir os traços do homem Jesus, o Verbo feito carne. Na narração de Lucas, Jesus descreve o Seu ministério messiânico com as palavras de Isaías que evocam o significado profético do jubileu: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor» (4, 18-19; cf. Is 61, 1-2). Jesus se coloca na linha do cumprimento, não só porque cumpre o que tinha sido prometido e que, portanto, era esperado por Israel, mas também no sentido mais profundo de que n’Ele se cumpre o evento definitivo da história de Deus com os homens. Com efeito, Ele proclama: «Aquele que me viu, viu também o Pai » (Jo 14, 9). Jesus, em outras palavras, manifesta de modo tangível e definitivo quem é Deus e como Ele se comporta com os homens.

29 O amor que anima o ministério de Jesus entre os homens é aquele mesmo experimentado pelo Filho na união íntima com o Pai. O Novo Testamento nos consente penetrar a experiência que Jesus mesmo vive e comunica do amor de Deus Seu Pai — Abbá — e, portanto, no mesmo coração da vida divina. Jesus anuncia a misericórdia libertadora de Deus para com aqueles que encontra no Seu caminho, a começar pelos pobres, pelos marginalizados, pelos pecadores, e convida à Sua seqüela, pois Ele por primeiro, e de modo de todo singular, obedece ao desígnio do amor de Deus qual Seu enviado no mundo.

A consciência que Jesus tem de ser o Filho expressa precisamente esta experiência originária. O Filho recebeu tudo, e gratuitamente, do Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu» (Jo 16, 15). Ele, por Sua vez, tem a missão de tornar todos os homens partícipes desse dom e dessa relação filial: «Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai» (Jo 15, 15).

Reconhecer o amor do Pai significa para Jesus inspirar a Sua ação na mesma gratuidade e misericórdia de Deus, geradoras de vida nova, e tornar-se assim, com a Sua própria existência, exemplo e modelo para os Seus discípulos. Estes são chamados a viver como Ele e, depois da Sua Páscoa de morte e ressurreição, também n’Ele e d’Ele, graças ao dom sobreabundante do Espírito Santo, o Consolador que interioriza nos corações o estilo de vida de Cristo mesmo.

b) A revelação do Amor Trinitário

30 O testemunho do Novo Testamento, com o deslumbramento sempre novo de quem foi fulgurado pelo amor de Deus (cf. Rm 8, 26), colhe na luz da plena revelação do Amor trinitário proporcionada pela Páscoa de Jesus Cristo, o significado último da Encarnação do Filho de Deus e da Sua missão entre os homens. Escreve São Paulo: «Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também, com ele todas as coisas?» (Rm 8, 31-32). Semelhante linguagem usa-a também São João: «Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ter-nos Ele amado e enviado o seu Filho para expiar os nossos pecados» (1 Jo 4, 10).

31 O Rosto de Deus, progressivamente revelado na história da salvação, resplandece plenamente no Rosto de Jesus Cristo Crucifixo e Ressurrecto. Deus é Trindade: Pai, Filho, Espírito Santo, realmente distintos e realmente um, porque comunhão infinita de amor. O amor gratuito de Deus pela humanidade se revela, antes de tudo, como o amor fontal do Pai, de quem tudo provém; como comunicação gratuita que o Filho faz d’Ele, entregando-se ao Pai e doando-se aos homens; como fecundidade sempre nova do amor divino que o Espírito Santo derrama no coração dos homens (cf. Rm 5, 5).

Com palavras e obras, e de modo pleno e definitivo com a Sua morte e ressurreição[30], Jesus revela à humanidade que Deus é Pai e que todos somos chamados por graça a ser filhos d’Ele no Espírito (cf. Rm 8, 15; Gal 4, 6), e por isso irmãos e irmãs entre nós. É por esta razão que a Igreja crê firmemente que « a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre »[31].

32 Contemplando a inefável gratuidade e sobreabundância do dom divino do Filho por parte do Pai, que Jesus ensinou e testemunhou doando a Sua vida por nós, o Apóstolo predileto do Senhor daí aufere o profundo sentido e a mais lógica conseqüência: «Caríssimos, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amarmos mutuamente, Deus permanece em nós e o seu amor em nós é perfeito» (1 Jo 4, 11-12). A reciprocidade do amor é exigida pelo mandamento que Jesus mesmo define novo e Seu: «como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (Jo 13, 34). O mandamento do amor recíproco traça a via para viver em Cristo a vida trinitária na Igreja, Corpo de Cristo, e transformar com Ele a história até ao seu pleno cumprimento na Jerusalém Celeste.

33 O mandamento do amor recíproco, que constitui a lei de vida do povo de Deus[32], deve inspirar, purificar e elevar todas as relações humanas na vida social e política: «Humanidade significa chamada à comunhão interpessoal»[33], porque a imagem e semelhança do Deus trinitário são a raiz de «todo o “ethos” humano … cujo vértice é o mandamento do amor»[34]. O fenômeno cultural, social, econômico e político hodierno da interdependência, que intensifica e torna particularmente evidentes os vínculos que unem a família humana, ressalta uma vez mais, à luz da Revelação, «um novo modelo de unidade do gênero humano, no qual, em última instância, a solidariedade se deve inspirar. Este supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra “comunhão”»[35].

III. A PESSOA HUMANA NO DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS

a) O Amor trinitário, origem e meta da pessoa humana

34 A revelação em Cristo do mistério de Deus como Amor trinitário é também a revelação da vocação da pessoa humana ao amor. Tal revelação ilumina a dignidade e a liberdade pessoal do homem e da mulher, bem como a intrínseca sociabilidade humana em toda a profundidade: «Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta … um existir em relação, em referência ao outro “eu” »[36], porque Deus mesmo, uno e trino, é comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Na comunhão de amor que é Deus, em que as três Pessoas divinas se amam reciprocamente e são o Único Deus, a pessoa humana é chamada a descobrir a origem e a meta da sua existência e da história. Os Padres Conciliares, na Constituição Pastoral «Gaudium et spes», ensinam que «quando o Senhor Jesus pede ao Pai que “todos sejam um…, como nós também somos um” (Jo 17, 21-22), abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana, acena a uma certa semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus, na verdade e na caridade. Esta semelhança mostra que o homem, única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode realizar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo (cf. Lc 17, 33)»[37].

35 A revelação cristã projeta uma nova luz sobre a identidade, sobre a vocação e sobre o destino último da pessoa e do gênero humano. Toda a pessoa é por Deus criada, amada e salva em Jesus Cristo, e se realiza tecendo multíplices relações de amor, de justiça e de solidariedade com as outras pessoas, na medida em que desenvolve a sua multiforme atividade no mundo. O agir humano, quando tende a promover a dignidade e a vocação integral da pessoa, a qualidade das suas condições de existência, o encontro e a solidariedade dos povos e das nações, é conforme ao desígnio de Deus, que nunca deixa de mostrar o Seu amor e a Sua Providência para com Seus filhos.

36 As páginas do primeiro livro da Sagrada Escritura, que descrevem a criação do homem e da mulher à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27), encerram um ensinamento fundamental sobre a identidade e a vocação da pessoa humana. Dizem-nos que a criação do homem e da mulher é um ato livre e gratuito de Deus; que o homem e a mulher constituem, porque livres e inteligentes, o tu criado de Deus e que somente na relação com Ele podem descobrir e realizar o significado autêntico e pleno de sua vida pessoal e social; que estes, precisamente na sua complementaridade e reciprocidade, são a imagem do Amor Trinitário no universo criado; que a eles, que são o ápice da criação, o Criador confia a tarefa de ordenar segundo o desígnio do seu Criador a natureza criada (cf. Gn 1, 28).

37 O livro da Gênese nos propõe algumas linhas mestras da antropologia cristã: a inalienável dignidade da pessoa humana, que tem a sua raiz e a sua garantia no desígnio criador de Deus; a sociabilidade constitutiva do ser humano, que tem o seu protótipo na relação originária entre o homem e a mulher, «união esta que foi a primeira expressão da comunhão de pessoas»[38]; o significado do agir humano no mundo, que é ligado à descoberta e ao respeito da lei natural que Deus imprimiu no universo criado, para que a humanidade o habite e guarde segundo o Seu projeto (cf. 2Pd 3, 13). Esta visão da pessoa humana, da sociedade e da história é radicada em Deus e é iluminada pela realização do Seu desígnio de salvação.

b) A salvação cristã: para todos os homens e do homem todo

38 A salvação que, por iniciativa de Deus Pai, é oferecida em Jesus Cristo e é atualizada e difundida por obra do Espírito Santo, é salvação para todos os homens e do homem todo: é salvação universal e integral. Diz respeito à pessoa humana em todas as suas dimensões: pessoal e social, espiritual e corpórea, histórica e transcendente. Começa a realizar-se já na história, porque tudo o que é criado é bom e querido por Deus e porque o Filho de Deus se fez um de nós[39]. O seu cumprimento, porém, encontra-se no futuro que Deus nos reserva, quando formos chamados, com toda a criação (cf. Rm 8), a participar da ressurreição de Cristo e da comunhão eterna de vida com o Pai, na alegria do Espírito Santo. Esta perspectiva indica precisamente o erro e o engano das visões puramente imanentistas do sentido da história e das pretensões de auto-salvação do homem.

39 A salvação que Deus oferece aos Seus filhos requer a sua livre resposta e adesão. Nisso consiste a fé, «pela qual o homem se entrega livre e totalmente a Deus »[40], respondendo ao Amor preveniente e sobreabundante de Deus (cf. 1 Jo 4, 10) com o amor concreto aos irmãos e com firme esperança, «porque é fiel Aquele cuja promessa aguardamos» (Hb 10, 23). O plano divino de salvação, na verdade, não coloca a criatura humana num estado de mera passividade o de menoridade em relação ao seu Criador, porque a relação com Deus, que Jesus Cristo nos manifesta e no qual nos introduz gratuitamente por obra do Espírito Santo, é uma relação de filiação: a mesma que Jesus vive em relação ao Pai (cf. Jo 15-17; Gal 4, 6-7).

40 A universalidade e a integralidade da salvação, doada em Jesus Cristo, tornam incindível o nexo entre a relação que a pessoa é chamada a ter com Deus e a responsabilidade ética para com o próximo, na concretude das situações históricas. Isto se intui, ainda que confusamente e não sem erros, na universal busca humana de verdade e de sentido, mas torna-se estrutura fundamental da Aliança de Deus com Israel, como testemunham, por exemplo, as tábuas da Lei e a pregação profética.

Tal nexo é expresso com clareza e em perfeita síntese no ensinamento de Jesus Cristo e confirmado definitivamente pelo testemunho supremo do dom de Sua vida, em obediência à vontade do Pai e por amor aos irmãos. Ao escriba que lhe pergunta: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» (Mc 12, 28), Jesus responde: «O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes não existe » (Mc 12, 29-31).

No coração da pessoa humana se entrelaçam indissoluvelmente a relação com Deus, reconhecido como Criador e Pai, fonte e termo da vida e da salvação, e a abertura ao amor concreto pelo homem, que deve ser tratado como um outro “eu”, ainda que seja um inimigo (cf. Mt 5, 43-44). Na dimensão interior e espiritual do homem se radicam, ao fim e ao cabo, o empenho pela justiça e pela solidariedade, pela edificação de uma vida social, econômica e política conforme com o desígnio de Deus.

c) O discípulo de Cristo qual nova criatura

41 A vida pessoal e social assim como o agir humano no mundo são sempre insidiados pelo pecado, mas Jesus Cristo, «padecendo por nós, não nos deu simplesmente o exemplo para seguirmos os Seus passos, mas rasgou um caminho novo: se o seguirmos, a vida e a morte tornam-se santas e adquirem um sentido diferente»[41]. O discípulo de Cristo adere, na fé e mediante os sacramentos, ao mistério pascal de Jesus, de sorte que o seu homem velho, com as suas más inclinações, é crucificado com Cristo. Qual nova criatura ele então fica habilitado na graça a caminhar em «uma vida nova» (Rom 6, 4). Tal caminho, porém, «vale não apenas para os que crêem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais, invisivelmente, opera a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e vocação última do homem é realmente uma só, a saber divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal»[42].

42 A transformação interior da pessoa humana, na sua progressiva conformação a Cristo, é pressuposto essencial de uma real renovação das suas relações com as outras pessoas: «É preciso, então, apelar às capacidades espirituais e morais da pessoa e à exigência permanente de sua conversão interior, a fim de obter mudanças sociais que estejam realmente a seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração não elimina absolutamente, antes impõe, a obrigação de trazer às instituições e às condições de vida, quando estas provocam o pecado, o saneamento conveniente, para que sejam conformes às normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de pôr-lhe obstáculos»[43].

43 Não é possível amar o próximo como a si mesmo e perseverar nesta atitude sem a firme e constante determinação de empenhar-se em prol do bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos[44]. Segundo o ensinamento conciliar, «também àqueles que pensam e fazem de modo diferente do nosso em matéria social, política e, inclusivamente, religiosa, deve estender-se o respeito e a caridade; quanto nos esforçamos para penetrar intimamente com benevolência e amor, nos seus modos de ver, mais fácil se tornará um diálogo com eles»[45]. Nesse caminho é necessária a graça, que Deus oferece ao homem para ajudá-lo a superar os falhanços, para arrancá-lo da voragem da mentira e da violência, para sustentá-lo e incentivá-lo a tecer de novo, com espírito sempre renovado e disponível, a rede das relações verdadeiras e sinceras com os seus semelhantes[46].

44 Também a relação com o universo criado e as diversas atividades que o homem dedica ao seu cuidado e transformação, quotidianamente ameaçadas pela soberba e amor desordenado de si, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo: «Resgatado por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar, com efeito, as coisas criadas por Deus. Pois de Deus as recebe: vê-as como brotando da Sua mão e como tais as respeita. Dando graças por elas ao Benfeitor, e usando e gozando das criaturas em espírito de pobreza e liberdade, é então que entra deveras na posse do mundo, como quem nada tem e é dono de tudo: com efeito “tudo é vosso: vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 22-23)»[47].

d) Transcendência da salvação e autonomia das realidades terrestres

45 Jesus Cristo é o Filho de Deus humanado no qual e graças ao qual o mundo e o homem haurem a sua autêntica e plena verdade. O mistério da infinita proximidade de Deus em relação ao homem – realizado na Encarnação de Jesus Cristo, levado até ao abandono na cruz e à morte – mostra que quanto mais o humano é visto à luz do desígnio de Deus e vivido em comunhão com Ele, tanto mais ele é potenciado e libertado na sua identidade e na mesma liberdade que lhe é própria. A participação na vida filial de Cristo, tornada possível pela Encarnação e pelo dom pascal do Espírito, longe de mortificar, tem o efeito de fazer desabrochar a autêntica e autônoma consistência e identidade dos seres humanos, em todas as suas expressões.

Esta perspectiva orienta para uma visão mais correta das realidades terrestres e da sua autonomia, que é bem sublinhada pelo ensinamento do Concílio Vaticano II: «Se por autonomia das realidades terrestres se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm as suas leis e os seus valores próprios, que o homem gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar, tal exigência de autonomia é plenamente legítima… corresponde à vontade do Criador. Com efeito, é pela virtude da própria criação que todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade, bondade, de leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar, e reconhecer os métodos próprios de cada uma das ciências ou técnicas»[48].

46 Não há conflituosidade entre Deus e o homem, mas uma relação de amor na qual o mundo e os frutos do agir do homem no mundo são objeto de recíproco dom entre o Pai e os filhos, e dos filhos entre si, em Cristo Jesus: n’Ele e graças a Ele, o mundo e o homem alcançam o seu significado autêntico e originário. Em uma visão universal do amor de Deus que abraça tudo o que é, Deus mesmo se nos revelou em Cristo como Pai e Doador de vida, e o homem nos é revelado como aquele que, em Cristo, tudo recebe de Deus como dom, em humildade e liberdade, e tudo possui verdadeiramente como seu, quando conhece e vive tudo como coisa de Deus, por Deus originada e a Deus destinada. A este propósito, o Concílio Vaticano II ensina: «Se por autonomia do temporal se entende que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las de tal maneira que as não refira ao Criador, não há ninguém que acredite em Deus, que não perceba quão falsas são tais afirmações. Na verdade, a criatura sem o Criador perde o sentido»[49].

47 A pessoa humana, em si mesma e na sua vocação, transcende o horizonte do universo criado, da sociedade e da história: o seu fim último é o próprio Deus[50], que se revelou aos homens para convidá-los e recebê-los na comunhão com Ele[51]. «O homem não se pode doar a um projeto somente humano da realidade, nem a um ideal abstrato ou a falsas utopias. Ele, enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom»[52]. Por isso «alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana »[53].

48 A pessoa humana não pode e não deve ser instrumentalizada por estruturas sociais, econômicas e políticas, pois todo homem tem a liberdade de orientar-se para o seu fim último. Por outro lado, toda a realização cultural, social, econômica e política, em que se atuam historicamente a sociabilidade da pessoa e a sua atividade transformadora do universo, deve sempre ser considerada também no seu aspecto de realidade relativa e provisória, porque «a figura desse mundo passa!» (1 Cor 7, 31). Trata-se de uma relatividade escatológica, no sentido de que o homem e o mundo vão ao encontro do fim, que é o cumprimento do seu destino em Deus; e de uma relatividade teológica, enquanto o dom de Deus, mediante o qual se cumprirá o destino definitivo da humanidade e da criação, supera infinitamente as possibilidades e as expectativas do homem. Qualquer visão totalitária da sociedade e do Estado e qualquer ideologia puramente intramundana do progresso são contrárias à verdade integral da pessoa humana e ao desígnio de Deus na história.

IV. DESÍGNIO DE DEUS E MISSÃO DA IGREJA

a) A Igreja, sinal e tutela da transcendência da pessoa humana

49 A Igreja, comunidade daqueles que são convocados pelo Cristo Ressuscitado e se põem no seu seguimento, é o «sinal e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana»[54]. Ela « é em Cristo como que sacramento ou sinal, e também instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano»[55]. A missão da Igreja é a de anunciar e comunicar a salvação realizada em Jesus Cristo, que Ele chama « Reino de Deus » (Mc 1, 15), ou seja, a comunhão com Deus e entre os homens. O fim da salvação, o Reino de Deus, abraça todos os homens e se realizará plenamente além da história, em Deus. A Igreja recebeu «a missão de anunciar e estabelecer em todas as gentes o Reino de Cristo e de Deus, e constitui ela própria na terra o germe e o início deste Reino»[56].

50 A Igreja põe-se concretamente ao serviço do Reino de Deus, antes de mais nada, anunciando e comunicando o Evangelho da salvação e constituindo novas comunidades cristãs. Ela, ademais, «serve o Reino, difundindo pelo mundo os “valores evangélicos”, que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na medida em que ela viva os “valores evangélicos” e se abra à ação do Espírito que sopra onde e como quer (cf. Jo 3, 8); mas é preciso acrescentar, logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para a plenitude escatológica »[57]. Donde deriva, em particular, que a Igreja não se confunde com a comunidade política e nem está ligada a nenhum sistema político[58]. A comunidade política e a Igreja, no próprio campo, são efetivamente independentes e autônomas uma em relação à outra, e estão ambas, embora a diferentes títulos, «ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens »[59]. Pode-se, antes, afirmar que a distinção entre religião e política e o princípio da liberdade religiosa constituem uma aquisição específica do cristianismo, de grande relevo no plano histórico e cultural.

51 À identidade e à missão da Igreja no mundo, segundo o projeto de Deus realizado em Cristo, corresponde «uma finalidade salvífica e escatológica, que só pode ser plenamente alcançada no século futuro»[60]. Justo por isso, a Igreja oferece um contributo original e insubstituível à comunidade humana com a solicitude que a impele a tornar mais humana a família dos homens e a sua história, e a pôr-se como baluarte contra qualquer tentação totalitarista, indicando ao homem a sua vocação integral e definitiva[61].

Com a pregação do Evangelho, a graça dos sacramentos e a experiência da comunhão fraterna, a Igreja sana e eleva a dignidade da pessoa humana, «firmando a coesão da sociedade e dando à atividade diária dos homens um sentido e um significado mais profundos»[62]. No plano das dinâmicas históricas concretas, não se pode compreender o advento do Reino de Deus na perspectiva de uma organização social, econômica e política definida e definitiva. Ele é antes testemunhado pelo progresso de uma sociabilidade humana que é para os homens fermento de realização integral, de justiça e de solidariedade, na abertura ao Transcendente como termo referencial para a própria definitiva e plena realização pessoal.

b) Igreja, Reino de Deus e renovação das relações sociais

52 Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens. Como ensina o apóstolo Paulo, a vida em Cristo faz vir à tona de modo pleno e novo a identidade e a sociabilidade da pessoa humana, com as suas concretas conseqüências no plano histórico e social: «Todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3, 26-28). Nesta perspectiva, as comunidade eclesiais, convocadas pela mensagem de Jesus Cristo e reunidas no Espírito Santo ao redor do Ressuscitado (cf. Mt 18, 20; 28, 19-20; Lc 24, 46-49), se propõem como lugar de comunhão, de testemunho e de missão e como fermento de redenção e de transformação das relações sociais. A pregação do Evangelho de Jesus induz os discípulos a antecipar o futuro renovando as relações recíprocas.

53 A transformação social que responde às exigências do Reino de Deus não está estabelecida nas suas determinações concretas uma vez por todas. Trata-se antes de uma tarefa confiada à comunidade cristã, que a deve elaborar e realizar através da reflexão e da praxe inspiradas no Evangelho. É o próprio Espírito do Senhor que conduz o povo de Deus e, concomitantemente, preenche o universo[63], inspirando, de tempos em tempos, soluções novas e atuais à criatividade responsável dos homens[64], à comunidade dos cristãos inserida nos dinamismos do mundo e da história e, por isso mesmo, aberta ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade, na busca comum dos germes de verdade e de liberdade disseminados no vasto campo da humanidade[65]. A dinâmica de uma tal renovação deve estar ancorada nos princípios imutáveis da lei natural, impressa por Deus Criador na Sua criatura (cf. Rm 2, 14-15) e iluminada escatologicamente mediante Jesus Cristo.

54 Jesus Cristo revela-nos que «Deus é amor» (1 Jo 4, 8) e nos ensina que «a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da transformação do mundo, é o mandamento novo do amor. Destarte, aos que crêem no amor divino dá-lhes a certeza de que abrir o caminho do amor a todos os homens e instaurar a fraternidade universal não são coisas vãs»[66]. Esta lei è chamada a tornar-se a medida e a norma última de todas as dinâmicas nas quais se desdobram as relações humanas. Em síntese, é o próprio mistério de Deus, o Amor trinitário, que funda o significado e o valor da pessoa, da sociabilidade e do agir do homem no mundo, na medida em que foi revelado e participado à humanidade, por meio de Cristo, no Seu Espírito.

55 A transformação do mundo se apresenta como uma instância fundamental também do nosso tempo. A esta exigência o Magistério social da Igreja entende oferecer as respostas que os sinais dos tempos invocam, indicando primeiramente no amor recíproco entre os homens, sob o olhar de Deus, o instrumento mais potente de mudança, no plano pessoal assim como no social. O amor recíproco, com efeito, na participação no amor infinito de Deus é o autêntico fim, histórico e transcendente, da humanidade. Portanto, «ainda que haja que distinguir cuidadosamente progresso terreno e crescimento do Reino de Cristo, contudo este progresso tem muita importância para o Reino de Deus, na medida em que pode contribuir para uma melhor organização da sociedade humana»[67].

c) Novos céus e nova terra

56 A promessa de Deus e a ressurreição de Jesus Cristo suscitam nos cristãos a fundada esperança de que para todas as pessoas humanas é preparada uma nova e eterna morada, uma terra em que habita a justiça (cf. 2 Cor 5, 1-2; 2Pd 3, 13). «Então, depois de vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo e aquilo que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorruptibilidade; e permanecendo a caridade com as suas obras, todas as criaturas que Deus criou por causa do homem serão livres da servidão da vaidade»[68]. Esta esperança, longe de atenuar, deve antes impulsionar a solicitude pelo trabalho referente à realidade presente.

57 Os bens, quais a dignidade do homem, a fraternidade e a liberdade, todos os bons frutos da natureza e da nossa operosidade, esparsos pela terra no Espírito do Senhor e de acordo com o Seu preceito, limpos de toda a mancha, iluminados e transfigurados, pertencem ao Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz que Cristo entregará ao Pai e lá os encontraremos novamente. Ressoarão então para todos, na sua solene verdade, as palavras de Cristo: «Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim (…) todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes» (Mt 25, 34-36.40).

58 A realização da pessoa humana, atuada em Cristo graças ao dom do Espírito, matura na história e é mediada pelas relações da pessoa com as outras pessoas, relações que, por sua vez, alcançam a sua perfeição graças ao empenho por melhorar o mundo, na justiça e na paz. O agir humano na história é de per si significativo e eficaz para a instauração definitiva do Reino, ainda que este continue a ser dom de Deus, plenamente transcendente. Tal agir, quando respeitoso da ordem objetiva da realidade temporal e iluminado pela verdade e pela caridade, torna-se instrumento para uma atuação sempre mais plena e integral da justiça e da paz e antecipa no presente o Reino prometido.

Configurando-se a Cristo Redentor, o homem se percebe como criatura querida por Deus e por Ele eternamente escolhida, chamada à graça e à glória, na plenitude do mistério de que se tornou partícipe em Jesus Cristo[69]. A configuração a Cristo e a contemplação do Seu Rosto[70] infundem no cristão um anelo indelével por antecipar neste mundo, no âmbito das relações humanas, o que será realidade no mundo definitivo, empenhando-se em dar de comer, de beber, de vestir, uma casa, a cura, o acolhimento e a companhia ao Senhor que bate à porta (cf. Mt 25, 35-37).

d) Maria e o Seu «fiat» ao desígnio de amor de Deus

59 Herdeira da esperança dos justos de Israel e primeira dentre os discípulos de Jesus Cristo é Maria, Sua Mãe. Ela, com o Seu «fiat» ao desígnio de amor de Deus (cf. Lc 1, 38), em nome de toda a humanidade, acolhe na história o enviado do Pai, o Salvador dos homens. No canto do «Magnificat» proclama o advento do Mistério da Salvação, a vinda do «Messias dos pobres» (cf. Is 11, 4; 61, 1). O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré na exultação do Seu espírito, é Aquele que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, sacia de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias, dispersa os soberbos e conserva a Sua misericórdia para aqueles que O temem (cf. Lc 1, 50-53).

Haurindo no coração de Maria, da profundidade da Sua fé expressa nas palavras do «Magnificat», os discípulos de Cristo são chamados a renovar cada vez melhor em si mesmos «a certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus »[71]. Maria, totalmente dependente de Deus e toda orientada para Ele, com o impulso da sua fé «é o ícone mais perfeito da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos»[72].

CAPÍTULO II – MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL

I. EVANGELIZAÇÃO E DOUTRINA SOCIAL

a) A Igreja, morada de Deus com os homens

60 A Igreja, partícipe das alegrias e esperanças, das angústias e das tristezas dos homens, é solidária com todo homem e a toda a mulher, de todo lugar e de todo tempo, e leva-lhes a Boa Nova do Reino de Deus, que com Jesus Cristo veio e vem em meio a eles[73]. A Igreja é, na humanidade e no mundo, o sacramento do amor de Deus e, por isso mesmo, da esperança maior, que ativa e sustém todo autêntico projeto e empenho de libertação e promoção humana. É, em meio aos homens, a tenda da companhia de Deus ? «o tabernáculo de Deus com os homens» (Ap 21, 3) ? de modo que o homem não se encontra só, perdido ou transtornado no seu empenho de humanizar o mundo, mas encontra amparo no amor redentor de Cristo. Ela é ministra de salvação, não em abstrato ou em sentido meramente espiritual, mas no contexto da história e do mundo em que o homem vive[74], onde o alcançam o amor de Deus e a vocação a corresponder ao projeto divino.

61 Único e irrepetível na sua individualidade, todo homem é um ser aberto à relação com os outros na sociedade. O conviver social na rede de relações que interliga indivíduos, famílias, grupos intermédios em relações de encontro, de comunicação e de reciprocidade, assegura ao viver uma qualidade melhor. O bem comum que eles buscam e conseguem formando a comunidade social é garantia do bem pessoal, familiar e associativo[75]. Por estas razões, se origina e prende forma a sociedade, com os seus componentes estruturais, ou seja, políticos, econômicos, jurídicos, culturais. Ao homem «enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades modernas»[76], a Igreja se dirige com a sua doutrina social. «Perita em humanidade»[77], a Igreja é apta a compreendê-lo na sua vocação e nas suas aspirações, nos seus limites e nos seus apuros, nos seus direitos e nas suas tarefas, e a ter para ele uma palavra de vida que ressoe nas vicissitudes históricas e sociais da existência humana.

b) Fecundar e fermentar com o Evangelho a sociedade

62 Com o seu ensinamento social a Igreja entende anunciar e atualizar o Evangelho na complexa rede de relações sociais. Não se trata simplesmente de alcançar o homem na sociedade ? o homem qual destinatário do anúncio evangélico ?, mas de fecundar e fermentar com o Evangelho a mesma sociedade[78]. Cuidar do homem significa, para a Igreja, envolver também a sociedade na sua solicitude missionária e salvífica. A convivência social, com efeito, não raro determina a qualidade da vida e, por conseguinte, as condições em que cada homem e cada mulher se compreendem a si próprios e decidem de si mesmos e da própria vocação. Por esta razão, a Igreja não é indiferente a tudo o que na sociedade se decide, se produz e se vive, numa palavra, à qualidade moral, autenticamente humana e humanizadora, da vida social. A sociedade e, com ela, a política, a economia, o trabalho, o direito, a cultura não constituem um âmbito meramente secular e mundano e portanto marginal e alheio à mensagem e à economia da salvação. Efetivamente, a sociedade ? com tudo o que nela se realiza ? diz respeito ao homem. É a sociedade dos homens, que são «a primeira e fundamental via da Igreja»[79].

63 Com a sua doutrina social a Igreja assume a tarefa de anúncio que o Senhor lhe confiou. Ela atualiza no curso da história a mensagem de libertação e de redenção de Cristo, o Evangelho do Reino. A Igreja, anunciando o Evangelho, «testemunha ao homem, em nome de Cristo, sua dignidade própria e sua vocação à comunhão de pessoas; ensina-lhe as exigências da justiça e da paz, de acordo com a sabedoria divina»[80].

Evangelho que, mediante a Igreja, ressoa no hoje do homem[81], a doutrina social é palavra que liberta. Isso significa que tem a eficácia de verdade e de graça do Espírito Santo, que penetra os corações, dispondo-os a cultivar pensamentos e projetos de amor, de justiça, de liberdade e de paz. Evangelizar o social é, pois, infundir no coração dos homens a carga de sentido e de libertação do Evangelho, de modo a promover uma sociedade à medida do homem porque à medida de Cristo: é construir uma cidade do homem mais humana porque mais conforme com o Reino de Deus.

64 A Igreja, com a sua doutrina social, não só não se afasta da própria missão, mas lhe é rigorosamente fiel. A redenção realizada por Cristo e confiada à sua missão salvífica é certamente de ordem sobrenatural. Esta dimensão não é expressão limitativa, mas integral da salvação[82]. O sobrenatural não deve ser concebido como uma entidade ou um espaço que começa onde termina o natural, mas como uma elevação deste, de modo que nada da ordem da criação e do humano é alheio ou excluído da ordem sobrenatural e teologal da fé e da graça, antes aí é reconhecido, assumido e elevado: «Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem (cf. Gên 1, 26-30) — aquele mundo que, entrando nele o pecado, “foi submetido à caducidade” (Rm 8, 20; cf. ibid., 8, 19-22) — readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito, “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito” (Jo 3, 16). Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado (cf. Rm 5, 12-21)»[83].

65 A Redenção começa com a Encarnação, mediante a qual o Filho de Deus assume tudo do homem, exceto o pecado, segundo as solidariedades instituídas pela Sabedoria criadora divina, e tudo abraça em seu dom de Amor redentor. Por este Amor o homem é abraçado na inteireza do seu ser: ser corpóreo e espiritual, em relação solidária com os outros. O homem todo — não uma alma separada ou um ser encerrado na sua individualidade, mas a pessoa e a sociedade das pessoas — fica implicado na economia salvífica do Evangelho. Portadora da mensagem de Encarnação e de Redenção do Evangelho, a Igreja não pode percorrer outra via: com a sua doutrina social e com a ação eficaz que ela ativa, não somente não falseia o seu rosto e a sua missão, mas é fiel a Cristo e se revela aos homens como «sacramento universal da salvação»[84]. Isto é particularmente verdadeiro numa época como a nossa, caracterizada por uma crescente interdependência e por uma mundialização das questões sociais.

c) Doutrina social, evangelização e promoção humana

66 A doutrina social é parte integrante do ministério de evangelização da Igreja. Daquilo que diz respeito à comunidade dos homens — situações e problemas referentes à justiça, à libertação, ao desenvolvimento, às relações entre os povos, à paz — nada é alheio à evangelização e esta não seria completa se não levasse em conta o recíproco apelo que se continuamente se fazem o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social do homem[85]. Entre evangelização e promoção humana há laços profundos: «laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto de problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da Redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que deve ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e autêntico progresso do homem?»[86].

67 A doutrina social, «por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização»[87] e se desenvolve no encontro sempre renovado entre a mensagem evangélica e a história humana. Assim entendida, tal doutrina é via peculiar para o exercício do ministério da Palavra e da função profética da Igreja[88]: «para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas conseqüências diretas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador»[89]. Não estamos na presença de um interesse ou de uma ação marginal, que se apõe à missão da Igreja, mas no coração mesmo da sua ministerialidade: com a doutrina social a Igreja «anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo»[90]. Este é um ministério que procede não só do anúncio, mas também do testemunho.

68 A Igreja não se ocupa da vida em sociedade em todos os seus aspectos, mas com a sua competência própria, que é a do anúncio de Cristo Redentor[91]: «A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não é de ordem política, econômica e social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem religiosa. Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a Lei de Deus»[92]. Isto quer dizer que a Igreja, com a sua doutrina social, não entra em questões técnicas e não institui nem propõe sistemas ou modelos de organização social[93]: isto não faz parte da missão que Cristo lhe confiou. A Igreja tem a competência que lhe vem do Evangelho: da mensagem de libertação do homem anunciada e testemunhada pelo Filho de Deus humanado.

d) Direito e dever da Igreja

69 Com a sua doutrina social a Igreja «se propõe assistir o homem no caminho da salvação»[94]: trata-se do seu fim precípuo e único. Não há outros objetivos tendentes a sub-rogar ou invadir atribuições de outrem, negligenciando as próprias; ou a perseguir objetivos alheios à sua missão. Tal missão configura o direito e juntamente o dever da Igreja de elaborar uma doutrina social própria e com ela exercer influxo sobre a sociedade e as suas estruturas, mediante as responsabilidades e as tarefas que esta doutrina suscita.

70 A Igreja tem o direito de ser para o homem mestra de verdades da fé: da verdade não só do dogma, mas também da moral que dimana da mesma natureza humana e do Evangelho[95]. A palavra do Evangelho, efetivamente, não deve somente ser ouvida, mas também posta em prática (cf. Mt 7, 24; Lc 6, 46-47; Jo 14, 21.23-24; Tg 1, 22): a coerência nos comportamentos manifesta a adesão do crente e não se restringe ao âmbito estritamente eclesial e espiritual, mas abarca o homem em todo o seu viver e segundo todas as suas responsabilidades. Conquanto seculares, estas têm como sujeito o homem, vale dizer, aquele a quem Deus chama, mediante a Igreja, a participar do Seu dom salvífico.

Ao dom da salvação o homem deve corresponder, não com uma adesão parcial, abstrata ou verbal, mas com a sua vida inteira, segundo todas as relações que a conotam, de modo que nada se relegue ao âmbito profano e mundano, irrelevante ou alheio à salvação. Por isso a doutrina social não representa para a Igreja um privilégio, uma digressão, uma conveniência ou uma ingerência: é um direito seu evangelizar o social, ou seja, fazer ressoar a palavra libertadora do Evangelho no complexo mundo da produção, do trabalho, do empresariado, das finanças, do comércio, da política, do direito, da cultura, das comunicações sociais, em que vive o homem.

71 Este direito é, ao mesmo tempo, um dever, pois a Igreja não pode renunciar a ele sem se desmentir a si mesma e a sua fidelidade a Cristo: «Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (1 Cor 9, 16). A admonição que São Paulo dirige a si próprio ressoa na consciência da Igreja como um apelo a percorrer todas as vias da evangelização; não somente as que levam às consciências individuais, mas também as que conduzem às instituições públicas: de um lado não se deve atuar uma «redução errônea do fato religioso à esfera exclusivamente privada»[96], doutro lado não se pode orientar a mensagem cristã a uma salvação puramente ultraterrena, incapaz de iluminar a presença sobre a terra[97].

Pela relevância pública do Evangelho e da fé e pelos efeitos perversos da injustiça, vale dizer, do pecado, a Igreja não pode ficar indiferente às vicissitudes sociais[98]: «Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas »[99].

II. A NATUREZA DA DOUTRINA SOCIAL

a) Um saber iluminado pela fé

72 A doutrina social da Igreja não foi pensada desde o princípio como um sistema orgânico; mas foi se formando pouco a pouco, com progressivos pronunciamentos do Magistério sobre os temas sociais. Tal gênese torna compreensível o fato que tenham podido intervir algumas oscilações acerca da natureza, do método e da estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja. Precedido por um significativo aceno na «Laborem exercens»[100], um esclarecimento decisivo nesse sentido está contido na Encíclica «Sollicitudo rei socialis»: a doutrina social da Igreja pertence, não ao campo da ideologia, mas ao «da teologia e precisamente da teologia moral»[101]. Ela não é definível segundo parâmetros sócio-econômicos. Não é um sistema ideológico ou pragmático, que visa definir e compor as relações econômicas, políticas e sociais, mas uma categoria a se. É «a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão»[102].

73 A doutrina social, portanto, é de natureza teológica e especificamente teológico-moral, «tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas»[103]: «Ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história»[104]. Efetivamente, a doutrina social reflete os três níveis do ensinamento teológico-moral: o nível fundante das motivações; o diretivo das normas do viver social; o deliberativo das consciências, chamadas a mediar as normas objetivas e gerais nas situações sociais concretas e particulares. Estes três níveis definem implicitamente também o método próprio e a específica estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja.

74 A doutrina social tem o seu fundamento essencial na Revelação bíblica e na Tradição da Igreja. Neste manancial, que vem do alto, ela haure a inspiração e a luz para compreender, julgar e orientar a experiência humana e a história. Antes e acima de tudo está o projeto de Deus sobre a criação e, em particular, sobre a vida e o destino do homem, chamado à comunhão trinitária.

A fé, que acolhe a palavra divina e a põe em prática, interage eficazmente com a razão. A inteligência da fé, em particular da fé orientada à práxis, é estruturada pela razão e vale-se de todos os contributos que esta lhe oferece. Também a doutrina social, enquanto saber aplicado à contingência e à historicidade da praxe, conjuga juntas «fides et ratio»[105] e é expressão eloqüente da sua fecunda relação.

75 A fé e a razão constituem as duas vias cognoscitivas da doutrina social, em sendo duas as fontes nas quais esta haure: a Revelação e a natureza humana. O conhecer da fé compreende e dirige a vida do homem à luz do mistério histórico-salvífico, do revelar-se e doar-se de Deus em Cristo por nós homens. Esta inteligência da fé inclui a razão, mediante a qual esta explica e compreende a verdade revelada e a integra com a verdade da natureza humana, hauridas no projeto divino expresso pela criação[106], ou seja, a verdade integral da pessoa humana enquanto ser espiritual e corpóreo, em relação com Deus, com os outros seres humanos e com todas as demais criaturas[107].

O centrar-se sobre o mistério de Cristo, portanto, não enfraquece ou exclui o papel da razão e, por isso, não priva a doutrina social de plausibilidade racional e, portanto, da sua destinação universal. Dado que o mistério de Cristo ilumina o mistério do homem, a doutrina social confere plenitude de sentido à compreensão da dignidade humana e das exigências morais que a tutelam. A doutrina social da Igreja é um conhecer iluminado pela fé, que — precisamente por isso — expressa a sua maior capacidade de conhecimento. Ela dá razão a todos das verdades que afirma e dos deveres que comporta: pode encontrar acolhimento e aceitação por parte de todos.

b) Em diálogo cordial com todo o saber

76 A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos, qualquer que seja o saber donde provenham, e tem uma importante dimensão interdisciplinar: «Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, econômicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em se os contributos que delas provêm»[108]. A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas.

77 Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se evocar a natureza humana qual fonte e a razão qual via cognoscitiva da mesma fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria lógica interna, ou seja no argumentar que lhe é próprio.

Afirmar que a doutrina social deve ser adscrita antes à teologia que à filosofia não significa desconhecer o menosprezar o papel e o aporte filosófico. A filosofia é, efetivamente, instrumento apto e indispensável para uma correta compreensão de conceitos basilares da doutrina social — como a pessoa, a sociedade, a liberdade, a consciência, a ética, o direito, a justiça, o bem comum, a solidariedade, a subsidiariedade, o Estado —, compreensão tal que inspire uma convivência social harmoniosa. É a filosofia ainda a ressaltar a plausibilidade racional da luz que o Evangelho projeta sobre a sociedade e a exigir de cada inteligência e consciência a abertura e o assentimento à verdade.

78 Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências humanas e sociais[109]: pela parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A Igreja reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do fato de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia faz referência.

A abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja adquira competência, concretude e atualidade. Graças a elas, a Igreja pode para compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, de falar aos homens do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social «parte»[110].

Este diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e «a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação»[111].

c) Expressão do ministério de ensinamento da Igreja

79 A doutrina social é da Igreja porque a Igreja é o sujeito que a elabora, difunde e ensina. Essa não é prerrogativa de uma componente do corpo eclesial, mas da comunidade inteira: expressão do modo como a Igreja compreende a sociedade e se coloca em relação às suas estruturas e às suas mudanças. Toda a comunidade eclesial — sacerdotes, religiosos e leigos — concorre para constituir a doutrina social, segundo a diversidade, no seu interior, de tarefas, carismas e ministérios.

Os contributos multíplices e multiformes — expressões estas também do «sentido sobrenatural da fé (sensus fidei) do povo inteiro»[112] — são assumidos, interpretados e unificados pelo Magistério, que promulga o ensinamento social como doutrina da Igreja. O Magistério compete na Igreja àqueles que estão investidos do «munus docendi», ou seja, do ministério de ensinar no campo da fé e da moral com a autoridade recebida de Cristo. A doutrina social não é somente o fruto do pensamento e da obra de pessoas qualificadas, mas é o pensamento da Igreja, enquanto obra do Magistério, o qual ensina com a autoridade que Cristo conferiu aos Apóstolos e aos seus sucessores: o Papa e os Bispos em comunhão com ele[113].

80 Na doutrina social da Igreja atua o Magistério em todas as suas componentes e expressões. Primário é o Magistério universal do Papa e do Concílio: é este Magistério que determina a direção e assinala o desenvolvimento da doutrina social. Ele, por sua vez, é integrado pelo Magistério episcopal, que especifica, traduz e atualiza o seu ensino na concretude e peculiaridade das múltiplas e diferentes situações locais[114]. O ensinamento social dos Bispos oferece valiosos contributos e estímulos ao Magistério do Romano Pontífice. Atua-se assim uma circularidade, que exprime de fato a colegialidade dos Pastores unidos ao Papa no ensinamento social da Igreja. O complexo doutrinal que daí resulta compreende e integra assim o ensinamento universal dos Papas e o particular dos Bispos.

Enquanto parte do ensinamento moral da Igreja, a doutrina social reveste a mesma dignidade e possui autoridade idêntica à de tal ensinamento. Ela é Magistério autêntico, que exige a aceitação e a adesão por parte dos fiéis[115]. O peso doutrinal dos vários ensinamentos e o assentimento que requerem devem ser ponderados em função da sua natureza, do seu grau de independência em relação a elementos contingentes e variáveis, e da freqüência com que são reafirmados[116].

d) Por uma sociedade reconciliada na justiça e no amor

81 O objeto da doutrina social da Igreja é essencialmente o mesmo que constitui e motiva a sua razão de ser: o homem chamado à salvação e como tal confiado por Cristo à cura e à responsabilidade da Igreja[117]. Com a doutrina social, a Igreja se preocupa com a vida humana na sociedade, ciente de que da qualidade da experiência social, ou seja, das relações de justiça e de amor que a tecem, depende de modo decisivo a tutela e a promoção das pessoas, para as quais toda comunidade è constituída. Efetivamente, na sociedade estão em jogo a dignidade e os direitos das pessoas e a paz nas relações entre pessoas e entre comunidades de pessoas. Bens estes que a comunidade social deve perseguir e garantir.

Nesta perspectiva, a doutrina social cumpre uma função de anúncio mas também de denúncia.

Em primeiro lugar, o anúncio do que a Igreja tem de próprio: «uma visão global do homem e da humanidade»[118]. E isso não só no nível dos princípios, mas também prático. A doutrina social, com efeito, não oferece somente significados, valores e critérios de juízo, mas também as normas e as diretrizes de ação que daí decorrem[119]. Com a sua doutrina social, a Igreja não persegue fins de estruturação e organização da sociedade, mas de cobrança, orientação e formação das consciências.

A doutrina social comporta também um dever de denúncia, em presença do pecado: é o pecado de injustiça e de violência que de vário modo atravessa a sociedade e nela toma corpo[120]. Tal denúncia se faz juízo e defesa dos direitos ignorados e violados, especialmente dos direitos dos pobres, dos pequenos, dos fracos[121], e tanto mais se intensifica quanto mais as injustiças e as violências se estendem, envolvendo inteiras categorias de pessoas e amplas áreas geográficas do mundo, e dão lugar a questões sociais, ou seja, a opressões e desequilíbrios que conturbam as sociedades. Boa parte do ensinamento social da Igreja é solicitado e determinado pelas grandes questões sociais, de que quer ser resposta de justiça social.

82 O intento da doutrina social da Igreja é de ordem religiosa e moral[122]. Religioso porque a missão evangelizadora e salvífica da Igreja abraça o homem «na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social»[123]. Moral porque a Igreja visa a um «humanismo total»[124], vale dizer à «libertação de tudo aquilo que oprime o homem»[125] e ao «desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens»[126]. A doutrina social indica e traça os caminhos a percorrer por uma sociedade reconciliada e harmonizada na justiça e no amor, antecipadora na história, de modo incoativo e prefigurativo, daqueles «novos céus e … nova terra, nos quais habitará a justiça» (2Pd 3, 13).

e) Uma mensagem para os filhos da Igreja e para a humanidade

83 A primeira destinatária da doutrina social é a comunidade eclesial em todos os seus membros, porque todos têm responsabilidades sociais a assumir. A consciência é interpelada pelo ensinamento social para reconhecer e cumprir os deveres de justiça e de caridade na vida social. Tal ensinamento é luz de verdade moral, que suscita respostas apropriadas segundo a vocação e o ministério próprios de cada cristão. Nas tarefas de evangelização, a saber, de ensinamento, de catequese e de formação, que a doutrina social da Igreja suscita, essa é destinada a todo cristão, segundo as competências, os carismas, os ofícios e a missão de anúncio próprios de cada um[127].

A doutrina social implica, outrossim, responsabilidades referentes à construção, à organização e ao funcionamento da sociedade: obrigações políticas, econômicas, administrativas, vale dizer, de natureza secular, que pertencem aos fiéis leigos, não aos sacerdotes e aos religiosos[128]. Tais responsabilidades competem aos leigos de modo peculiar, em razão da condição secular do seu estado de vida e da índole secular da sua vocação[129]: mediante essas responsabilidades, os leigos põem em prática o ensinamento social e cumprem a sua missão secular da Igreja[130].

84 Além da destinação, primária e específica, aos filhos da Igreja, a doutrina social tem uma destinação universal. A luz do Evangelho, que a doutrina social reverbera sobre a sociedade, ilumina todos os homens, e cada consciência e inteligência se torna apta a colher a profundidade humana dos significados e dos valores por ela expressos, bem como a carga de humanidade e de humanização das suas normas de ação. De modo que todos, em nome do homem, da sua dignidade una e única, e da sua tutela e promoção na sociedade, todos, em nome do único Deus, Criador e fim último do homem, são destinatários da doutrina social da Igreja[131]. A doutrina social é um ensinamento expressamente dirigido a todos os homens de boa vontade[132] e efetivamente é escutada pelos membros de outras Igrejas e comunidades eclesiais, pelos sequazes de outras tradições religiosas e por pessoas que não pertencem a algum grupo religioso.

f) No signo da continuidade e da renovação

85 Orientada pela luz perene do Evangelho e constantemente atenta à evolução da sociedade, a doutrina social da Igreja caracteriza-se pela continuidade e pela renovação[133].

Essa manifesta em primeiro lugar a continuidade de um ensinamento que se remonta aos valores universais que derivam da Revelação e da natureza humana. Por este motivo a doutrina social da Igreja não depende das diversas culturas, das diferentes ideologias, das várias opiniões: ela é um ensinamento constante, que «se mantém idêntica na sua inspiração de fundo, nos seus “princípios de reflexão”, nos seus “critérios de julgamento”, nas suas basilares “diretrizes de ação” e, sobretudo, na sua ligação vital com o Evangelho do Senhor»[134]. Neste seu núcleo principal e permanente a doutrina social da Igreja atravessa a história, sem sofrer os condicionamentos e não corre o risco da dissolução.

Por outro lado, no seu constante voltar-se à história, deixando-se interpelar pelos eventos que nela se produzem, a doutrina social da Igreja manifesta uma capacidade de contínua renovação. A firmeza nos princípios não faz dela um sistema de ensinamentos rígido e inerte, mas um Magistério capaz de abrir-se às coisas novas, sem se desnaturar nelas[135]: um ensinamento sempre novo, «sujeito a necessárias e oportunas adaptações, sugeridas pela mudança das condições históricas e pelo incessante fluir dos acontecimentos, que incidem no desenrolar da vida dos homens e das sociedades»[136].

86 A doutrina social da Igreja se apresenta assim como um «canteiro» sempre aberto, em que a verdade perene penetra e permeia a novidade contingente, traçando caminhos inéditos de justiça e de paz. A fé não pretende aprisionar num esquema fechado a mutável realidade sócio-política[137]. É verdade antes o contrario: a fé é fermento de novidade e criatividade. O ensinamento que nela sempre se inicia «se desenvolve por meio de uma reflexão que é feita em permanente contato com as situações deste mundo, sob o impulso do Evangelho qual fonte de renovação»[138].

Mãe e Mestra, a Igreja não se fecha nem se retrai em si mesma, mas está sempre exposta, inclinada e voltada para o homem, cujo destino de salvação é a sua própria razão de ser. Ela é entre os homens o ícone vivente do Bom Pastor, que vai buscar e encontrar o homem onde ele se encontra, na condição existencial e histórica do seu viver. Aqui a Igreja se torna para ele encontro com o Evangelho, mensagem de libertação e de reconciliação, de justiça e de paz.

III. A DOUTRINA SOCIAL DO NOSSO TEMPO: ACENOS HISTÓRICOS

a) O início de um novo caminho

87 A locução doutrina social remonta a Pio XI[139] e designa o corpus doutrinal referente à sociedade que, a partir da Encíclica Rerum novarum[140] (1891) de Leão XIII, se desenvolveu na Igreja através do Magistério dos Romanos Pontífices e dos Bispos em comunhão com eles[141]. A solicitude social certamente não teve início com tal documento, porque a Igreja jamais deixou de se interessar pela sociedade; não obstante a Encíclica «Rerum novarum» dá início a um novo caminho: inserindo-se numa tradição plurissecular, ela assinala um novo início e um substancial desenvolvimento do ensinamento em campo social[142].

Na sua contínua atenção ao homem na sociedade, a Igreja acumulou assim um rico patrimônio doutrinal. Ele tem as suas raízes na Sagrada Escritura, especialmente no Evangelho e nos escritos apostólicos, e tomou forma e corpo na doutrina dos Padres da Igreja, dos grandes Doutores da Idade Média, constituindo uma doutrina na qual, mesmo sem pronunciamentos magisteriais explícitos e diretos, a Igreja se foi pouco a pouco reconhecendo.

88 Os eventos de natureza econômica que se deram no século XIX tiveram conseqüências sociais, políticas e culturais lacerantes. Os acontecimentos ligados à revolução industrial subverteram a secular organização da sociedade, levantando graves problemas de justiça e pondo a primeira grande questão social, a questão operária, suscitada pelo conflito entre capital e trabalho. Nesse quadro, a Igreja advertiu a necessidade de intervir de modo novo: as « res novae », constituídas por tais eventos, representavam um desafio ao seu ensinamento e motivavam uma especial solicitude pastoral para com as ingentes massas de homens e mulheres. Era necessário um renovado discernimento da situação, apto a delinear soluções apropriadas para problemas insólitos e inexplorados.

b) Da «Rerum novarum» aos nossos dias

89 Em resposta à primeira grande questão social, Leão XIII promulga a primeira encíclica social, a «Rerum novarum»[143]. Ela examina a condição dos trabalhadores assalariados, particularmente penosa para os operários das indústrias, afligidos por uma indigna miséria. A questão operária é tratada segundo a sua real amplitude: é explorada em todas as suas articulações sociais e políticas, para ser adequadamente e avaliada à luz dos princípios doutrinais baseados na Revelação, na lei e na moral natural.

A «Rerum novarum» enumera os erros que provocam o mal social, exclui o socialismo como remédio e expõe, precisando-a e atualizando-a, «a doutrina católica acerca do trabalho, do direito de propriedade, do princípio de colaboração contraposto à luta de classe como meio fundamental para a mudança social, sobre o direito dos fracos, sobre a dignidade dos pobres e sobre as obrigações dos ricos, sobre o aperfeiçoamento da justiça mediante a caridade, sobre o direito a ter associações profissionais»[144].

A «Rerum novarum» tornou-se a «carta magna» da atividade cristã em campo social[145]. O tema central da doutrina social da Encíclica é o da instauração de uma ordem social justa, em vista do qual é mister individuar critérios de juízo que ajudem a avaliar os ordenamentos sócio-políticos existentes e formular linhas de ação para uma sua oportuna transformação.

90 A « Rerum novarum » enfrentou a questão operária com um método que se tornará «um paradigma permanente »[146] para o desenvolvimento da doutrina social. Os princípios afirmados por Leão XIII serão retomados e aprofundados pelas encíclicas sociais sucessivas. Toda a doutrina social poderia ser entendida como uma atualização, um aprofundamento e uma expansão do núcleo originário de princípios expostos na «Rerum novarum». Com este texto, corajoso e de longo alcance, o Papa Leão XIII «conferiu à Igreja quase um “estatuto de cidadania” no meio das variáveis realidades da vida pública»[147] e «escreveu esta palavra decisiva»[148], que se tornou «um elemento permanente da doutrina social da Igreja»[149], afirmando que os graves problemas sociais «só podiam ser resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes»[150] e acrescentando também: «Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte»[151].

91 No início dos anos Trinta, em seguida à grave crise econômica de 1929, o Papa Pio XI publica a Encíclica «Quadragesimo anno» (1931)[152], comemorativa dos quarenta anos da «Rerum novarum». O Papa relê o passado à luz de uma situação econômico-social em que, à industrialização se ajuntara a expansão do poder dos grupos financeiros, em âmbito nacional e internacional. Era o período pós-bélico, em que se iam afirmando na Europa os regimes totalitários, enquanto se exacerbava a luta de classe. A encíclica adverte acerca da falta de respeito à liberdade de associação e reafirma os princípios de solidariedade e de colaboração para superar as antinomias sociais. As relações entre capital e trabalho devem dar-se sob o signo da colaboração[153].

A «Quadragesimo anno» reafirma o princípio segundo o qual o salário deve ser proporcionado não só às necessidades do trabalhador, mas também às de sua família. O Estado, nas relações com o setor privado, deve aplicar o princípio de subsidiariedade, princípio que se tornará um elemento permanente da doutrina social. A encíclica refuta o liberalismo entendido como concorrência ilimitada das forças econômicas, mas reconfirma o direito à propriedade privada, evocando-lhe a sua função social. Em uma sociedade por reconstruir desde as bases econômicas, que se torna ela mesma e toda inteira «a questão» a enfrentar, «Pio XI sentiu o dever e a responsabilidade de promover um maior conhecimento, uma mais exata interpretação e uma urgente aplicação da lei moral reguladora das relações humanas… para superar o conflito de classes e estabelecer uma nova ordem social baseada na justiça e na caridade»[154].

92 Pio XI não deixou de elevar a voz contra os regimes totalitários que durante o seu pontificado se afirmaram na Europa. Já no dia 29 de Junho de 1931 Pio XI havia protestado contra os abusos do regime totalitário fascista na Itália com a Encíclica «Non abbiamo bisogno»[155]. Em 1937 publicou a Encíclica «Mit brennender Sorge», sobre a situação da Igreja Católica no Reich Germânico (14 de Março de 1937)[156]. O texto da «Mit brennender Sorge» foi lido do púlpito em todas as Igrejas, depois de ter sido distribuído no máximo segredo. A encíclica aparecia após anos de abusos e de violências e fora expressamente pedida a Pio XI pelos bispos alemães, após as medidas cada vez mais coativas e repressivas tomadas pelo Reich em 1936, particularmente em relação aos jovens, obrigados a inscrever-se na «Juventude hitlerista». O Papa dirige-se diretamente aos sacerdotes e aos religiosos, aos fiéis leigos, para os incentivar e chamar à resistência, enquanto uma verdadeira paz entre a Igreja e o Estado não se restabelecesse. Em 1938, perante a difusão do anti-semitismo, Pio XI afirmou: «Somos espiritualmente semitas»[157].

Com a Carta encíclica «Divini Redemptoris», sobre o comunismo ateu e sobre a doutrina social cristã (19 de Março de 1937)[158], Pio XI criticou de modo sistemático o comunismo, definido como «intrinsecamente perverso»[159], e indicou como meios principais para pôr remédio aos males por ele produzidos, a renovação da vida cristã, o exercício da caridade evangélica, o cumprimento dos deveres de justiça no plano interpessoal e social, em vista do bem comum, a institucionalização de corpos profissionais e interprofissionais.

93 As Radiomensagens natalinas de Pio XII[160], juntamente com outros importantes pronunciamentos em matéria social, aprofundam a reflexão magisterial sobre uma nova ordem social, governado pela moral e pelo direito e fundado na justiça e na paz. Durante o seu pontificado, Pio XII atravessou os anos terríveis da Segunda Guerra Mundial e os tempos difíceis da reconstrução. Ele não publicou encíclicas sociais, mas manifestou constantemente, em numerosos contextos, a sua preocupação com a ordem internacional subvertida: «Nos anos da guerra e do após-guerra, o Magistério social de Pio XII representou para muitos povos de todos os continentes e para milhões de crentes e não crentes a voz da consciência universal (…). Com a sua autoridade moral e o seu prestígio, Pio XII levou a luz da sabedoria cristã a inumeráveis homens de todas as categorias e nível social»[161].

Uma das características fundamentais dos pronunciamentos de Pio XII está na importância dada à conexão entre moral e direito. O Papa insiste sobre a noção de direito natural, como alma de um ordenamento social concretamente operante quer no plano nacional quer no plano internacional. Um outro aspecto importante do ensinamento de Pio XII está na atenção dada às categorias profissionais e empresariais, chamadas a concorrer em plena consciência para a consecução do bem comum: «Pela sua sensibilidade e inteligência em detectar os “sinais dos tempos”, Pio XII pode considerar-se o precursor imediato do Concílio Vaticano II e do ensinamento social dos Papas que lhe sucederam»[162].

94 Os anos Sessenta abrem horizontes promissores: o reinício após as devastações da guerra, a descolonização da África, os primeiros tímidos sinais de um desgelo nas relações entre os dois blocos, americano e soviético. Neste clima, o beato João XXIII lê em profundidade os «sinais dos tempos»[163]. A questão social se está universalizando e abarca todos os países: ao lado da questão operária e da revolução industrial, se delineiam os problemas da agricultura, das áreas em via de desenvolvimento, do incremento demográfico e os referentes à necessidade de cooperação econômica mundial. As desigualdades, antes advertidas no interior das nações, aparecem no âmbito internacional e fazem emergir cada vez mais a situação dramática em que se encontra o Terceiro Mundo.

João XXIII, na Encíclica «Mater et Magistra»[164] (1961), «pretende atualizar os documentos já conhecidos e avançar no sentido de comprometer toda a comunidade cristã»[165]. As palavras-chave da encíclica são comunidade e socialização[166]: a Igreja é chamada, na verdade, na justiça e no amor, a colaborar com todos os homens para construir uma autêntica comunhão. Por tal via o crescimento econômico não se limitará a satisfazer as necessidades dos homens, mas poderá promover também a sua dignidade.

95 Com a Encíclica « Pacem in terris »[167], João XXIII põe de realce o tema da paz, numa época marcada pela proliferação nuclear. A «Pacem in terris» contém, ademais, uma primeira aprofundada reflexão da Igreja sobre os direitos; é a Encíclica da paz e da dignidade humana. Ela prossegue e completa o discurso da «Mater et Magistra » e, na direção indicada por Leão XIII, sublinha a importância da colaboração entre todos: é a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido também a «todas as pessoas de boa vontade»[168], que são chamados a uma «imensa tarefa de recompor as relações da convivência na verdade, na justiça, no amor, na liberdade»[169]. A «Pacem in terris» se detém sobre os poderes públicos da comunidade mundial, chamados a enfrentar «os problemas de conteúdo econômico, social, político ou cultural, (…) da alçada do bem comum universal»[170]. No décimo aniversário da «Pacem in terris», o Cardeal Maurice Roy, Presidente da Pontifícia Comissão Justiça e Paz, enviou a Paulo VI uma Carta juntamente com um documento com uma série de reflexões sobre a capacidade do ensinamento da Encíclica joanina de iluminar os problemas novos relacionados com a promoção da paz[171].

96 A Constituição pastoral «Gaudium et spes»[172] (1965), do Concílio Vaticano II, constitui uma significativa resposta da Igreja às expectativas do mundo contemporâneo. Na citada Constituição, «em sintonia com a renovação eclesiológica, se reflete numa nova concepção de ser comunidade dos crentes e povo de Deus. Ela suscitou, portanto, novo interesse pela doutrina contida nos documentos precedentes acerca do testemunho e da vida dos cristãos, como caminhos autênticos para tornar visível a presença de Deus no mundo»[173]. A «Gaudium et spes» traça o rosto de uma Igreja «verdadeiramente solidária com o gênero humano e com a sua história»[174], que caminha juntamente com a humanidade inteira e experimenta com o mundo a mesma sorte terrena, mas que ao mesmo tempo «é como que o fermento e a alma da sociedade humana, destinada a ser renovada em Cristo e transformada na família de Deus»[175].

A «Gaudium et spes» aborda organicamente os temas da cultura, da vida econômico-social, do matrimônio e da família, da comunidade política, da paz e da comunidade dos povos, à luz da visão antropológica cristã e da missão da Igreja. Tudo é considerado a partir da pessoa e em vista da pessoa: «a única criatura que Deus quis por se mesma»[176]. A sociedade, as suas estruturas e o seu desenvolvimento não podem ser queridos por si mesmos mas para o «aperfeiçoamento da pessoa humana»[177]. Pela primeira vez o Magistério solene da Igreja, no seu mais alto nível, se exprime tão amplamente acerca dos diversos aspectos temporais da vida cristã: «Deve reconhecer-se que a atenção da Constituição em relação às mudanças sociais, psicológicas, políticas, econômicas, morais e religiosas estimulou cada vez mais, no último vintênio, a preocupação pastoral da Igreja pelos problemas dos homens e o diálogo com o mundo»[178].

97 Um outro documento do Concílio Vaticano II muito importante no «corpus» da doutrina social da Igreja é a declaração «Dignitatis humanae»[179] (1965), no qual se proclama o direito à liberdade religiosa. O documento trata o tema em dois capítulos. No primeiro, de caráter geral, se afirma que o direito à liberdade religiosa tem o seu fundamento na dignidade da pessoa humana e afirmam que ele deve ser reconhecido e sancionado como direito civil no ordenamento jurídico da sociedade. O segundo capítulo aborda o tema à luz da Revelação esclarecendo as suas implicações pastorais, recordando tratar-se de um direito que concerne não somente às pessoas individualmente consideradas, ma também às diversas comunidades.

98 «O desenvolvimento é o novo nome da paz»[180] proclama solenemente Paulo VI na Encíclica «Populorum progressio»[181] (1967), que pode ser considerada uma amplificação do capítulo sobre a vida econômico-social da «Gaudium et spes», com a introdução porém de algumas novidades significativas. Em particular ela traça as coordenadas de um desenvolvimento integral do homem e de um desenvolvimento solidário da humanidade: «duas temáticas estas que devem considerar-se como eixos à volta dos quais se estrutura o tecido da encíclica. Querendo convencer os destinatários da urgência de uma ação solidária, o Papa apresenta o desenvolvimento como “a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” e especifica as suas características»[182]. Esta passagem não está circunscrita às dimensões meramente econômicas e técnicas, mas implica para cada pessoa a aquisição da cultura, o respeito da dignidade dos outros, o reconhecimento «dos valores supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles »[183]. O desenvolvimento favorável todos responde a uma exigência de justiça em escala mundial que garanta uma paz planetária e torne possível a realização de «um humanismo total»[184], governado pelos valores espirituais.

99 Nesta perspectiva, Paulo VI instituiu, em 1967, a Pontifícia Comissão «Justitia et Pax», realizando um voto dos Padres Conciliares, para os quais é «muito oportuna a criação de um organismo da Igreja universal, com o fim de despertar a comunidade dos católicos para que se promovam o progresso das regiões indigentes e a justiça social entre as nações»[185]. Por iniciativa de Paulo VI, a começar de 1968, a Igreja celebra no primeiro dia do ano o Dia Mundial da Paz. O mesmo Pontífice dá início à feliz tradição das Mensagens que se ocupam do tema de cada Dia Mundial da Paz, acrescendo assim o «corpus» da doutrina social.

100 No início dos anos Setenta, num clima turbulento de contestação fortemente ideológica, Paulo VI retoma a mensagem social de Leão XIII e a atualiza, por ocasião do octogésimo aniversário da «Rerum novarum», com a Carta apostólica «Octogesima adveniens»[186]. O Papa reflete sobre a sociedade pós-industrial com todos os seus complexos problemas salientando a insuficiência das ideologias para responder a tais desafios: a urbanização, a condição juvenil, a condição da mulher, o desemprego, as discriminações, a emigração, o incremento demográfico, o influxo dos meios de comunicação social, o ambiente natural.

101 Noventa anos depois da «Rerum novarum» João Paulo II dedica a Encíclica «Laborem exercens »[187] ao trabalho: bem fundamental para a pessoa, fator primário da atividade econômica e chave de toda a questão social. A «Laborem exercens » delineia uma espiritualidade e uma ética do trabalho, no contexto de uma profunda reflexão teológica e filosófica. O trabalho não deve ser entendido somente em sentido objetivo e material, mas há que se levar em conta a sua dimensão subjetiva, enquanto atividade que exprime sempre a pessoa. Além de ser o paradigma decisivo da vida social, o trabalho tem toda a dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização a vocação natural e sobrenatural da pessoa.

102. Com a Encíclica «Sollicitudo rei socialis»[188], João Paulo II comemora o vigésimo aniversário da «Populorum progressio» e aborda novamente o tema do desenvolvimento, para sublinhar dois dados fundamentais: «por um lado, a situação dramática do mundo contemporâneo, sob o aspecto do desenvolvimento que falta no Terceiro Mundo, e por outro lado, o sentido, as condições e as exigências dum desenvolvimento digno do homem»[189]. A Encíclica introduz a, diferença entre progresso e desenvolvimento, e afirma que «o verdadeiro desenvolvimento não pode limitar-se à multiplicação dos bens e dos serviços, isto é, àquilo que se possui, mas deve contribuir para a plenitude do “ser” do homem. Deste modo pretende-se delinear com clareza a natureza moral do verdadeiro desenvolvimento»[190]. João Paulo II, evocando o moto do pontificado de Pio XII, «Opus iustitiae pax», a paz como fruto da justiça, comenta: «Hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax, a paz como fruto da solidariedade»[191].

103 No centésimo aniversário da «Rerum novarum», João Paulo II promulga a sua terceira encíclica social, a «Centesimus annus»[192], da qual emerge a continuidade doutrinal de cem anos de Magistério social da Igreja. Retomando um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política, que fora o tema central da Encíclica precedente, o Papa escreve: «o princípio, que hoje designamos de solidariedade … várias vezes Leão XIII o enuncia, com o nome “amizade”…; desde Pio XI é designado pela expressão mais significativa “caridade social”, enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na linha das múltiplas dimensões atuais da questão social, falava de “civilização do amor”»[193]. João Paulo II realça como o ensinamento social da Igreja corre ao longo do eixo da reciprocidade entre Deus e o homem: reconhecer a Deus em cada homem e cada homem em Deus é a condição de um autêntico desenvolvimento humano. A análise articulada e aprofundada das «res novæ», e especialmente a grande guinada de 1989, com a derrocada do sistema soviético, contém um apreço pela democracia e pela economia livre, no quadro de uma indispensável solidariedade.

c) À luz e sob o impulso do Evangelho

104 Os documentos aqui evocados constituem as pedras fundamentais do caminho da doutrina social da Igreja dos tempos de Leão XIII aos nossos dias. Esta resenha sintética alongar-se-ia de muito se se levassem em conta todos os pronunciamentos motivados, mais do que por um tema específico, pela «preocupação pastoral de propor à comunidade cristã e a todos os homens de boa vontade os princípios fundamentais, os critérios universais e as orientações idôneas para sugerir as opções de fundo e a praxe coerente para cada situação concreta»[194].

Na elaboração e no ensinamento desta doutrina, a Igreja foi e é animada por intentos não teoréticos, mas pastorais, quando se encontra diante das repercussões das mutações sociais sobre os seres humanos individualmente tomados, sobre multidões de homens e mulheres, sobre a sua mesma dignidade humana, nos contextos em que «se procura uma organização temporal mais perfeita, sem que este progresso seja acompanhado de igual desenvolvimento espiritual»[195]. Por estas razões, se constituiu e desenvolveu a doutrina social: «um corpo doutrinal atualizado, que se articula à medida em que a Igreja, dispondo da plenitude da Palavra revelada por Cristo Jesus e com a assistência do Espírito Santo (cf. Jo 14, 16. 26; 16, 13-15), vai lendo os acontecimentos, enquanto eles se desenrolam no decurso da história»[196].

CAPÍTULO III – A PESSOA E OS SEUS DIREITOS

I. DOUTRINA SOCIAL E PRINCÍPIO PERSONALISTA

105 A Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem do próprio Deus vivo; imagem que encontra e é chamada a encontrar sempre mais profundamente plena explicação de si no mistério de Cristo, Imagem perfeita de Deus, revelador de Deus ao homem e do homem a si mesmo. A este homem, que recebeu do próprio Deus uma incomparável e inalienável dignidade, a Igreja se volta e lhe rende o serviço mais alto e singular, chamando-o constantemente à sua altíssima vocação, para que dela seja cada vez mais consciente e digno. Cristo, o Filho de Deus, «com a Sua encarnação, num certo sentido, se uniu a cada homem»[197]; por isso a Igreja reconhece como sua tarefa fundamental fazer com que tal união se possa continuamente atuar e renovar. Em Cristo Senhor, a Igreja indica e entende, ela mesma por primeiro, percorrer a via do homem[198], que convida a reconhecer em toda e qualquer pessoa, próxima ou distante, conhecido ou desconhecido, e sobretudo no pobre e em quem sofre, um irmão «pelo qual Cristo morreu» (1 Cor 8,11; Rm 14, 15)[199].

106 Toda a vida social é expressão do seu inconfundível protagonista: a pessoa humana. De tal fato a Igreja sempre soube, amiúde e de muitos modos, fazer-se intérprete autorizada, reconhecendo e afirmando a centralidade da pessoa humana em todo âmbito e manifestação da sociabilidade: «A sociedade humana é objeto da doutrina social da Igreja, visto que ela não se encontra nem fora nem acima dos homens socialmente unidos, mas existe exclusivamente neles e, portanto, para eles»[200]. Este importante reconhecimento encontra expressão na afirmação de que «longe de ser o objeto e o elemento passivo da vida social», o homem, pelo contrário, «é, e dela deve ser e permanecer, o sujeito, o fundamento e o fim»[201]. Nele, portanto, tem origem a vida social, a qual não pode renunciar a reconhecê-lo seu sujeito ativo e responsável e a ele deve ser finalizada toda e qualquer modalidade expressiva da sociedade.

107 O homem, tomado na sua concretude histórica, representa o coração e a alma do ensinamento social católico[202]. Toda a doutrina social se desenvolve, efetivamente, a partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana[203]. Mediante as multíplices expressões dessa consciência, a Igreja entendeu, antes de tudo, tutelar a dignidade humana perante toda tentativa de repropor imagens redutivas e distorcidas; ademais, ela tem repetidas vezes denunciado as muitas violações de tal dignidade. A história atesta que da trama das relações sociais emergem algumas dentre as mais amplas possibilidades de elevação do homem, mas aí se aninham também as mais execráveis desconsiderações da sua dignidade.

II. A PESSOA HUMANA «IMAGO DEI»

a) Criatura à imagem de Deus

108. A mensagem fundamental da Sagrada Escritura anuncia que a pessoa humana é criatura de Deus (cf. Sal 139, 14-18) e identifica o elemento que a caracteriza e distingue no seu ser à imagem de Deus: «Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher» (Gên 1, 27). Deus põe a criatura humana no centro e no vértice da criação: no homem (em hebraico «Adam»), plasmado com a terra («adamah»), Deus insufla-lhe pelas narinas o hálito da vida (cf. Gên 2, 7). Portanto, «por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas uma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com o seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar»[204].

109 A semelhança com Deus põe em luz o fato de que a essência e a existência do homem são constitucionalmente relacionadas com Deus do modo mais profundo[205]. É uma relação que existe por si mesma, não começa, por assim dizer, num segundo momento e não se acrescenta a partir de fora. Toda a vida do homem é uma pergunta e uma busca de Deus. Esta relação com Deus pode ser tanto ignorada como esquecida ou removida, mas nunca pode ser eliminada. Dentre todas as criaturas, com efeito, somente o homem é «“capaz”de Deus» («homo est Dei capax »)[206]. O ser humano é um ser pessoal criado por Deus para a relação com Ele, que somente na relação pode viver e exprimir-se e que tende naturalmente a Ele[207].

110 A relação entre Deus e o homem reflete-se na dimensão relacional e social da natureza humana. O homem, com efeito, não é um ser solitário, mas «por sua natureza íntima um ser social» e «sem relações com os outros não pode nem viver nem desenvolver seus dotes»[208]. Em relação a isso é muito significativo o fato de que Deus criou o ser humano como homem e mulher (cf. Gn 1, 27)[209]. Muito eloqüente é, efetivamente, «aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20). Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflete-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa»[210].

111 O homem e a mulher têm a mesma dignidade e são de igual nível e valor[211], não só porque ambos, na sua diversidade, são imagem de Deus, mas ainda mais profundamente porque é imagem de Deus o dinamismo de reciprocidade que anima o nós do casal humano[212]. Na relação de comunhão recíproca, homem e mulher realizam-se a si próprios profundamente, redescobrindo-se como pessoas através do dom sincero de si[213]. Seu pacto de união é apresentado nas Sagradas Escrituras como uma imagem do Pacto de Deus com os homens (cf. Os 1-3; Is 54; Ef 5, 21-33) e, ao mesmo tempo, como um serviço à vida[214]. O casal humano pode participar, assim, da criatividade de Deus: «Deus os abençoou: “Frutificai, disse Ele, e multiplicai-vos, enchei a terra”» (Gên 1, 28).

112 O homem e a mulher estão em relação com os outros antes de tudo como guardiães de sua vida[215]. « E ao homem pedirei conta da alma do homem, seu irmão » (Gn 9, 5), reafirma Deus a Noé após o dilúvio. Nesta perspectiva, a relação com Deus exige que se considere a vida do homem sagrada e inviolável[216]. O quinto mandamento «Não matarás» (Ex 20, 13; Dt 5, 17) tem valor porque só Deus é Senhor da vida e da morte[217]. O respeito que se deve à inviolabilidade e à integridade da vida física tem o seu cume no mandamento positivo: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19, 18), com que Jesus Cristo obriga a responsabilizar-se pelo próximo (cf. Mt 22, 37-40; Mc 12, 29-31; Lc 10, 27-28).

113 Com esta particular vocação para a vida, o homem e a mulher se encontram também diante de todas as outras criaturas. Eles podem e devem submetê-los ao próprio serviço e usufruir delas, mas o seu senhorio sobre o mundo exige o exercício da responsabilidade, não é uma liberdade de desfrute arbitrário e egoístico. Toda a criação, na verdade, tem o valor de «coisa boa » (cf. Gên 1, 10.12.18.21.25) aos olhos de Deus, que é o seu Autor. O homem deve descobrir e respeitar este valor: é este um desafio maravilhoso à sua inteligência, que o deve elevar como uma asa[218] rumo à contemplação da verdade de todas as suas criaturas, ou seja, daquilo que Deus viu de bom nelas. O Livro da Gênese ensina, efetivamente, que o domínio do homem sobre o mundo consiste em dar nome às coisas (cf. Gn 2, 19-20): com a denominação o homem deve reconhecer as coisas por aquilo que são e estabelecer com cada uma delas uma relação de responsabilidade[219].

114 O homem está em relação também consigo mesmo e pode refletir sobre si próprio. As Sagradas Escrituras falam, nesse sentido, do coração do homem. O coração designa precisamente a interioridade espiritual do homem, ou seja, aquilo que o distingue de todas as outras criaturas: com efeito, «todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração [dos homens], a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro» (Ecl 3, 11). O coração indica, ao fim e ao cabo, as faculdades espirituais mais próprias do homem, que são suas prerrogativas, enquanto criado à imagem do seu Criador: a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre[220]. Quando escuta a aspiração profunda do seu coração, o homem não pode deixar de fazer próprias as palavras de Santo Agostinho: « Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós »[221].

b) O drama do pecado

115 A admirável visão da criação do homem por parte de Deus é incindível do quadro dramático do pecado das origens. Com uma afirmação lapidar o apóstolo Paulo sintetiza a narração da queda do homem contida nas primeiras páginas da Bíblia: «por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte» (Rom 5, 12). O homem, contra a proibição de Deus, se deixa seduzir pela serpente e deita a mão à árvore da vida caindo em poder da morte. Com esse gesto o homem tenta forçar o seu limite de criatura, desafiando Deus, único Senhor do homem e fonte da vida. Um pecado de desobediência (cf. Rm 5, 19) que separa o homem de Deus[222].

Da Revelação sabemos que Adão, o primeiro homem, com a transgressão do mandamento de Deus, perde a santidade e a justiça em que estava constituído, recebidas não somente para si, mas para toda a humanidade: « ao ceder ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais»[223].

116 Na raiz das lacerações pessoais e sociais, que ofendem em vária medida o valor e a dignidade da pessoa humana, encontra-se uma ferida no íntimo do homem: «À luz da fé chamamos-lhe pecado, começando pelo pecado original, que cada um traz consigo desde o nascimento, como uma herança recebida dos primeiros pais, até aos pecados que cada um comete, abusando da própria liberdade»[224]. A conseqüência do pecado, enquanto ato de separação de Deus, é precisamente a alienação, isto é, a ruptura do homem não só com Deus, como também consigo mesmo, com os demais homens e com o mundo circunstante: «a ruptura com Deus desemboca dramaticamente na divisão entre os irmãos. Na descrição do “primeiro pecado”, a ruptura com Javé espedaçou, ao mesmo tempo, o fio da amizade que unia a família humana; tanto assim que as páginas do Gênesis que se seguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo acusador um contra o outro; depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por tirar-lhe a vida. Segundo a narração dos fatos de Babel, a conseqüência do pecado é a desagregação da família humana, que já começara com o primeiro pecado e agora chega ao extremo na sua forma social»[225]. Refletindo sobre o mistério do pecado não se pode deixar de considerar esta trágica concatenação de causa e de efeito.

117 O mistério do pecado se compõe de uma dúplice ferida, que o pecador abre no seu próprio flanco e na relação com o próximo. Por isso se pode falar de pecado pessoal e social: todo o pecado é pessoal sob um aspecto; sob um outro aspecto, todo o pecado é social, enquanto e porque tem também conseqüências sociais. O pecado, em sentido verdadeiro e próprio, é sempre um ato da pessoa, porque é um ato de liberdade de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade, mas a cada pecado se pode atribuir indiscutivelmente o caráter de pecado social, tendo em conta o fato de que «em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um se repercute, de algum modo, sobre os outros»[226]. Não é todavia legítima e aceitável uma acepção do pecado social que, mais ou menos inconscientemente, leve a diluir e quase a eliminar a sua componente pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades sociais. No fundo de cada situação de pecado encontra-se sempre a pessoa que peca.

118 Alguns pecados, ademais, constituem, pelo próprio objeto, uma agressão direta ao próximo. Tais pecados, em particular, se qualificam como pecados sociais. É igualmente social todo o pecado cometido contra a justiça, quer nas relações de pessoa a pessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer, ainda, nas da comunidade com a pessoa. É social todo o pecado contra os direitos da pessoa humana, a começar pelo direito à vida, incluindo a do nascituro, ou contra a integridade física de alguém; todo o pecado contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade de crer em Deus e de adorá-l’O; todo o pecado contra a dignidade e a honra do próximo. Social é todo o pecado contra o bem comum e contra as suas exigências, em toda a ampla esfera dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Enfim, é social aquele pecado que «diz respeito às relações entre as várias comunidades humanas. Estas relações nem sempre estão em sintonia com a desígnio de Deus, que quer no mundo justiça, liberdade e paz entre os indivíduos, os grupos, os povos»[227].

119 As conseqüências do pecado alimentam as estruturas de pecado, que se radicam no pecado pessoal e, portanto, estão sempre coligadas aos atos concretos das pessoas, que as introduzem, consolidam e tornam difíceis de remover. E assim se reforçam, se difundem e se tornam fontes de outros pecados, condicionando a conduta dos homens[228]. Trata-se de condicionamentos e obstáculos que duram muito mais do que as ações feitas no breve arco da vida de um indivíduo e que interferem também no processo de desenvolvimento dos povos, cujo retardo ou lentidão devem ser julgados também sob este aspecto[229]. As ações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as estruturas a que elas induzem parecem ser hoje sobretudo duas: «por outro lado, a sede do poder, com o objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: “a qualquer preço”»[230].

c) Universalidade do pecado e universalidade da salvação

120 A doutrina do pecado original, que ensina a universalidade do pecado, tem uma importância fundamental: «Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós» (1 Jo 1, 8). Esta doutrina induz o homem a não permanecer na culpa e a não tomá-la com leviandade, buscando continuamente bodes expiatórios nos outros homens e justificações no ambiente, na hereditariedade, nas instituições, nas estruturas e nas relações. Trata-se de um ensinamento que desmascara tais engodos.

A doutrina da universalidade do pecado, todavia, não deve ser desligada da consciência da universalidade da salvação em Jesus Cristo. Se dela isolada, gera uma falsa angústia do pecado e uma consideração pessimista do mundo e da vida, que induz a desprezar as realizações culturais e civis dos homens.

121 O realismo cristão vê os abismos do pecado, mas na luz da esperança, maior do que todo e qualquer mal, dada pelo ato redentor de Cristo que destruiu o pecado e a morte (cf. Rm 5, 18-21; 1 Cor 15, 56-57): «N’Ele, Deus reconciliou o homem consigo»[231]. Cristo, Imagem de Deus (cf. 2 Cor 4, 4; Col 1, 15), é Aquele que ilumina plenamente e leva ao cumprimento a imagem e semelhança de Deus no homem. A Palavra que se fez homem em Jesus Cristo é desde sempre a vida e a luz do homem, luz que ilumina todo homem (cf. Jo 1, 4.9). Deus quer no único mediador Jesus Cristo, Seu Filho, a salvação de todos os homens (cf. 1 Tm 2,4-5). Jesus é, ao mesmo tempo, o Filho de Deus e o novo Adão, ou seja, o novo homem (cf. 1 Cor 15, 47-49; Rm 5,14): «Cristo, novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta perfeitamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade da sua vocação»[232]. N’Ele fomos por Deus predestinados para sermos «conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos» (Rm 8,29).

122 A realidade nova que Jesus nos dá não se enxerta na natureza humana, não se lhe acresce a partir de fora: é, antes, aquela realidade de comunhão com o Deus trinitário para a qual os homens desde sempre são orientados no mais profundo do seu ser, graças à sua semelhança criatural com Deus; mas trata-se também de uma realidade que eles não podem alcançar somente com as próprias forças. Mediante o Espírito de Jesus Cristo, Filho encarnado de Deus, no qual tal realidade de comunhão é já realizada de modo singular, os homens são acolhidos como filhos de Deus (cf. Rm 8, 14-17; Gal 4,4-7). Por meio de Cristo, participamos da natureza de Deus, que se doa infinitamente mais « do que tudo quanto pedimos ou entendemos» (Ef 3,20). O que os homens já receberam não é senão uma antecipação ou um « penhor » (2 Cor 1, 22; Ef 1,14) daquilo que obterão completamente somente diante de Deus, visto «face a face» (1 Cor 13,12), ou seja, um penhor da vida eterna: « Ora, a vida eterna consiste em que te conheçam a Ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste» (Jo 17, 3).

123 A universalidade desta esperança inclui, ademais dos homens e das mulheres de todos os povos, também o céu e a terra: «Que os céus, das alturas, derramem o seu orvalho, que as nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e brote a felicidade e ao mesmo tempo faça germinar a justiça! Sou eu, o Senhor, a causa de tudo isso» (Is 45, 8). Segundo o Novo Testamento, com efeito, a criação inteira juntamente com toda a humanidade aguardam o Redentor: submetida à caducidade, avança plena de esperança, entre gemidos e dores de parto, esperando ser libertada da corrupção (cf. Rm 8, 18-22).

III. A PESSOA HUMANA E OS SEUS VÁRIOS PERFIS

124 Fazendo tesouro da admirável mensagem bíblica, a doutrina social da Igreja se detém antes de tudo sobre as principais e incindíveis dimensões da pessoa humana, de modo a poder captar os matizes mais relevantes do seu mistério e da sua dignidade. Com efeito não faltaram no passado, e aparecem ainda dramaticamente no cenário da história atual, multíplices concepções redutivas, de caráter ideológico ou devidas simplesmente a formas difusas do costume e do pensamento, referentes à consideração do homem, da sua vida e dos seus destinos, unificadas pela tentativa de ofuscar-lhe a imagem através da enfatização de uma só das suas características, em detrimento das demais[233].

125 A pessoa não pode jamais ser pensada unicamente como absoluta individualidade, edificada por si mesma ou sobre si mesma, como se as suas características próprias não dependessem senão de si mesmas. Nem pode ser pensada como pura célula de um organismo disposto a reconhecer-lhe, quando muito, um papel funcional no interior de um sistema. As concepções redutivas da plena verdade do homem foram já freqüentes vezes objeto da solicitude social da Igreja, que não deixou de elevar a sua voz contra estas e outras perspectivas, drasticamente redutivas, preocupando-se, antes, em anunciar que «os indivíduos não nos aparecem desligados entre si quais grãos de areia, mas sim unidos por relações (…) orgânicas, harmoniosas e mútuas»[234] e que, vice-versa, o homem não pode ser considerado «simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social»[235], cuidando destarte que à afirmação do primado da pessoa não correspondesse uma visão individualista ou massificada.

126 A fé cristã, ao mesmo tempo em que convida a procurar em toda a parte o que é bom e digno do homem (cf. 1 Tes 5,21), «situa-se num plano superior e, algumas vezes, oposto ao das ideologias, na medida em que ela reconhece Deus, transcendente e criador, o qual interpela o homem como liberdade responsável, através de toda a gama do criado»[236].

A doutrina social ocupa-se de diferentes dimensões do mistério do homem, que exige ser abordado «na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social»[237], com uma atenção específica, de sorte a consentir a sua valoração mais pontual.

A) A UNIDADE DA PESSOA

127 O homem foi criado por Deus como unidade de alma e corpo[238]. «A alma espiritual e imortal é o princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo qual este existe como um todo — “corpore et anima unus” — enquanto pessoa. Estas definições não indicam apenas que o corpo, ao qual é prometida a ressurreição, também participará da glória; elas lembram igualmente a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades corpóreas e sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios atos morais»[239].

128 Mediante a sua corporeidade o homem unifica em si os elementos do mundo material, «que nele assim atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor»[240]. Esta dimensão permite ao homem inserir-se no mundo material, lugar da sua realização e da sua liberdade, não como numa prisão ou num exílio. Não é lícito desprezar a vida corporal; o homem, ao contrário, «deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à ressurreição no último dia»[241]. A dimensão corporal, contudo, após a ferida original, faz com que o homem experimente as rebeliões do corpo e as perversas inclinações do coração, sobre as quais ele deve sempre vigiar para não se deixar escravizar e para não se tornar vítima de uma visão puramente terrena da vida.

Com a espiritualidade o homem supera a totalidade das coisas e penetra na estrutura espiritual mais profunda da realidade. Quando se volta ao seu coração, isto é, quando reflete sobre o próprio destino, o homem se descobre superior ao mundo material, pela sua dignidade única de interlocutor de Deus, sob cujo olhar decide a sua própria sorte. Ele, na sua vida interior, transcende o universo sensível e material, reconhece «em si mesmo a alma espiritual e imortal» e sabe não ser «somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana»[242].

129 O homem, portanto, tem duas diferentes características: é um ser material, ligado a este mundo mediante o seu corpo, e um ser espiritual, aberto à transcendência e à descoberta de «uma verdade mais profunda», em razão de sua inteligência, com a qual participa «da luz da inteligência divina»[243]. A Igreja afirma: «A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a “forma” do corpo; ou seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza»[244]. Nem o espiritualismo, que despreza a realidade do corpo, nem o materialismo, que considera o espírito mera manifestação da matéria, dão conta da natureza complexa, da totalidade e da unidade do ser humano.

B) ABERTURA À TRANSCENDÊNCIA E UNICIDADE DA PESSOA

a) Aberta à transcendência

130 À pessoa humana pertence a abertura à transcendência: o homem é aberto ao infinito e a todos os seres criados. É aberto antes de tudo ao infinito, isto é, a Deus, porque com a sua inteligência e a sua vontade se eleva acima de toda a criação e de si mesmo, torna-se independente das criaturas, é livre perante todas as coisas criadas e tende à verdade e ao bem absolutos. É aberto também ao outro, aos outros homens e ao mundo, porque somente enquanto se compreende em referência a um tu pode dizer eu. Sai de si, da conservação egoística da própria vida, para entrar numa relação de diálogo e de comunhão com o outro.

A pessoa é aberta à totalidade do ser, ao horizonte ilimitado do ser. Tem em si a capacidade de transcender cada objeto particular que conhece, efetivamente, graças a esta sua abertura ao ser sem confins. A alma humana é, num certo sentido, pela sua dimensão cognoscitiva, todas as coisas: «todas as coisas imateriais gozam de uma certa infinidade, enquanto abraçam tudo, ou porque se trata da essência de uma realidade espiritual que serve de modelo e semelhança de tudo, como é no caso de Deus, ou porque possui a semelhança de tudo, ou em ato como nos Anjos, ou em potência como nas almas»[245].

b) Única e irrepetível

131 O homem existe como ser único e irrepetível, existe com « eu», capaz de autocompreender-se, de autopossuir-se, de autodeterminar-se. A pessoa humana é um ser inteligente e consciente, capaz de refletir sobre si mesma e, portanto, de ter consciência dos próprios atos. Não são, porém, a inteligência, a consciência e a liberdade a definir a pessoa, mas é a pessoa que está na base dos atos de inteligência, de consciência, de liberdade. Tais atos podem mesmo faltar, sem que por isso o homem cesse de ser pessoa.

A pessoa humana há de ser sempre compreendida na sua irrepetível e ineliminável singularidade. O homem existe, com efeito, antes de tudo como subjetividade, como centro de consciência e de liberdade, cuja história única e não comparável com nenhuma outra expressa a sua irredutibilidade a toda e qualquer tentativa de constrangê-lo dentro de esquemas de pensamento ou sistemas de poder, ideológicos ou não. Isto impõe, antes de tudo, a exigência não somente do simples respeito por parte de todos, e especialmente das instituições políticas e sociais e dos seus responsáveis para com cada homem desta terra, mas bem mais, isto comporta que o primeiro compromisso de cada um em relação ao outro e sobretudo destas mesmas instituições, seja precisamente a promoção do desenvolvimento integral da pessoa.

c) O respeito da dignidade humana

132 Uma sociedade justa pode ser realizada somente no respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana. Esta representa o fim último da sociedade, que a ela é ordenada: «Também a ordem social e o seu progresso devem subordinar-se constantemente ao bem da pessoa, visto que a ordem das coisas deve submeter-se à ordem pessoal e não o contrário»[246]. O respeito pela dignidade da pessoa não pode absolutamente prescindir da obediência ao princípio de considerar «o próximo como “outro eu”, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente»[247]. É necessário, portanto, que todos os programas sociais, científicos e culturais sejam orientados pela consciência do primado de cada ser humano[248].

133 Em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada para fins alheios ao seu mesmo progresso, que pode encontrar cumprimento pleno e definitivo somente em Deus e em Seu projeto salvífico: efetivamente o homem, na sua interioridade, transcende o universo e é a única criatura que Deus quis por si mesma[249]. Por esta razão nem a sua vida, nem o desenvolvimento do seu pensamento, nem os seus bens, nem os que compartilham as sua história pessoal e familiar, podem ser submetidos a injustas restrições no exercício dos próprios direitos e da própria liberdade.

A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro. È necessário portanto que as autoridades públicas vigiem com atenção, para que toda a restrição da liberdade ou qualquer gênero de ônus imposto ao agir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e para que seja garantida a efetiva praticabilidade dos direitos humanos. Tudo isto, uma vez mais, se funda na visão do homem como pessoa, ou seja, como sujeito ativo e responsável do próprio processo de crescimento, juntamente com a comunidade de que faz parte.

134 As autênticas transformações sociais são efetivas e duradouras somente se fundadas sobre mudanças decididas da conduta pessoal. Nunca será possível uma autêntica moralização da vida social, senão a partir das pessoas e em referência a elas: efetivamente: «o exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa»[250]. Às pessoas cabe evidentemente o desenvolvimento daquelas atitudes morais fundamentais em toda a convivência que se queira dizer verdadeiramente humana (justiça, honestidade, veracidade, etc.), que de modo algum poderá ser simplesmente esperada dos outros ou delegada às instituições. A todos, e de modo particular àqueles que de qualquer modo detêm responsabilidades políticas, jurídicas ou profissionais em relação aos outros, incumbe o dever de ser consciência vígil da sociedade e, eles mesmos por primeiro, ser testemunhas de uma convivência civil e digna do homem.

C) A LIBERDADE DA PESSOA

a) Valor e limites da liberdade

135 O homem pode orientar-se para o bem somente na liberdade, que Deus lhe deu como sinal altíssimo da Sua imagem[251]: «Deus quis “deixar o homem nas mãos do seu desígnio” (cf. Eclo 15, 14), para que ele procure espontaneamente o seu Criador e, aderindo livremente a Ele, consiga a plena e bem-aventurada perfeição. A dignidade humana exige, portanto, que o homem atue segundo a sua consciente e livre escolha, isto é, movido e determinado por convicção pessoal interior, e não por um impulso interior cego, ou por mera coação externa»[252].

O homem justamente aprecia a liberdade e com paixão a busca: justamente quer e deve formar e guiar, de sua livre iniciativa, a sua vida pessoal e social, assumindo por ela plena responsabilidade[253]. A liberdade, com efeito, não só muda convenientemente o estado de coisas externas ao homem, mas determina o crescimento do seu ser pessoa, mediante escolhas conformes ao verdadeiro bem[254]: desse modo, o homem gera-se a si próprio, é pai do próprio ser[255], constrói a ordem social[256].

136 A liberdade não se opõe à dependência criatural do homem para com Deus[257]. A Revelação ensina que o poder de determinar o bem e o mal não pertence ao homem, mas somente a Deus (cf. Gn 2, 16-17). «O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer “de todas as árvores do jardim”. Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da “árvore da ciência do bem e do mal”, chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização, precisamente nesta aceitação»[258].

137 O reto exercício do livre arbítrio exige precisas condições de ordem econômica, social, política e cultural que «são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os fortes como os frágeis à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina»[259]. A libertação das injustiças promove a liberdade e a dignidade humana: porém é «necessário, antes de tudo, apelar para as capacidades espirituais e morais da pessoa e para a exigência permanente de conversão interior, se se quiser obter mudanças econômicas e sociais que estejam realmente ao serviço do homem»[260].

b) O vínculo da liberdade com a verdade e a lei natural

138. No exercício da liberdade, o homem põe atos moralmente bons, construtivos da pessoa e da sociedade, quando obedece à verdade, ou seja, quando não pretende ser criador e senhor absoluto desta última e das normas éticas[261]. A liberdade, com efeito, «não tem o seu ponto de partida absoluto e incondicionado em si própria, mas na existência em que se encontra e que representa para ela, simultaneamente, um limite e uma possibilidade. É a liberdade de uma criatura, ou seja, uma liberdade dada, que deve ser acolhida como um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade»[262]. Caso contrário, morre como liberdade, destrói o homem e a sociedade[263].

139 A verdade sobre o bem e o mal é reconhecida prática e concretamente pelo juízo da consciência, o qual leva a assumir a responsabilidade do bem realizado e do mal cometido: «Desta forma, no juízo prático da consciência, que impõe à pessoa a obrigação de cumprir um determinado ato, revela-se o vínculo da liberdade com a verdade. Precisamente por isso a consciência se exprime com atos de “juízo” que refletem a verdade do bem, e não com “decisões” arbitrárias. E a maturidade e responsabilidade daqueles juízos — e, em definitivo, do homem que é o seu sujeito — medem-se, não pela libertação da consciência da verdade objetiva em favor de uma suposta autonomia das próprias decisões, mas, ao contrário, por uma procura insistente da verdade deixando-se guiar por ela no agir»[264].

140 O exercício da liberdade implica a referência a uma lei moral natural, de caráter universal, que precede e unifica todos os direitos e deveres[265]. A Lei natural «não é senão a luz do intelecto infusa por Deus em nós, graças à qual conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a Deus ao homem na criação»[266] e consiste na participação na Sua lei eterna, a qual se identifica com o próprio Deus[267]. Esta lei é chamada natural porque a razão que a promulga é própria da natureza humana. Ela é universal, estende-se a todos os homens enquanto estabelecida pela razão. Nos seus preceitos principais, a lei divina e natural é exposta no Decálogo e indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral[268]. Ela tem como eixo a aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo o bem, e bem assim o sentido do outro como igual a si mesmo. A lei natural exprime a dignidade da pessoa humana e estabelece as bases dos seus direitos e dos seus deveres fundamentais[269].

141 Na diversidade das culturas, a lei natural liga os homens entre si, impondo princípios comuns. Por quanto a sua aplicação requeira adaptações à multiplicidade de condições de vida, segundo os lugares, as épocas e as circunstâncias[270], ela é imutável, permanece «sob o influxo das idéias e dos costumes e constitui a base para o seu progresso… Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la, nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades»[271].

Os seus preceitos, todavia, não são percebidos por todos de modo claro e imediato. As verdades religiosas e morais podem ser conhecidas «por todos e sem dificuldade, com firme certeza e sem mistura de erro»[272], somente com a ajuda da Graça e da Revelação. A lei natural é um fundamento preparado por Deus para a Lei revelada e para a Graça, em plena harmonia com a obra do Espírito[273].

142 A lei natural, que é lei de Deus, não pode ser cancelada pela iniqüidade humana[274]. Ela põe o fundamento moral indispensável para edificar a comunidade dos homens e para elaborar a lei civil que tira conseqüências de natureza concreta e contingente dos princípios da lei natural[275]. Se se ofusca a percepção da universalidade da lei moral, não se pode edificar uma comunhão real e duradoura com o outro, porque sem uma convergência para a verdade e o bem, «de forma imputável ou não, os nossos atos ferem a comunhão das pessoas, com prejuízo para todos»[276]. Somente uma liberdade radicada na comum natureza pode tornar todos os homens responsáveis e é capaz de justificar a moral pública. Quem se autoproclama medida única das coisas e da verdade não pode conviver e colaborar com os próprios semelhantes[277].

143 A liberdade é misteriosamente inclinada a trair a abertura à verdade e ao bem humano e, muito freqüentemente, prefere o mal e o fechamento egoístico, arvorando-se em divindade criadora do bem e do mal: «Estabelecido por Deus na justiça, o homem, seduzido pelo Maligno, logo no começo da história — lê-se na Gaudium et spes —, abusou da sua liberdade, erguendo-se contra Deus e desejando alcançar o seu fim à margem de Deus. […] Recusando muitas vezes reconhecer Deus como seu princípio, o homem, por isso mesmo, desfaz a justa ordenação para o seu fim último e simultaneamente para consigo mesmo e também para com os outros homens e todas as coisas criadas»[278]. A liberdade do homem necessita, portanto, de ser libertada. Cristo, com a força do Seu mistério pascal liberta o homem do amor desordenado de si mesmo[279], que é fonte do desprezo do próximo e das relações caracterizadas pelo domínio sobre o outro; Ele revela que a liberdade se realiza no dom sincero de si[280] e, com o Seu sacrifício na Cruz, reintroduz todo homem na comunhão com Deus e com os próprios semelhantes.

D) A IGUALDADE EM DIGNIDADE DE TODAS AS PESSOAS

144. «Deus não faz distinção de pessoas» (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2, 6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e semelhança[281]. A Encarnação do Filho de Deus manifesta a igualdade de todas as pessoas quanto à dignidade: «Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3, 28; cf. Rm 10, 12; 1 Cor 12, 13; Col 3, 11).

Uma vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, a dignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os outros homens[282]. Este é o fundamento último da radical igualdade e fraternidade entre os homens independentemente da sua raça, nação, sexo, origem, cultura, classe.

145 Somente o reconhecimento da dignidade humana pode tornar possível o crescimento comum e pessoal de todos (cf. Tg 2, 1-9). Para favorecer um semelhante crescimento é necessário, em particular, apoiar os últimos, assegurar efetivamente condições de igual oportunidade entre homem e mulher, garantir uma objetiva igualdade entre as diversas classes sociais perante a lei[283].

Também nas relações entre povos e Estados, condições de eqüidade e de paridade são o pressuposto para um autêntico progresso da comunidade internacional[284]. Apesar dos avanços nesta direção, não se deve esquecer de que ainda existem ainda muitas desigualdades e formas de dependência[285].

A uma igualdade no reconhecimento da dignidade de cada homem e de cada povo, deve corresponder a consciência de que a dignidade humana poderá ser salvaguardada e promovida somente de forma comunitária, por parte de toda a humanidade. Somente pela ação concorde dos homens e dos povos sinceramente interessados no bem de todos os outros, é que se pode alcançar uma autêntica fraternidade universal[286]; vice-versa, a permanência de condições de gravíssima disparidade e desigualdade empobrece a todos.

146 O “masculino” e o “feminino” diferenciam dois indivíduos de igual dignidade, que porém não refletem uma igualdade estática, porque o específico feminino é diferente do específico masculino e esta diversidade na igualdade é enriquecedora e indispensável para uma harmoniosa convivência humana: «A condição para assegurar a justa presença da mulher na Igreja e na sociedade é a análise mais penetrante e mais cuidada dos fundamentos antropológicos da condição masculina e feminina, de forma a determinar a identidade pessoal própria da mulher na sua relação de diversidade e de recíproca complementaridade com o homem, não só no que se refere às posições que deve manter e às funções que deve desempenhar, mas também e mais profundamente no que concerne a sua estrutura e o seu significado pessoal»[287].

147 A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e homem se completam mutuamente, não somente do ponto de vista físico e psíquico, mas também ontológico. É somente graças a essa dualidade do «masculino» e do «feminino» que o «humano» se realiza plenamente. É «a unidade dos dois»[288], ou seja, uma “unidualidade” relacional, que consente a cada um sentir a própria relação interpessoal e recíproca como um dom que é ao mesmo tempo uma missão: «A esta “unidade dos dois”, está confiada por Deus não só a obra da procriação e a vida da família, mas a construção mesma da história»[289]. «A mulher é “auxiliar” para o homem, assim como o homem é “auxiliar” para a mulher!»[290]: no seu encontro realiza-se uma concepção unitária da pessoa humana, baseada não na lógica do egocentrismo e da auto-afirmação, mas na lógica do amor e da solidariedade.

148 As pessoas deficientes são sujeitos plenamente humanos, titulares de direitos e deveres: «apesar das limitações e dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nas suas faculdades, põem mais em relevo a dignidade e a grandeza do homem»[291]. Dado que a pessoa deficiente é um sujeito com todos os seus direitos, ela deve ser ajudada a participar na vida familiar e social em todas as suas dimensões e em todos os níveis acessíveis às suas possibilidades.

É necessário promover com medidas eficazes e apropriadas os direitos da pessoa deficiente: «Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma negação da humanidade comum admitir à vida da sociedade, e portanto ao trabalho, só os membros na plena posse das funções do seu ser, porque, procedendo desse modo, recair-se-ia numa forma grave de discriminação, a dos fortes e sãos contra os fracos e doentes»[292]. Uma grande atenção deverá ser reservada não só às condições físicas e psicológicas de trabalho, à justa remuneração, à possibilidade de promoções e à eliminação dos diversos obstáculos, mas também às dimensões afetivas e sexuais da pessoa deficiente: «Também ela precisa de amar e de ser amada, precisa de ternura, de proximidade, de intimidade»[293], segundo as próprias possibilidades e no respeito da ordem moral, que é a mesma para os sãos e para os que têm uma deficiência.

E) SOCIABILIDADE HUMANA

149 A pessoa é constitutivamente um ser social[294], porque assim a quis Deus que a criou[295]. A natureza do homem se patenteia, destarte, como natureza de um ser que responde às próprias necessidades a base de uma subjetividade relacional, ou seja, à maneira de um ser livre e responsável, que reconhece a necessidade de integrar-se e de colaborar com os próprios semelhantes e é capaz de comunhão com eles na ordem do conhecimento e do amor: «Uma sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de maneira orgânica por um princípio de unidade que ultrapassa cada uma delas. Assembléia ao mesmo tempo visível e espiritual, uma sociedade que perdura no tempo; ela recolhe o passado e prepara o futuro»[296].

Importa pôr de manifesto que a vida comunitária é uma característica natural que distingue o homem do resto das criaturas terrenas. O agir social comporta um sinal particular do homem e da humanidade, o de uma pessoa operante em uma comunidade de pessoas: este sinal determina a sua qualificação interior e constitui, num certo sentido, a sua própria natureza[297]. Tal característica relacional, à luz da fé, adquire um sentido mais profundo e estável. Feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), e constituído no universo visível para viver em sociedade (cf. Gên 2, 20.23) e dominar a terra (cf. Gn 1, 26.28-30), a pessoa humana é, por isso, desde o princípio, chamada à vida social: «Deus não criou o homem como um “ser solitário”, mas o quis como um “ser social”. A vida social não é, portanto, extrínseca ao homem, dado que ele não pode crescer nem realizar a sua vocação senão em relação com os outros»[298].

150 A sociabilidade humana não desemboca automaticamente na comunhão das pessoas, no dom de si. Por causa da soberba e do egoísmo, o homem descobre em si gérmenes de insociabilidade, de fechamento individualista e de opressão do outro[299]. Toda sociedade digna desse nome pode considerar estar na verdade quando cada membro seu, graças à própria capacidade de conhecer o bem, persegue-o para si e para os outros. É por amor do bem próprio e de outrem que se dá a união em grupos estáveis, tendo como fim a conquista de um bem comum. Também as várias sociedades devem adentrar por relações de solidariedade, de comunicação e de colaboração, a serviço do homem e do bem comum[300].

151 A sociabilidade humana não é uniforme, mas assume multíplices expressões. O bem comum depende, efetivamente, de um são pluralismo social. As múltiplas sociedades são chamadas a constituir um tecido unitário e harmônico, onde cada uma possa conservar e desenvolver a própria fisionomia e autonomia. Algumas sociedades, como a família, a comunidade civil e a comunidade religiosa são mais imediatamente conexas com a íntima natureza do homem, enquanto outras procedem da vontade livre: «A fim de favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a criação de associações e instituições de livre escolha, “com fins econômicos, culturais, sociais, esportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial”. Esta “socialização” exprime, igualmente, a tendência natural que impele os seres humanos a se associarem para atingir objetivos que ultrapassam as capacidades individuais. Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente seu espírito de iniciativa e de responsabilidade. Ajuda a garantir seus direitos»[301].

III. OS DIREITOS HUMANOS

a) O valor dos direitos humanos

152 O movimento rumo à identificação e à proclamação dos direitos do homem é um dos mais relevantes esforços para responder de modo eficaz às exigências imprescindíveis da dignidade humana[302]. A Igreja entrevê em tais direitos a extraordinária ocasião que o nosso tempo oferece para que, mediante o seu afirmar-se, a dignidade humana seja mais eficazmente reconhecida e promovida universalmente como característica impressa pelo Deus Criador na Sua criatura[303]. O Magistério da Igreja não deixou de apreciar positivamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, que João Paulo II definiu como «uma pedra miliária no caminho do progresso moral da humanidade»[304].

153 A raiz dos direitos do homem, com efeito, há de ser buscada na dignidade que pertence a cada ser humano[305]. Tal dignidade, conatural à vida humana e igual em cada pessoa, se apreende antes de tudo com a razão. O fundamento natural dos direitos se mostra ainda mais sólido se, à luz sobrenatural, se considerar que a dignidade humana, doada por Deus e depois profundamente ferida pelo pecado, foi assumida e redimida por Jesus Cristo mediante a Sua encarnação, morte e ressurreição[306].

A fonte última dos direitos humanos não se situa na mera vontade dos seres humanos[307], na realidade do Estado, nos poderes públicos, mas no mesmo homem e em Deus seu Criador. Tais direitos são «universais, invioláveis e inalienáveis»[308]. Universais, porque estão presentes em todos os seres humanos, sem exceção alguma de tempo, de lugar e de sujeitos. Invioláveis, enquanto «inerentes à pessoa humana e à sua dignidade»[309] e porque «seria vão proclamar os direitos, se simultaneamente não se envidassem todos os esforços a fim de que seja devidamente assegurado o seu respeito por parte de todos, em toda a parte e em relação a quem quer que seja»[310]. Inalienáveis, enquanto «ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele quem for, porque isso significaria violentar a sua natureza»[311].

154 Os direitos do homem hão de ser tutelados não só cada um singularmente, mas no seu conjunto: uma proteção parcial traduzir-se-ia em uma espécie de não reconhecimento. Eles correspondem às exigências da dignidade humana e comportam, em primeiro lugar, a satisfação das necessidades essenciais da pessoa, em campo espiritual e material: «tais direitos tocam todas as fases da vida e todo o contexto político, social, econômico ou cultural. Formam um conjunto unitário, visando resolutamente a promoção do bem, em todos os seus aspectos, da pessoa e da sociedade… A promoção integral de todas as categorias dos direitos humanos é a verdadeira garantia do pleno respeito de cada um deles»[312]. Universalidade e indivisibilidade são os traços distintivos dos direitos humanos: «são dois princípios orientadores que postulam a exigência de radicar os direitos humanos nas diversas culturas e aprofundar a sua delineação jurídica para lhes assegurar o pleno respeito»[313].

b) A especificação dos direitos

155 Os ensinamentos de João XXIII[314], do Concílio Vaticano II[315], de Paulo VI[316] ofereceram amplas indicações da concepção dos direitos humanos delineada pelo Magistério. Na Encíclica «Centesimus annus» João Paulo II sintetizou-as num elenco: «o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa»[317].

O primeiro direito a ser enunciado neste elenco é direito à vida, desde o momento da sua concepção até ao seu fim natural[318], que condiciona o exercício de qualquer outro direito e comporta, em particular, a ilicitude de toda forma de aborto procurado e de eutanásia[319]. É sublinhado o altíssimo valor do direito à liberdade religiosa: «Todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros»[320]. O respeito de tal direito assume um valor emblemático «do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes»[321].

c) Direitos e deveres

156 Intimamente conexo com o tema dos direitos é o tema dos deveres do homem, que encontra nos pronunciamentos do Magistério uma adequada acentuação. Freqüentemente se evoca a recíproca complementaridade entre direitos e deveres, indissoluvelmente unidos, em primeiro lugar na pessoa humana que é o seu sujeito titular[322]. Tal liame apresenta também uma dimensão social: «no relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito por parte dos demais»[323]. O Magistério sublinha a contradição ínsita numa afirmação dos direitos que não contemple uma correlativa responsabilidade: «os que reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói»[324].

d) Direitos dos povos e das nações

157 O campo dos direitos humanos se alargou aos direitos dos povos e das nações[325]: com efeito, «o que é verdadeiro para o homem é verdadeiro também para os povos»[326]. O Magistério recorda que o direito internacional «se funda no princípio de igual respeito dos Estados, do direito à autodeterminação de cada povo e da livre cooperação em vista do bem comum superior da humanidade»[327]. A paz funda-se não só no respeito dos direitos do homem como também no respeito do direito dos povos, sobretudo o direito à independência[328].

Os direitos das nações «não são outra coisa senão os “direitos humanos” compreendidos neste específico nível da vida comunitária»[329]. A nação tem «um fundamental direito o direito à existência»; à «própria língua e cultura, mediante as quais um povo exprime e promove … a sua originaria “soberania” espiritual»; a «modelar a própria vida segundo as suas tradições, excluindo, naturalmente, toda a violação dos direitos humanos fundamentais e, em particular, a opressão das minorias»; a «edificar o próprio futuro, oferecendo às gerações mais jovens uma educação apropriada»[330]. A ordem internacional requer um equilíbrio entre particularidade e universalidade, ao qual são chamadas todas as nações, para as quais o primeiro dever é o de viver em atitude de paz, respeito e solidariedade com as outras nações.

e) Colmatar a distância entre letra e espírito

158 A solene proclamação dos direitos do homem é contradita por uma dolorosa realidade de violações, guerras e violências de todo tipo, em primeiro lugar os genocídios e as deportações em massa, a difusão quase que por toda a parte de formas sempre novas de escravidão quais o tráfico de seres humanos, as crianças soldados, a exploração dos trabalhadores, o tráfico de drogas, a prostituição: «Também nos países onde vigoram formas de governo democrático, nem sempre estes direitos são totalmente respeitados»[331]

Existe, infelizmente, uma distância entre a «letra» e o «espírito» dos direitos do homem[332] aos quais freqüentemente se vota um respeito puramente formal. A doutrina social, em consideração ao privilégio conferido pelo Evangelho aos pobres, reafirma repetidas vezes que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poder colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros» e que uma afirmação excessiva de igualdade «pode dar azo a um individualismo em que cada qual reivindica os seus direitos, sem querer ser responsável pelo bem comum»[333].

159 A Igreja, cônscia de que a sua missão essencialmente religiosa inclui a defesa e a promoção dos direitos fundamentais do homem[334], «tem em grande apreço o dinamismo do nosso tempo que, em toda parte, dá novo impulso aos mesmos direitos »[335]. A Igreja adverte profundamente a exigência de respeitar dentro do seu próprio âmbito a justiça[336] e os direitos do homem[337].

O empenho pastoral se desenvolve numa dúplice direção: de anúncio do fundamento cristão dos direitos do homem e de denúncia das violações de tais direitos[338]: em todo caso, «o anúncio é sempre mais importante do que a denúncia, e esta não pode prescindir daquele, pois é isso que lhe dá a verdadeira solidez e a força da motivação mais alta»[339]. Para ser mais eficaz, tal empenho é aberto à colaboração ecumênica, ao diálogo com as outras religiões, a todos os oportunos contactos com os organismos, governamentais e não governamentais, nos planos nacional e internacional. A Igreja confia, sobretudo na ajuda do Senhor e do Seu Espírito que, derramado nos corações, é a garantia mais segura do respeito da justiça e dos direitos humanos, e de contribuir, portanto, para a paz: «promover a justiça e a paz, penetrar com a luz e o fermento evangélico todos os campos da existência social, tem sido sempre um constante empenho da Igreja em nome do mandato que ela recebeu do Senhor»[340].

CAPÍTULO IV – OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

I. SIGNIFICADO E UNIDADE DOS PRINCÍPIOS

160 Os princípios permanentes da doutrina social da Igreja[341] constituem os verdadeiros e próprios gonzos do ensinamento social católico: trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana ? já tratado no capítulo anterior ? no qual todos os demais princípios ou conteúdos da doutrina social da Igreja têm fundamento[342], do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade. Estes princípios, expressões da verdade inteira sobre o homem conhecida através da razão e da fé, promanam «do encontro da mensagem evangélica e de suas exigências, resumidas no mandamento supremo do amor com os problemas que emanam da vida da sociedade»[343]. A Igreja, no curso da história e à luz do Espírito, refletindo sapientemente no seio da própria tradição de fé, pôde dar-lhes fundamentação e configuração cada vez mais acuradas, individualizando-os progressivamente no esforço de responder com coerência às exigências dos tempos e aos contínuos progressos da vida social.

161 Estes princípios têm um caráter geral e fundamental, pois que se referem à realidade social no seu conjunto: das relações interpessoais, caracterizadas pela proximidade e por serem imediatas, às mediadas pela política, pela economia e pelo direito; das relações entre indivíduos ou grupos às relações entre os povos e as nações. Pela sua permanência no tempo e universalidade de significado, a Igreja os indica como primeiro e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos fenômenos sociais, necessários porque deles se podem apreender os critérios de discernimento e de orientação do agir social, em todos os âmbitos.

162 Os princípios da doutrina social devem ser apreciados na sua unidade, conexão e articulação. Uma tal exigência tem suas raízes no significado que a Igreja mesma atribui à própria doutrina social; «corpus» doutrinal unitário que interpreta de modo orgânico as realidade sociais[344]. A atenção a cada princípio na sua especificidade não deve levar ao seu emprego parcial e errado, como acontece quando evocado de modo desarticulado e desconexo em relação aos demais. O aprofundamento teórico e a própria aplicação, ainda que somente de um dos princípios sociais, fazem vir à tona com clareza a reciprocidade, a complementaridade, os nexos que os estruturam. Estes eixos fundamentais da doutrina da Igreja representam, além disso, bem mais do que um patrimônio permanente de reflexão que, diga-se a propósito, é parte essencial da mensagem cristã, pois indicam todos os caminhos possíveis para edificar uma vida social verdadeira, boa, autenticamente renovada[345].

163 Os princípios da vida social, no seu conjunto, constituem aquela primeira articulação da verdade da sociedade, pela qual cada consciência é interpelada e convidada a interagir com todas as demais, na liberdade, em plena co-responsabilidade com todos e em relação a todos. À questão da verdade e do sentido do viver social, com efeito, o homem não se pode furtar, pois a sociedade não é uma realidade estranha ao seu mesmo existir.

Estes princípios têm um significado profundamente moral porque remetem aos fundamentos últimos e ordenadores da vida social. Para compreendê-los plenamente, é preciso agir na sua direção, na via do desenvolvimento por eles indicado para uma vida digna do homem. A exigência moral ínsita nos grandes princípios sociais concerne quer ao agir pessoal dos indivíduos, enquanto primeiros e insubstituíveis sujeitos da vida social em todos os níveis, quer, ao mesmo tempo, às instituições, representadas por leis, normas de consuetudinárias e estruturas civis, dada a sua capacidade de influenciar e condicionar as opções de muitos e por muito tempo. Os princípios recordam, com efeito, que a sociedade historicamente existente promana do entrelace das liberdades de todas as pessoas que nela interagem, contribuindo, mediante as suas opções, para edificá-la ou para empobrecê-la.

II. O PRINCÍPIO DO BEM COMUM

a) Significado e principais implicações

164 Da dignidade, unidade e igualdade de todas as pessoas deriva, antes de tudo, o princípio do bem comum, a que se deve relacionar cada aspecto da vida social para encontrar pleno sentido. Segundo uma primeira e vasta acepção, por bem comum se entende: «o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos, como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição»[346].

O bem comum não consiste na simples soma dos bens particulares de cada sujeito do corpo social. Sendo de todos e de cada um, é e permanece comum, porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo, também em vista do futuro. Assim como o agir moral do indivíduo se realiza em fazendo o bem, assim o agir social alcança a plenitude realizando o bem comum. O bem comum pode ser entendido como a dimensão social e comunitária do bem moral.

165 Uma sociedade que, em todos os níveis, quer intencionalmente estar ao serviço do ser humano é a que se propõe como meta prioritária o bem comum, enquanto bem de todos os homens e do homem todo[347]. A pessoa não pode encontrar plena realização somente em si mesma, prescindindo do seu ser «com» e «pelos» outros. Essa verdade impõe-lhe não uma simples convivência nos vários níveis da vida social e relacional, mas a busca incansável, de modo prático e não só ideal, do bem ou do sentido e da verdade que se podem encontrar nas formas de vida social existentes. Nenhuma forma expressiva da sociabilidade — da família ao grupo social intermédio, à associação, à empresa de caráter econômico, à cidade, à região, ao Estado, até à comunidade dos povos e das nações — pode evitar a interrogação sobre o próprio bem comum, que é constitutivo do seu significado e autêntica razão de ser da sua própria subsistência[348].

b) A responsabilidade de todos pelo bem comum

166 As exigências do bem comum derivam das condições sociais de cada época e estão estreitamente conexas com o respeito e com a promoção integral da pessoa e dos seus direitos fundamentais[349]. Essas exigências referem-se, antes de mais, ao empenho pela paz, à organização dos poderes do Estado, a uma sólida ordem jurídica, à salvaguarda do ambiente, à prestação dos serviços essenciais às pessoas, alguns dos quais são, ao mesmo tempo, direitos do homem: alimentação, morada, trabalho, educação e acesso à cultura, saúde, transportes, livre circulação das informações e tutela da liberdade religiosa[350]. Não se há de olvidar o aporte que cada nação tem o dever de dar para uma verdadeira cooperação internacional, em vista do bem comum da humanidade inteira, inclusive para as gerações futuras[351].

167. O bem comum empenha todos os membros da sociedade: ninguém está escusado de colaborar, de acordo com as próprias possibilidades, na sua busca e no seu desenvolvimento[352]. O bem comum exige ser servido plenamente, não segundo visões redutivas subordinadas às vantagens de parte que se podem tirar, mas com base em uma lógica que tende à mais ampla responsabilização. O bem comum correspondente às mais elevadas inclinações do homem[353], mas é um bem árduo de alcançar, porque exige a capacidade e a busca constante do bem de outrem como se fosse próprio.

Todos têm também o direito de fruir das condições de vida social criadas pelos resultados da consecução do bem comum. Soa ainda atual o ensinamento de Pio XI: «Deve procurar-se que a repartição dos bens criados, a qual não há quem não reconheça ser hoje causa de gravíssimos inconvenientes pelo contraste estridente que há entre os poucos ultra-ricos e a multidão inumerável dos indigentes, seja reconduzida à conformidade com as normas do bem comum e da justiça social»[354].

c) As tarefas da comunidade política

168 A responsabilidade de perseguir o bem comum compete, não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois que o bem comum é a razão de ser da autoridade política[355]. Na verdade, o Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil da qual é expressão[356], de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos. O indivíduo humano, a família, as corpos intermédios não são capazes por si próprias de chegar ao seu pleno desenvolvimento; daí serem necessárias as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os bens necessários — materiais, culturais, morais, espirituais — para levar uma vida verdadeiramente humana. O fim da vida social é o bem comum historicamente realizável[357].

169 Para assegurar o bem comum, o governo de cada País tem a tarefa específica de harmonizar com justiça os diversos interesses setoriais[358]. A correta conciliação dos bens particulares de grupos e de indivíduos é uma das funções mais delicadas do poder público. Além disso, não se há de olvidar que, no Estado democrático — no qual as decisões são geralmente tomadas pela maioria dos representantes da vontade popular —, aqueles que têm responsabilidade de governo estão obrigados a interpretar o bem comum do seu País, não só segundo as orientações da maioria, mas também na perspectiva do bem efetivo de todos os membros da comunidade civil, inclusive dos que estão em posição de minoria.

170 O bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação. Deus é o fim último de suas criaturas e por motivo algum se pode privar o bem comum da sua dimensão transcendente, que excede, mas também dá cumprimento à dimensão histórica[359]. Esta perspectiva atinge a sua plenitude em força da fé na Páscoa de Jesus, que oferece plena luz acerca da realização do verdadeiro bem comum da humanidade. A nossa história — o esforço pessoal e coletivo de elevar a condição humana — começa e culmina em Jesus: graças a Ele, por meio d’Ele e em vista d’Ele, toda a realidade, inclusa a sociedade humana, pode ser conduzida ao seu Bem Sumo, à sua plena realização. Uma visão puramente histórica e materialista acabaria por transformar o bem comum em simples bem-estar econômico, destituído de toda finalização transcendente ou bem da sua mais profunda razão de ser.

III. A DESTINAÇÃO UNIVERSAL DOS BENS

a) Origem e significado

171 Dentre as multíplices implicações do bem comum, assume particular importância o princípio da destinação universal dos bens: «Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade»[360]. Este princípio se baseia no fato de que: «a origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos (Cf. Gn 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz da destinação universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana»[361]. A pessoa não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as condições basilares para a sua existência; estes bens lhe são absolutamente indispensáveis para alimentar-se e crescer, para comunicar, para associar-se e para poder conseguir as mais altas finalidades a que é chamada[362].

172 O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Todo o homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum dos bens é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»[363] e «princípio típico da doutrina social cristã»[364]. Por esta razão a Igreja considerou necessário precisar-lhe a natureza e as características. Trata-se, antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica; ademais, tal direito é «originário»[365]. É inerente à pessoa singularmente considerada, a cada pessoa, e é prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens, a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método econômico-social: «Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados [à destinação universal dos bens]: não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira»[366].

173 A atuação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo os diferentes contextos culturais e sociais, implica uma precisa definição dos modos, dos limites, dos objetos. Destinação e uso universal não significam que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, e nem mesmo que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. Se é verdade que todos nascem com o direito ao uso dos bens, é igualmente verdadeiro que, para assegurar o seu exercício eqüitativo e ordenado, é necessário que se atue uma regulamentação, fruto de acordos nacionais e internacionais, e um ordenamento jurídico que determine e especifique tal exercício.

174 O princípio da destinação universal dos bens convida a cultivar uma visão da economia inspirada em valores morais que permitam nunca perder de vista nem a origem, nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo eqüitativo e solidário, em que a formação da riqueza possa assumir uma função positiva. A riqueza, com efeito, apresenta esta valência, na multiplicidade das formas que podem exprimi-la como o resultado de um processo produtivo de elaboração técnico-econômica dos recursos disponíveis, naturais e derivados, guiado pela inventiva, pela capacidade concretizar projetos, pelo trabalho dos homens, e empregada como meio útil para promover o bem-estar dos homens e dos povos e para contrastar-lhes a exclusão e exploração.

175 O destinação universal dos bens comporta, portanto, um esforço comum que mira obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção de um mundo mais humano, «onde cada um possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para a sua sujeição»[367]. Este princípio corresponde ao apelo que o Evangelho incessantemente dirige ao homem e às sociedades de todos os tempos, sempre expostos às tentações da avidez da posse, a que o próprio Senhor Jesus quis submeter-Se (Cf. Mc 1,12-13; Mt 4,1-11; Lc 4,1-13) ensinando-nos o caminho para superá-la com a Sua graça.

b) Destinação universal dos bens e propriedade privada

176 Mediante o trabalho, o homem, usando a sua inteligência, consegue dominar a terra e torná-la sua digna morada: «Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual»[368]. A propriedade privada, bem como as outras formas de domínio privado dos bens, «assegura a cada qual um meio absolutamente necessário para a autonomia pessoal e familiar e deve ser considerada como uma prolongação da liberdade humana […], constitui uma certa condição das liberdades civis, porque estimula ao exercício da sua função e responsabilidade»[369]. A propriedade privada é elemento essencial de uma política econômica autenticamente social e democrática e é garantia de uma reta ordem social. A doutrina social requer que a propriedade dos bens seja eqüitativamente acessível a todos[370], de modo que todos sejam, ao menos em certa medida, proprietários, e exclui o recurso a formas de «domínio comum e promíscuo»[371].

177 A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável: «pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens»[372]. O princípio da destinação universal dos bens afirma seja o pleno e perene senhorio de Deus sobre toda a realidade, seja a exigência que os bens da criação sejam e permaneçam finalizados e destinados ao desenvolvimento de todo homem e de toda a humanidade[373]. Este princípio, porém, não se opõe ao direito de propriedade[374], indica antes a necessidade de regulamentá-lo. A propriedade privada, com efeito, quaisquer que sejam as formas concretas dos regimes e das normas jurídicas que lhes digam respeito, é, na sua essência, somente um instrumento para o respeito do princípio da destinação universal dos bens, e portanto, em última análise, não um fim, mas um meio[375].

178 O ensinamento social da Igreja exorta a reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada[376], com a clara referência às exigências imprescindíveis do bem comum[377]. O homem «que possui legitimamente as coisas materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como comuns, no sentido que elas possam ser úteis não somente a ele mas também aos outros»[378]. A destinação universal dos bens comporta vínculos ao seu uso por parte dos legítimos proprietários. Cada pessoa, ao agir, não pode prescindir dos efeitos do uso dos próprios recursos, mas deve atuar de modo a perseguir, ademais da vantagem pessoal e familiar, igualmente o bem comum. Donde decorre o dever dos proprietários de não manter ociosos os bens possuídos e de os destinar à atividade produtiva, também confiando-os a quem tem desejo e capacidade de os levar a produzir.

179 A atual fase histórica, colocando à disposição da sociedade bens novos, de todo desconhecidos até a tempos recentes, impõe uma releitura do princípio da destinação universal dos bens da terra, tornando necessário estendê-lo de sorte que compreenda também os frutos do recente progresso econômico e tecnológico. A propriedade dos novos bens, fruto do conhecimento, da técnica e do saber, torna-se cada vez mais decisiva, pois «a riqueza das nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais»[379].

Os novos conhecimentos técnicos e científicos devem ser postos ao serviço das necessidades primarias do homem, para que possa acrescer gradualmente o patrimônio comum da humanidade. A plena atuação do princípio da destinação universal dos bens requer, portanto, ações no plano internacional e iniciativas programadas por parte de todos os países: «Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento»[380].

180 Se no processo de desenvolvimento econômico e social, adquirem notável relevância formas de propriedade desconhecidas no passado, não se podem, todavia, esquecer as tradicionais. A propriedade individual não é a única forma legítima de posse. Reveste também particular importância a antiga forma de propriedade comunitária que, mesmo se presentes nos países economicamente avançados, caracteriza, de modo particular, a estrutura social de numerosos povos indígenas. É uma forma de propriedade que incide com uma profundidade tal na vida econômica, cultural e política daqueles povos, que chega a constituir um elemento fundamental para a sua sobrevivência e bem-estar. A defesa e a valorização da propriedade comunitária não devem, todavia, excluir a consciência do fato de que também este tipo de propriedade é destinado a evoluir. Se se agisse de modo a garantir-lhe tão-somente a conservação, correr-se-ia o risco de atá-la ao passado e, deste modo, de comprometê-la[381].

Permanece sempre crucial, sobretudo nos países em via de desenvolvimento ou que saíram de sistemas coletivistas ou de colonização, a distribuição eqüitativa da terra. Nas zonas rurais a possibilidade de aceder à terra mediante a oportunidade oferecida também pelos mercados do trabalho e do crédito é condição necessária para o acesso aos outros bens e serviços; além de constituir um caminho eficaz para a salvaguarda do ambiente, tal possibilidade representa um sistema de segurança social realizável também nos países que têm uma estrutura administrativa frágil[382].

181 Da propriedade deriva para o sujeito possessor, quer seja um indivíduo, quer seja uma comunidade, uma série de objetivas vantagens: melhores condições de vida, segurança para o futuro, oportunidades de escolha mais amplas. Da propriedade, por outro lado, pode provir também uma série de promessas ilusórias e tentadoras. O homem ou a sociedade que chegam ao ponto de absolutizar o papel da propriedade, acabam por experimentar a mais radical escravidão. Nenhuma posse, com efeito, pode ser considerada indiferente pelo influxo que tem tanto sobre os indivíduos, quanto sobre as instituições: o possessor que incautamente idolatra os seus bens (Cf. Mt 6, 24; 19, 21-26; Lc 16, 13) acaba por ser, mais do que nunca, possuído e escravizado[383]. Somente reconhecendo a sua dependência em relação a Deus Criador e ordenando-os ao bem comum é possível conferir aos bens materiais a função de instrumentos úteis ao crescimento dos homens e dos povos.

c) Destinação universal dos bens e opção preferencial pelos pobres

182 O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida lhes impedem um crescimento adequado. A esse propósito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres[384]. «Trata-se de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor»[385].

183 A miséria humana é o sinal manifesto da condição de fragilidade do homem e da sua necessidade de salvação[386]. Dela teve compaixão Cristo Salvador, que se identificou com os Seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45): «Jesus Cristo reconhecerá seus eleitos pelo que tiverem feito pelos pobres. Temos o sinal da presença de Cristo quando “os pobres são evangelizados” (Mt. 11, 5)»[387].

Jesus diz « pobres sempre os tereis convosco, mas a Mim nem sempre Me tereis» (Mt 26,11; cf. Mc 14, 7; Jo 12,1-8) não para contrapor ao serviço dos pobres a atenção que se Lhe devota. O realismo cristão, enquanto por um lado aprecia os louváveis esforços que se fazem para vencer a pobreza, por outro põe em guarda contra posições ideológicas e messianismos que alimentam a ilusão de que se possa suprimir deste mundo de maneira total o problema da pobreza. Isto acontecerá somente no Seu retorno, quando Ele estará de novo conosco para sempre. Neste interregno, os pobres ficam confiados a nós e sobre esta responsabilidade seremos julgados no fim (Cf. Mt 25, 31-46): «Nosso Senhor adverte-nos de que seremos separados dele se deixarmos de ir ao encontro das necessidades dos pobres e dos pequenos que são Seus irmãos»[388].

184 O amor da Igreja pelos pobres inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza de Jesus e na Sua atenção aos pobres. Tal amor refere-se à pobreza material e também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa[389]. A Igreja, «desde as suas origens, apesar das falhas de muitos de seus membros, não deixou nunca de trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los. Ela o faz por meio de inúmeras obras de beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda parte, indispensáveis»[390]. Inspirada no preceito evangélico: « Recebestes de graça, de graça dai » (Mt 10,8), a Igreja ensina a socorrer o próximo nas suas várias necessidades e difunde na comunidade humana inúmeras obras de misericórdia corporais e espirituais. «Dentre estes gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus»[391], ainda que a prática da caridade não se reduza à esmola, mas implique a atenção à dimensão social e política do problema da pobreza. Sobre esta relação entre caridade e justiça o ensinamento da Igreja retorna constantemente: «Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não praticamos com eles grande generosidade pessoal, mas lhes devolvemos o que é deles. Cumprimos um dever de justiça e não um ato de caridade»[392]. Os Padres Conciliares recomendam fortemente que se cumpra tal dever «para que não ofereçamos como dom de caridade aquilo que já é devido por justiça»[393]. O amor pelos os pobres é certamente «incompatível com o amor imoderado pelas riquezas ou o uso egoístico delas»[394] (Cf. Tg 5,1-6).

IV. O PRINCÍPIO DE SUBSIDIARIEDADE

a) Origem e significado

185. A subsidiariedade está entre as mais constantes e características diretrizes da doutrina social da Igreja, presente desde a primeira grande encíclica social[395]. É impossível promover a dignidade da pessoa sem que se cuide da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, em outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo econômico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efetivo crescimento social[396]. É este o âmbito da sociedade civil, entendida como o conjunto das relações entre indivíduos e entre sociedades intermédias, que se realizam de forma originária e graças à «a subjetividade criativa do cidadão»[397]. A rede destas relações inerva o tecido social e constitui a base de uma verdadeira comunidade de pessoas, tornando possível o reconhecimento de formas mais elevadas de sociabilidade[398].

186 A exigência de tutelar e de promover as expressões originárias da sociabilidade é realçada pela Igreja na Encíclica «Quadragesimo anno», na qual o princípio de subsidiariedade é indicado como princípio importantíssimo da filosofia social»: «uma vez que não é lícito tolher aos indivíduos o que eles podem realizar com as forças e a indústria própria para confiá-lo à comunidade, assim também é injusto remeter a uma sociedade maior e mais alta aquilo que as comunidades menores e inferiores podem fazer … porque o objeto natural de todo e qualquer intervento da sociedade mesma consiste em ajudar de maneira supletiva os membros do corpo social, não já destruí-las e absorvê-las»[399].

Com base neste princípio, todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda («subsidium») — e portanto de apoio, promoção e incremento — em relação às menores. Desse modo os corpos sociais intermédios podem cumprir adequadamente as funções que lhes competem, sem ter que cedê-las injustamente a outros entes sociais de nível superior, pelas quais acabariam por ser absorvidos e substituídos, e por ver-se negar, ao fim e ao cabo, dignidade própria e espaço vital.

À subsidiariedade entendida em sentido positivo, como ajuda econômica, institucional, legislativa oferecida às entidades sociais menores, corresponde uma série de implicações em negativo, que impõem ao Estado abster-se de tudo o que, de fato, restringir o espaço vital das células menores e essenciais da sociedade. Não se deve suplantar a sua iniciativa, liberdade e responsabilidade.

b) Indicações concretas

187. O princípio de subsidiariedade protege as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores e solicita estas últimas a ajudar os indivíduos e os corpos intermédios a desempenhar as próprias funções. Este princípio impõe-se porque cada pessoa, família e corpo intermédio tem algo de original para oferecer à comunidade. A experiência revela que a negação da subsidiariedade, ou a sua limitação em nome de uma pretensa democratização ou igualdade de todos na sociedade, limita e, às vezes, também anula, o espírito de liberdade e de iniciativa.

Com o princípio de subsidiariedade estão em contraste formas de centralização, de burocratização, de assistencialismo, de presença injustificada e excessiva do Estado e do aparato público: «Ao intervir diretamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas»[400]. A falta de reconhecimento ou o reconhecimento inadequado da iniciativa privada, também econômica, e da sua função pública, bem como os monopólios, concorrem para mortificar o princípio de subsidiariedade.

À atuação do princípio de subsidiariedade correspondem: o respeito e a promoção efetiva do primado da pessoa e da família; a valorização das associações e das organizações intermédias, nas próprias opções fundamentais e em todas as que não podem ser delegadas ou assumidas por outros; o incentivo oferecido à iniciativa privada, de tal modo que cada organismo social, com as próprias peculiaridades, permaneça ao serviço do bem comum; a articulação pluralista da sociedade e a representação das suas forças vitais; a salvaguarda dos direitos humanos e das minorias; a descentralização burocrática e administrativa; o equilíbrio entre a esfera pública e a privada, com o conseqüente reconhecimento da função social do privado; uma adequada responsabilização do cidadão no seu «ser parte» ativa da realidade política e social do País.

188. Diversas circunstâncias podem aconselhar que o Estado exerça uma função de suplência.[401] Pense-se, por exemplo, nas situações em que é necessário que o Estado mesmo promova a economia, por causa da impossibilidade de a sociedade civil assumir autonomamente a iniciativa; pense-se também nas realidades de grave desequilíbrio e injustiça social, em que só a intervenção pública pode criar condições de maior igualdade, de justiça e de paz. À luz do princípio de subsidiariedade, porém, esta suplência institucional não se deve prolongar e estender além do estritamente necessário, já que encontra justificação somente no caráter excepcional da situação. Em todo caso, o bem comum corretamente entendido, cujas exigências não deverão de modo algum estar em contraste com a tutela e a promoção do primado da pessoa e das suas principais expressões sociais, deverá continuar a ser o critério de discernimento acerca da aplicação do princípio de subsidiariedade.

V. A PARTICIPAÇÃO

a) Significado e valor

189. Conseqüência característica da subsidiariedade é a participação[402], que se exprime, essencialmente, em uma série de atividades mediante as quais o cidadão, como indivíduo ou associado com outros, diretamente ou por meio de representantes, contribui para a vida cultural, econômica, política e social da comunidade civil a que pertence[403]: a participação é um dever a ser conscientemente exercitado por todos, de modo responsável e em vista do bem comum[404].

Ela não pode ser delimitada ou reduzida a alguns conteúdos particulares da vida social, dada a sua importância para o crescimento, humano antes de tudo, em âmbitos como o mundo do trabalho e as atividades econômicas nas suas dinâmicas internas[405], a informação e a cultura e, em grau máximo, a vida social e política até aos níveis mais altos, como são aqueles dos quais depende a colaboração de todos os povos para a edificação de uma comunidade internacional solidária[406]. Nesta perspectiva, torna-se imprescindível a exigência de favorecer a participação sobretudo dos menos favorecidos, bem como a alternância dos dirigentes políticos, a fim de evitar que se instaurem privilégios ocultos; é necessária ademais uma forte tensão moral para que a gestão da vida pública seja fruto da co-responsabilidade de cada um em relação ao bem comum.

b) Participação e democracia

190 A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a exercitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelos outros[407], mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa[408]. Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha.

191 A participação pode ser obtida em todas as possíveis relações entre o cidadão e as instituições: para tanto, particular atenção deve ser dada aos contextos históricos e sociais em que esta pode verdadeiramente atuar-se. A superação dos obstáculos culturais, jurídicos e sociais que não raro se interpõem como verdadeiras barreiras à participação solidária dos cidadãos à sorte da própria comunidade exige uma autêntica obra informativa e educativa[409]. Merecem uma preocupada consideração, neste sentido, todas as atitudes que levam o cidadão a formas participativas insuficientes ou incorretas e à generalizada desafeição por tudo o que concerne à esfera da vida social e política: atente-se, por exemplo, para as tentativas dos cidadãos de «negociar» com as instituições as condições mais vantajosas para si, como se estas últimas estivessem ao serviço das necessidades egoísticas, e para a praxe de limitar-se à expressão da opção eleitoral, chegando também, em muitos casos, a abster-se dela[410].

No âmbito da participação, uma ulterior fonte de preocupação é representada pelos países de regime totalitário ou ditatorial, em que o fundamento do direito a participar da vida pública é negado na raiz, porque considerado como uma ameaça para o próprio Estado[411]; por outros países em que tal direito é só formalmente declarado, mas concretamente não se pode exercer; por outros ainda nos quais a elefantíase do aparato burocrático nega de fato ao cidadão a possibilidade de se propor como um verdadeiro ator da vida social e política[412].

VI. O PRINCÍPIO DE SOLIDARIEDADE

a) Significado e valor

192 A solidariedade confere particular relevo à intrínseca sociabilidade da pessoa humana, à igualdade de todos em dignidade e direitos, ao caminho comum dos homens e dos povos para uma unidade cada vez mais convicta. Nunca como hoje, houve uma consciência tão generalizada do liame de interdependência entre os homens e os povos, que se manifesta em qualquer nível[413]. A rapidíssima multiplicação das vias e dos meios de comunicação «em tempo real», como são os telemáticos, os extraordinários progressos da informática, o crescente volume dos intercâmbios comerciais e das informações estão a testemunhar que, pela primeira vez desde o início da história da humanidade, ao menos tecnicamente, é já possível estabelecer relações também entre pessoas muito distantes umas das outras ou desconhecidos.

Em face do fenômeno da interdependência e da sua constante dilatação, subsistem, por outro lado, em todo o mundo, desigualdades muito fortes entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, alimentadas também por diversas formas de exploração, de opressão e de corrupção, que influem negativamente na vida interna e internacional de muitos Estados. O processo de aceleração da interdependência entre as pessoas e os povos deve ser acompanhado com um empenho no plano ético-social igualmente intensificado, para evitar as nefastas conseqüências de uma situação de injustiça de dimensões planetárias, destinada a repercutir muito negativamente até nos próprios países atualmente mais favorecidos[414].

b) A solidariedade como princípio social e como virtude moral

193 As novas relações de interdependência entre homens e povos, que são de fato formas de solidariedade, devem transformar-se em relações tendentes a uma verdadeira e própria solidariedade ético-social, que é a exigência moral ínsita a todas as relações humanas. A solidariedade, portanto, se apresenta sob dois aspectos complementares: o de princípio social[415] e o de virtude moral[416].

A solidariedade deve ser tomada antes de mais nada, no seu valor de princípio social ordenador das instituições, em base ao qual devem ser superadas as «estruturas de pecado»[417], que dominam os relações entre as pessoas e os povos, devem ser superadas e transformadas em estruturas de solidariedade, mediante a criação ou a oportuna modificação de leis, regras do mercado, ordenamentos.

A solidariedade é também uma verdadeira e própria virtude moral, não «um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos»[418]. A solidariedade eleva-se ao grau de virtude social fundamental, pois se coloca na dimensão da justiça, virtude orientada por excelência para o bem comum, e na «aplicação em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para “perder-se” em benefício do próximo em vez de o explorar, e para “servi-lo” em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27)»[419].

c) Solidariedade e crescimento comum dos homens

194 A mensagem da doutrina social acerca da solidariedade põe de realce a existência de estreitos vínculos entre solidariedade e bem comum, solidariedade e destinação universal dos bens, solidariedade e igualdade entre os homens e os povos, solidariedade e paz no mundo[420]. O termo «solidariedade», amplamente empregado pelo Magistério[421], exprime em síntese a exigência de reconhecer, no conjunto dos liames que unem os homens e os grupos sociais entre si, o espaço oferecido à liberdade humana para prover ao crescimento comum, de que todos partilhem. A aplicação nesta direção se traduz no positivo contributo que não se há de deixar faltar à causa comum e na busca dos pontos de possível acordo, mesmo quando prevalece uma lógica de divisão e fragmentação; na disponibilidade a consumir-se pelo bem do outro, para além de todo individualismo e particularismo[422].

195 O princípio da solidariedade comporta que os homens do nosso tempo cultivem uma maior consciência do débito que têm para com a sociedade na qual estão inseridos: são devedores daquelas condições que tornam possível vivível a existência humana, bem como do patrimônio, indivisível e indispensável, constituído da cultura, do conhecimento científico e tecnológico, dos bens materiais e imateriais, de tudo aquilo que a história da humanidade produziu. Um tal débito há de ser honrado nas várias manifestações do agir social, de modo que o caminho dos homens não se interrompa, mas continue aberto às gerações presentes e às futuras, chamadas juntas, umas e outras, a compartilhar na solidariedade do mesmo dom.

d) A solidariedade na vida e na mensagem de Jesus Cristo

196 O vértice insuperável da perspectiva indicada é a vida de Jesus de Nazaré, o Homem novo, solidário com a humanidade até à «morte de cruz» (Fil 2,8): n’Ele é sempre possível reconhecer o Sinal vivente daquele amor incomensurável e transcendente do Deus-conosco, que assume as enfermidades do seu povo, caminha com ele, salva-o e o constitui na unidade[423]. N’Ele a solidariedade alcança as dimensões do mesmo agir de Deus. N’Ele, e graças a Ele, também a vida social pode ser redescoberta, mesmo com todas as suas contradições e ambigüidade, como lugar de vida e de esperança, enquanto sinal de uma graça que de continuo é a todos oferecida e que, enquanto dono, invita às formas mais altas e abrangentes de partilha.

Jesus de Nazaré faz resplandecer aos olhos de todos os homens o nexo entre solidariedade e caridade, iluminando todo o seu significado[424]: «À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor; e é preciso estarmos dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: “dar a vida pelos próprios irmãos” (cf. 1 Jo 3, 16)»[425].

VII. OS VALORES FUNDAMENTAIS DA VIDA SOCIAL

a) Relação entre princípios e valores

197 A doutrina social da Igreja, ademais dos princípios que devem presidir à edificação de uma sociedade digna do homem, indica também valores fundamentais. A relação entre princípios e valores é indubitavelmente de reciprocidade, na medida em que os valores sociais expressam o apreço que se deve atribuir àqueles determinados aspectos do bem moral que os princípios se propõem conseguir, oferecendo-se como pontos de referência para a oportuna estruturação e a condução ordenada da vida social. Os valores requerem, portanto, quer a prática dos princípios fundamentais da vida social, quer o exercício pessoal das virtudes, e, portanto, das atitudes morais correspondentes aos valores mesmos[426].

Todos os valores sociais são inerentes à dignidade da pessoa humana, da qual favorecem o autêntico desenvolvimento e são, essencialmente: a verdade, a liberdade, a justiça, o amor[427]. A sua prática constitui a via segura e necessária para alcançar um aperfeiçoamento pessoal e uma convivência social mais humana; eles constituem a referência imprescindível para os responsáveis pela coisa pública, chamados a realizar «as reformas substanciais das estruturas econômicas, políticas, culturais e tecnológicas e as mudanças necessárias nas instituições»[428]. O respeito pela legítima autonomia das realidades terrestres faz com que a Igreja não se reserve competências específicas de ordem técnica o temporal[429], mas não a impede de se pronunciar para mostrar como, nas diferentes opções do homem, tais valores são afirmados ou, vice-versa, negados[430].

b) A verdade

198 Os homens estão obrigados de modo particular a tender continuamente à verdade, a respeitá-la e a testemunhá-la responsavelmente[431]. Viver na verdadetem um significado especial nas relações sociais: a convivência entre os seres humanos em uma comunidade é efetivamente ordenada, fecunda e condizente com a sua dignidade de pessoas quando se funda na verdade[432]. Quanto mais as pessoas e os grupos sociais se esforçam por resolver os problemas sociais segundo a verdade, tanto mais se afastam do arbítrio e se conformam às exigências objetivas da moralidade.

O nosso tempo exige uma intensa atividade educativa[433] e um correspondente empenho por parte de todos, para que a investigação da verdade, não redutível ao conjunto ou a alguma das diversas opiniões, seja promovida em todos os âmbitos, e prevaleça sobre toda tentativa de relativizar-lhe as exigências ou de causar-lhe qualquer tipo de ofensa[434]. É uma questão que incumbe especialmente ao mundo da comunicação pública e ao da economia. Neles, o uso descomedido do dinheiro faz com que surjam questões cada vez mais urgentes, que necessariamente reclamam uma necessidade de transparência e honestidade no agir pessoal e social.

c) A liberdade

199 A liberdade é no homem sinal altíssimo da imagem divina e, conseqüentemente, sinal da sublime dignidade de toda pessoa humana[435]: «A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Toda pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta obrigação de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana»[436]. Não se deve restringir o significado da liberdade, considerando-a numa perspectiva puramente individualista e reduzindo-a ao exercício arbitrário e incontrolado da própria autonomia pessoal: «Longe de realizar-se na total autonomia do eu e na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça, unem as pessoas»[437]. A compreensão da liberdade torna-se profunda e ampla na medida em que é tutelada, também no âmbito social, na totalidade das suas dimensões.

200 O valor da liberdade, enquanto expressão da singularidade de cada pessoa humana, é respeitado e honrado na medida em que se consente a cada membro da sociedade realizar a própria vocação pessoal; buscar a verdade e professar as próprias idéias religiosas, culturais e políticas; manifestar as próprias opiniões; decidir o próprio estado de vida e, na medida do possível, o próprio trabalho; assumir iniciativas de caráter econômico, social e político. Isto deve acontecer dentro de um «sólido contexto jurídico»[438], nos limites do bem comum e da ordem pública e, em todo caso, sob o signo da responsabilidade.

A liberdade deve desdobrar-se, por outro lado, também como capacidade de recusa de tudo o que é moralmente negativo, seja qual for a forma em que se apresente[439], como capacidade de efetivo desapego de tudo o que possa obstar o crescimento pessoal, familiar e social. A plenitude da liberdade consiste na capacidade de dispor de si em vista do autêntico bem, no horizonte do bem comum universal[440].

d) A justiça

201 A justiça é um valor, que acompanha o exercício da correspondente virtude moral cardeal[441]. Segundo a sua formulação mais clássica, «ela consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido»[442]. Do ponto de vista subjetivo a justiça se traduz na atitude determinada pela vontade de reconhecer o outro como pessoa, ao passo que, do ponto de vista objetivo, essa constitui o critério determinante da moralidade no âmbito inter-subjetivo e social[443].

O Magistério social evoca a respeito das formas clássicas da justiça: a comutativa, a distributiva, a legal[444]. Um relevo cada vez maior no Magistério tem adquirido a justiça social[445], que representa um verdadeiro e próprio desenvolvimento da justiça geral, reguladora dos relações sociais com base no critério da observância da lei. A justiça social, exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em uma dimensão mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções[446].

202 A justiça mostra-se particularmente importante no contexto atual, em que o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, a despeito das proclamações de intentos, é seriamente ameaçado pela generalizada tendência a recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade e do ter. Também a justiça, com base nestes critérios, é considerada de modo redutivo, ao passo que adquire um significado mais pleno e autêntico na antropologia cristã. A justiça, com efeito, não é uma simples convenção humana, porque o que é «justo» não é originariamente determinado pela lei, mas pela identidade profunda do ser humano[447].

203 A plena verdade sobre o homem permite superar a visão contratualista da justiça, que é visão limitada, e abrir também para a justiça o horizonte da solidariedade e do amor: «A justiça sozinha não basta; e pode mesmo chegar a negar-se a si própria, se não se abrir àquela força mais profunda que é o amor»[448]. Ao valor da justiça a doutrina social da Igreja acosta o da solidariedade, enquanto via privilegiada da paz. Se a paz é fruto da justiça, «hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax: a paz é o fruto da solidariedade»[449]. A meta da paz, com efeito, «será certamente alcançada com a realização da justiça social e internacional; mas contar-se-á também com a prática das virtudes que favorecem a convivência e nos ensinam a viver unidos, a fim de, unidos, construirmos dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor»[450].

VIII. A VIA DA CARIDADE

204 Entre as virtudes no seu conjunto e, em particular, entre virtudes, valores sociais e caridade, subsiste um profundo liame, que deve ser cada vez mais acuradamente reconhecido. A caridade, não raro confinada ao âmbito das relações de proximidade, ou limitada aos aspectos somente subjetivos do agir para o outro, deve ser reconsiderada no seu autêntico valor de critério supremo e universal de toda a ética social. Dentre todos os caminhos, mesmo os procurados e percorridos para enfrentar as formas sempre novas da atual questão social, o « mais excelente de todos» (1 Cor 12,31) é a via traçada pela caridade.

205 Os valores da verdade, da justiça, do amor e da liberdade nascem e se desenvolvem do manancial interior da caridade: a convivência humana é ordenada, fecunda de bens e condizente com a dignidade do homem, quando se funda na verdade; realiza-se segundo a justiça, ou seja, no respeito efetivo pelos direitos e no leal cumprimento dos respectivos deveres; é realizada na liberdade que condiz com a dignidade dos homens, levados pela sua mesma natureza racional a assumir a responsabilidade pelo próprio agir; é vivificada pelo amor, que faz sentir como próprias as carências e as exigências alheias e torna sempre mais intensas a comunhão dos valores espirituais e a solicitude pelas necessidades materiais[451]. Estes valores constituem pilastras das quais recebe solidez e consistência o edifício do viver e do agir: são valores que determinam a qualidade de toda a ação e instituição social.

206 A caridade pressupõe e transcende a justiça: esta última «deve ser completada pela caridade»[452]. Se a justiça «é, em si mesma, apta para “servir de árbitro” entre os homens na recíproca repartição justa dos bens materiais, o amor, pelo contrário, e somente o amor (e portanto também o amor benevolente que chamamos “misericórdia”), é capaz de restituir o homem a si próprio»[453]. Não se podem regular as relações humanas unicamente com a medida da justiça: «A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida humana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência da realidade histórica que levou à formulação do axioma: summum ius, summa iniuria»[454]. A justiça, com efeito, «em toda a gama das relações entre os homens, deve submeter-se, por assim dizer, a uma “correção” notável, por parte daquele amor que, como proclama S. Paulo, “é paciente” e “benigno”, ou por outras palavras, que encerra em si as características do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho como para o Cristianismo»[455].

207 Nenhuma legislação, nenhum sistema de regras ou de pactos conseguirá persuadir homens e povos a viver na unidade, na fraternidade e na paz, nenhuma argumentação poderá superar o apelo da caridade. Somente a caridade, na sua qualidade de «forma virtutum»[456], pode animar e plasmar o agir social no contexto de um mundo cada vez mais complexo. Para que tudo isto aconteça, é necessário que se cuide de mostrar a caridade não só como inspiradora da ação individual, mas também como força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e para e renovar profundamente desde o interior das estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos. Nesta perspectiva, a caridade se torna caridade social e política: a caridade social nos leva a amar o bem comum[457] e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une.

208 A caridade social e política não se esgota nas relações entre as pessoas, mas se desdobra na rede em que tais relações se inserem, que é precisamente a comunidade social e política, e sobre esta intervém, mirando ao bem possível para a comunidade no seu conjunto. Sob tantos aspectos, o próximo a ser amado se apresenta «em sociedade», de sorte que amá-lo realmente, prover às suas necessidades ou à sua indigência pode significar algo de diferente do bem que se lhes pode querer no plano puramente inter-individual: amá-lo no plano social significa, de acordo com as situações, valer-se das mediações sociais para melhorar sua vida ou remover os fatores sociais que causam a sua indigência. Sem dúvida alguma, é um ato de caridade a obra de misericórdia com que se responde aqui e agora a uma necessidade real e impelente do próximo, mas é um ato de caridade igualmente indispensável o empenho com miras a organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a encontrar na miséria, sobretudo quando esta se torna a situação em que se debate um incomensurável número de pessoas e mesmo povos inteiros, situação esta que assume hoje as proporções de uma verdadeira e própria questão social mundial.

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