Parte II: [Paz]

SEGUNDA PARTE

«… a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto dos direitos humanos de cada um e, em particular, do «proletariado», da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida econômica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte…» Centesimus annus, 54)

CAPÍTULO V – A FAMÍLIA

CÉLULA VITAL DA SOCIEDADE

I. A FAMÍLIA PRIMEIRA SOCIEDADE NATURAL

209 A importância e a centralidade da família, em vista da pessoa e da sociedade, é repetidamente sublinhada na Sagrada Escritura: «Não é bom que o homem esteja só» (Gn 2,18). Desde os textos que narram a criação do homem (cf. Gn 1,26-28; 2,7-24), vem à tona como — no desígnio de Deus — o casal constitua « a primeira forma de comunhão de pessoas »[458]. Eva é criada semelhante a Adão, como aquela que, na sua alteridade, o completa (cf. Gn 2, 18) para formar com ele « uma só carne » (cf. Gn 2, 24)[459]. Ao mesmo tempo, ambos estão empenhados na tarefa da procriação, que faz deles colaboradores do Criador: « sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra » (Gn 1,28). A família delineia-se, no desígnio do Criador, como «lugar primário da “humanização” da pessoa e da sociedade» e «berço da vida e do amor»[460].

210 Na família se aprende a conhecer o amor e a fidelidade do Senhor e a necessidade de corresponder-lhe (cf. Ex 12,25-27; 13,8.14-15; Dt 6,20-25; 13,7-11; l Sam 3,13); os filhos aprendem as primeiras e mais decisivas lições da sabedoria prática com que são conexas as virtudes (cf. Pr 1,8-9; 4,1-4; 6,20-21; Sir 3,1-16; 7,27-28). Por tudo isso, o Senhor se faz garante do amor e da fidelidade conjugal (cf. Mc 2,14-15).

Jesus nasceu e viveu em uma família concreta acolhendo todas as características próprias desta vida[461] e conferiu uma excelsa dignidade ao instituto matrimonial, constituindo-o como sacramento da nova aliança (cf. Mt 19,3-9). Nesta perspectiva, o casal encontra toda a sua dignidade e a família, a sua própria solidez.

211 Iluminada pela luz da mensagem bíblica, a Igreja considera a família como a primeira sociedade natural, titular de direitos próprios e originários, e a põe no centro da vida social: relegar a família «a um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro»[462]. Efetivamente, a família, que nasce da íntima comunhão de vida e de amor fundada no matrimônio entre um homem e uma mulher[463], possui uma própria específica e originária dimensão social, enquanto lugar primário de relações interpessoais, célula primeira e vital da sociedade[464]: esta é uma instituição divina que colocada como fundamento da vida das pessoas, como protótipo de todo ordenamento social.

a) A importância da família para a pessoa

212 A família é importante e central em relação à pessoa. Neste berço da vida e do amor, o homem nasce e cresce: quando nasce uma criança, à sociedade é oferecido o dom de uma nova pessoa, que é «chamada, desde o seu íntimo, à comunhão com os outros e à doação aos outros »[465]. Na família, portanto, o dom recíproco de si por parte do homem e da mulher unidos em matrimônio cria um ambiente de vida no qual a criança pode nascer e «desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino»[466].

No clima de natural afeto que liga os membros de uma comunidade familiar, as pessoas são reconhecidas e responsabilizadas na sua integralidade: «primeira e fundamental estrutura a favor da “ecologia humana” é a família, no seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, conseqüentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa»[467]. As obrigações dos seus membros, de fato, não estão limitadas pelos termos de um contrato, mas derivam da essência mesma da família, fundada num pacto conjugal irrevogável e estruturada pelas relações que dele derivam após a geração ou a adoção dos filhos.

b) A importância da família para a sociedade

213 A família, comunidade natural na qual se experimenta a sociabilidade humana, contribui de modo único e insubstituível para o bem da sociedade. A comunidade familiar nasce da comunhão das pessoas. «A “comunhão” diz respeito à relação pessoal entre o “eu” e o “tu”. A “comunidade”, pelo contrário, supera este esquema na direção de uma “sociedade”, de um “nós”. A família, comunidade de pessoas, é, pois, a primeira “sociedade” humana»[468].

Uma sociedade à medida da família é a melhor garantia contra toda a deriva de tipo individualista ou coletivista, porque nela a pessoa está sempre no centro da atenção enquanto fim e nunca como meio. É de todo evidente que o bem das pessoas e o bom funcionamento da sociedade, portanto, estão estreitamente conexos «com uma feliz situação da comunidade conjugal e familiar»[469]. Sem famílias fortes na comunhão e estáveis no compromisso os povos se debilitam. Na família são inculcados desde os primeiros anos de vida os valores morais, transmite-se o patrimônio espiritual da comunidade religiosa e o cultural da nação. Nela se dá a aprendizagem das responsabilidades sociais e da solidariedade[470].

214 Há que se afirmar a prioridade da família em relação à sociedade e ao Estado. A família, de fato, ao menos na sua função procriadora, é a condição mesma da sua existência. Nas outras funções a favor de cada um dos seus membros ela precede, por importância e valor, as funções que a sociedade e o Estado também devem cumprir[471]. A família, sujeito titular de direitos nativos e invioláveis, encontra a sua legitimação na natureza humana e não no reconhecimento do Estado. A família não é, portanto, para a sociedade e para o Estado; antes, a sociedade e o Estado são para a família.

Todo modelo social que pretenda servir ao bem do homem não pode prescindir da centralidade e da responsabilidade social da família. A sociedade e o Estado, nas suas relações com a família, têm o dever de ater-se ao princípio de subsidiariedade. Em força de tal princípio, as autoridades públicas não devem subtrair à família aquelas tarefas que pode bem perfazer sozinha ou livremente associada com outras famílias; por outro lado, as autoridades têm o dever de apoiar a família, assegurando-lhe todos os auxílios de que ela necessita para desempenhar de modo adequado a todas as suas responsabilidades[472].

II. O MATRIMÔNIO FUNDAMENTO DA FAMÍLIA

a) O valor do matrimônio

215 A família tem o seu fundamento na livre vontade dos cônjuges de unir-se em matrimônio, no respeito dos significados e dos valores próprios deste instituto, que não depende do homem, mas do próprio Deus: « No intuito do bem, seja dos esposos como da prole e da sociedade, esse vínculo sagrado não depende do arbítrio humano. Mas o próprio Deus é o autor do matrimônio, dotado de vários valores e fins»[473]. O instituto do matrimônio ? « íntima comunhão de vida e de amor conjugal que o Criador fundou e dotou com Suas leis»[474] ? não é portanto uma criação devida a convenções humanas e a imposições legislativas, mas deve a sua estabilidade ao ordenamento divino[475]. É um instituto que nasce, mesmo para a sociedade, «do ato humano com o qual os cônjuges se dão e recebem mutuamente»[476] e se funda sobre a mesma natureza do amor conjugal que, enquanto dom total e exclusivo, de pessoa a pessoa, comporta um compromisso definitivo expresso com o consentimento recíproco, irrevogável e público[477]. Tal empenho comporta que as relações entre os membros da família sejam caracterizadas pelo sentido da justiça e, portanto, pelo respeito dos direitos e deveres recíprocos.

216 Nenhum poder pode abolir o direito natural ao matrimônio nem lhe modificar as características e a finalidade. O matrimônio, com efeito, é dotado de características próprias, originárias e permanentes. Não obstante as numerosas mudanças que pôde sofrer no curso dos séculos, nas várias culturas, estruturas sociais e atitudes espirituais, em todas as culturas, aliás, há um certo sentido da dignidade da união matrimonial, se bem que não transpareça por toda parte com a mesma clareza[478]. Tal dignidade deve ser respeitada nas suas características específicas, que exigem ser salvaguardadas de fronte a toda tentativa de deturpá-la. A sociedade não pode dispor do laço matrimonial, com o qual os dois esposos prometem mútua fidelidade, assistência e acolhimento dos filhos, mas está habilitada a disciplinar-lhe os efeitos civis.

217 O matrimônio tem como traços característicos: a totalidade, em força da qual os cônjuges se doam reciprocamente em todas as componentes da pessoa, físicas e espirituais; a unidade que os torna «uma só carne» (Gn 2,24); a indissolubilidade e a fidelidade que a doação recíproca definitiva exige; a fecundidade à qual ela naturalmente se abre[479]. O sapiente desígnio de Deus sobre o matrimônio — desígnio acessível à razão humana, não obstante as dificuldades devidas à dureza do coração (cf. Mt 19,8; Mc 10,5) — não pode ser avaliado exclusivamente à luz dos comportamentos de fato e das situações concretas que dele se afastam. É uma negação radical do desígnio original de Deus a poligamia, «porque contrária à igual dignidade pessoal entre o homem e a mulher, que no matrimônio se doam com um amor total e por isso mesmo único e exclusivo»[480].

218 O matrimônio, na sua verdade «objetiva», está ordenado à procriação e à educação dos filhos[481]. A união matrimonial, de fato, leva a viver em plenitude aquele dom sincero de si, cujo fruto são os filhos, por sua vez dom para os pais, para a família toda e para toda a sociedade[482]. O matrimônio, porém, não foi instituído unicamente em vista da procriação[483]: o seu caráter indissolúvel e o seu valor de comunhão permanecem mesmo quando os filhos, ainda que vivamente desejados, não chegam a completar a vida conjugal. Neste caso, os esposos «podem mostrar a sua generosidade adotando crianças desamparadas ou prestando relevantes serviços em favor do próximo»[484].

b) O sacramento do matrimônio

219 A realidade humana e originária do matrimônio é vivida pelos batizados, por instituição de Cristo, na forma sobrenatural do sacramento, sinal e instrumento de Graça. A história da salvação é perpassada pelo tema da aliança esponsal, expressão significativa da comunhão de amor entre Deus e os homens e chave simbólica para compreender as etapas da grande aliança entre Deus e o Seu povo[485]. O centro da revelação do projeto de amor divino é o dom que Deus faz à humanidade do Filho Seu Jesus Cristo, «o Esposo que ama e se doa como Salvador da humanidade, unindo-a a Si como seu corpo. Ele revela a verdade originária do matrimônio, a verdade do “princípio” (cf. Gn 2,24; Mt 19,5) e, libertando o homem da dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente»[486]. Do amor esponsal de Cristo pela Igreja, que mostra a sua plenitude na oferta consumada na Cruz, promana a sacramentalidade do matrimônio, cuja Graça conforma o amor dos esposos ao Amor de Cristo pela Igreja. O matrimônio, enquanto sacramento, é uma aliança de um homem e uma mulher no amor[487].

220 O sacramento do matrimônio assume a realidade humana do amor conjugal em todas as implicações e «habilita e empenha os cônjuges e os pais cristãos a viver a sua vocação de leigos, e por tanto a “procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus”»[488]. Intimamente unida à Igreja em força do vínculo sacramental que a torna Igreja doméstica ou pequena Igreja, a família cristã é chamada «a ser sinal de unidade para o mundo e a exercer deste modo o seu papel profético, testemunhando o Reino e a paz de Cristo, para os quais o mundo inteiro caminha»[489].

A caridade conjugal, que promana da caridade mesma de Cristo, oferecida através do Sacramento, torna os cônjuges cristãos testemunhas de uma sociabilidade nova, inspirada no Evangelho e no Mistério Pascal. A dimensão natural do seu amor é constantemente purificada, consolidada e elevada pela graça sacramental. Deste modo, os cônjuges cristãos, ademais de ajudar-se reciprocamente no caminho de santificação, convertem-se em sinal e instrumento da caridade de Cristo no mundo. Com a sua própria vida eles são chamados a ser testemunhas e anunciadores do significado religioso do matrimônio, que a sociedade atual sente sempre mais dificuldade em reconhecer, especialmente quando acolhe visões que tendem a relativizar até mesmo o fundamento natural do instituto matrimonial.

III. A SUBJETIVIDADE SOCIAL DA FAMÍLIA

a) O amor e a formação de uma comunidade de pessoas

221 A família propõe-se como espaço daquela comunhão, tão necessário em uma comunidade cada vez mais individualista, no qual fazer crescer uma autêntica comunidade de pessoas[490], graças ao incessante dinamismo do amor, que é a dimensão fundamental da experiência humana e que tem precisamente na família um lugar privilegiado para manifestar-se: «O amor faz com que o homem se realize através do dom sincero de si: amar significa dar e receber aquilo que não se pode comprar nem vender, mas apenas livre e reciprocamente oferecer»[491].

Graças ao amor, realidade essencial para definir o matrimônio e a família, toda pessoa, homem e mulher, é reconhecida, acolhida e respeitada na sua dignidade. Do amor nascem relações vividas sob o signo da gratuidade, a qual «respeitando e favorecendo em todos e em cada um a dignidade pessoal como único título de valor, se torna acolhimento cordial, encontro e diálogo, disponibilidade desinteressada, serviço generoso, solidariedade profunda»[492]. A existência de famílias que vivem em tal espírito põem a nu as carências e as contradições de uma sociedade orientada preponderantemente, quando não exclusivamente, por critérios de eficiência e de funcionalidade. A família, que vive construindo todos os dias uma rede de relações interpessoais, internas e externas, põe-se por sua vez como «a primeira e insubstituível escola de sociabilidade, exemplo e estímulo para as mais amplas relações comunitárias na mira do respeito, da justiça, do diálogo, do amor»[493].

222 O amor se expressa também mediante uma pressurosa atenção para com os anciães que vivem na família: a sua presença pode assumir um grande valor. Eles são o exemplo de conexão entre as gerações, uma riqueza para o bem-estar da família e de toda a sociedade: «Não só podem dar testemunho de que existem aspectos da vida, como os valores humanos e culturais, morais e sociais, que não se medem em termos econômicos e funcionais, mas oferecer também o seu contributo eficaz no âmbito do trabalho e no da responsabilidade. Trata-se, por fim, não só de fazer algo pelos idosos, mas de aceitar também estas pessoas como colaboradores responsáveis, com modalidades que o tornem realmente possível, como agentes de projetos partilhados, em fase de programação, de diálogo ou de realização»[494]. Como diz a Sagrada Escritura, as pessoas «na velhice ainda darão frutos» (Sal 92, 15). Os anciães constituem uma importante escola de vida, capaz de transmitir valores e tradições e de favorecer o crescimento dos mais jovens, os quais desse modo aprendem a buscar não somente o próprio bem, mas também o de outrem. Se os anciães se encontram em uma situação de sofrimento e dependência, necessitam não só de cuidados médicos e de uma assistência apropriada, mas sobretudo de ser tratados com amor.

223 O ser humano é feito para amar e sem amor não pode viver. Quando se manifesta no dom total de duas pessoas na sua complementaridade, o amor não pode ser reduzido às emoções e aos sentimentos, nem tampouco à sua mera expressão sexual. Uma sociedade que tende cada vez mais a relativizar e a banalizar a experiência do amor e da sexualidade, exalta os aspectos efêmeros da vida e obscurece os seus valores fundamentais: torna-se cada vez mais urgente anunciar e testemunhar a verdade do amor e da sexualidade conjugal só existe onde se realiza um dom pleno e total das pessoas com as características da unidade e da fidelidade[495]. Tal verdade, fonte de alegria, de esperança e de vida, permanece impenetrável e inatingível enquanto se estiver fechado no relativismo e no ceticismo.

224 Em face das teorias que consideram a identidade de gênero somente o produto cultural e social derivante da interação entre a comunidade e o indivíduo, prescindindo da identidade sexual pessoal e sem referência alguma ao verdadeiro significado da sexualidade, a Igreja não se cansará de reafirmar o próprio ensinamento: «Cabe a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar sua identidade sexual. A diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais são orientadas para os bens do casamento e para o desabrochar da vida familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como se vivem entre os sexos a complementaridade, a necessidade e o apoio mútuos»[496]. Esta é uma perspectiva que faz considerar imprescindível a conformação do direito positivo com a lei natural, segundo a qual a identidade sexual é indisponível, porque é a condição objetiva para formar um casal no matrimônio.

225 A natureza do amor conjugal exige a estabilidade da relação matrimonial e a sua indissolubilidade. A falta destes requisitos prejudica a relação de amor exclusivo e total próprio do vínculo matrimonial, com graves sofrimentos para os filhos, com reflexos dolorosos também no tecido social.

A estabilidade e a indissolubilidade da união matrimonial não devem ser confiadas exclusivamente à intenção e ao empenho de cada uma das pessoas envolvidas: a responsabilidade da tutela e da promoção da família como instituição natural fundamental, precisamente em consideração dos seus aspectos vitais e irrenunciáveis, compete à sociedade toda. A necessidade de conferir um caráter institucional ao matrimônio, fundando-o em um ato público, social e juridicamente reconhecido, deriva de exigências basilares de natureza social.

A introdução do divórcio nas legislações civis, pelo contrário tem alimentado uma visão relativista do laço conjugal e se manifestou amplamente como uma verdadeira «chaga social»[497]. Os casais que conservam e desenvolvem o bem da indissolubilidade «cumprem … de um modo humilde e corajoso, o dever que lhes foi confiado de ser no mundo um “sinal” — pequeno e precioso sinal, submetido também às vezes à tentação, mas sempre renovado — da fidelidade infatigável com que Deus e Jesus Cristo amam todos os homens e cada homem»[498].

226 A Igreja não abandona a si mesmos aqueles que, após um divórcio, tornaram a se casar. A Igreja reza por eles, anima-os nas dificuldades de ordem espiritual que encontram e os sustém na fé e na esperança. Por parte dessas pessoas, enquanto batizadas, podem, antes devem, participar da vida eclesial: são exortadas a escutar a Palavra de Deus, a freqüentar o sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a dar incremento às obras de caridade e às iniciativas da comunidade a favor da justiça e da paz, a educar os filhos na fé, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorar, dia após dia, a graça de Deus.

A reconciliação no sacramento da penitência — que abriria a estrada ao sacramento eucarístico — pode ser concedida somente aos que, arrependidos, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio[499].

Assim agindo, a Igreja professa a própria fidelidade a Cristo e à Sua verdade; ao mesmo tempo se comporta com ânimo materno em relação a estes filhos seus, especialmente para com aqueles que, sem sua culpa, foram abandonados pelo legítimo cônjuge. Com firme confiança ela crê que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor, e em tal estado ainda vivem, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se tiverem perseverado na oração, na penitência e na caridade[500].

227 As uniões de fato, cujo número tem aumentado progressivamente, baseiam-se em uma falsa concepção da liberdade de opção dos indivíduos[501] e em uma concepção de todo privatista do matrimônio e da família. O matrimônio, de fato, não é um simples pacto de convivência, mas uma relação com uma dimensão social única em relação a todas as outras, enquanto a família, provendo à procriação e à educação dos filhos, se configura como instrumento primário para o crescimento integral de cada pessoa e para a sua positiva inserção na vida social.

A eventual equiparação legislativa entre família e «uniões de fato» traduzir-se-ia em um descrédito do modelo de família, que não se pode realizar em uma precária relação entre pessoas[502], mas somente em uma união permanente originada por um matrimônio, isto é, pelo pacto entre um homem e uma mulher, fundado sobre uma escolha recíproca e livre que implica a plena comunhão conjugal orientada para a procriação.

228 Uma problemática particular ligada às uniões de fato é a concernente à demanda de reconhecimento jurídico das uniões homossexuais, cada vez mais objeto de debate público. Somente uma antropologia correspondente à plena verdade do homem pode dar uma resposta apropriada ao problema, que apresenta diversos aspectos, quer no plano social quer no eclesial[503]. À luz de tal antropologia revela-se «como é incongruente a pretensão de atribuir uma realidade “conjugal” à união entre pessoas do mesmo sexo. A ela opõe-se, antes de tudo, a impossibilidade objetiva de fazer frutificar o conúbio mediante a transmissão da vida, segundo com o projeto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano. Serve de obstáculo, além disso, a ausência dos pressupostos para aquela complementaridade interpessoal que o Criador quis, tanto no plano físico-biológico quanto no plano eminentemente psicológico, entre o homem e a mulher. É só na união entre duas pessoas sexualmente diferentes que se pode realizar o aperfeiçoamento do indivíduo, numa síntese de unidade e de mútua complementação psicofísica»[504].

A pessoa homossexual deve ser plenamente respeitada na sua dignidade humana[505] e encorajada a seguir o plano de Deus com um empenho particular no exercício da castidade[506]. O respeito que se lhes deve não significa legitimação de comportamentos não conformes com a lei moral, nem tampouco o reconhecimento de um direito ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, com a conseqüente equiparação de tal união à família[507]: « Se, do ponto de vista legal, o matrimônio entre duas pessoas de sexo diferente for considerado apenas como um dos matrimônios possíveis, o conceito de matrimônio sofrerá uma alteração radical, com grave prejuízo para o bem comum. Colocando a união homossexual num plano jurídico análogo ao do matrimônio ou da família, o Estado comporta-se de modo arbitrário e entra em contradição com os próprios deveres»[508].

229 A solidez do núcleo familiar é um recurso determinante para a qualidade da convivência social, por isso a comunidade civil não pode ficar indiferente de fronte às tendências desagregadoras que minam na base as suas pilastras fundamentais. Se uma legislação pode por vezes tolerar comportamentos moralmente inaceitáveis[509], não deve jamais debilitar o reconhecimento do matrimônio monogâmico indissolúvel qual única forma autêntica da família. É portanto necessário que se atue «também junto das autoridades públicas, para que, resistindo a estas tendências desagregadoras da própria sociedade e prejudiciais à dignidade, segurança e bem-estar dos cidadãos, a opinião pública não seja induzida a menosprezar a importância institucional do matrimônio e da família»[510].

É tarefa da comunidade cristã e de todos aqueles que tomam a peito o bem da sociedade reafirmar que «a família constitui, mais do que uma unidade jurídica, social e econômica, uma comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e a transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e o bem-estar dos próprios membros e da sociedade»[511].

b) A família é o santuário da vida

230 O amor conjugal é por sua natureza aberto ao acolhimento da vida[512]. Na tarefa procriadora revela-se de modo eminente a dignidade do ser humano, chamado a ser interprete da bondade e da fecundidade que provêm de Deus: «A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas de modo essencial e exclusivo uma “semelhança” com Deus, sobre a qual se funda a família, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade de pessoas unidas no amor (communio personarum)»[513].

A procriação expressa a subjetividade social da família e dá início a um dinamismo de amor e de solidariedade entre as gerações que está na base da sociedade. É preciso redescobrir o valor social de partícula do bem comum ínsito em cada novo ser humano: cada criança «faz de si um dom aos irmãos, às irmãs, aos pais, à família inteira. A sua vida torna-se dom para os próprios doadores da vida, que não poderão deixar de sentir a presença do filho, a sua participação na existência deles, o seu contributo para o bem comum deles e da família»[514].

231 A família fundada no matrimônio é deveras o santuário da vida, «o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico»[515]. Determinante e insubstituível é e deve ser considerado o seu papel para promover e construir a cultura da vida[516] contra a difusão de uma « “anticivilização” destruidora, como se confirma hoje por tantas tendências e situações de fato »[517].

As famílias cristãs, em força do sacramento recebido, têm a missão peculiar de ser testemunhas e anunciadoras do Evangelho da vida. É um empenho que assume na sociedade o valor de verdadeira e corajosa profecia. É por este motivo que «servir o Evangelho da vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem por que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam»[518].

232 A família contribui de modo eminente para o bem social através da paternidade e da maternidade responsáveis, formas peculiares da especial participação dos cônjuges na obra criadora de Deus[519]. O ônus de uma semelhante responsabilidade não pode ser invocada para justificar fechamentos egoísticos, mas deve guiar as escolhas dos cônjuges para um generoso acolhimento da vida: «Em relação às condições físicas, econômicas, psicológicas e sociais, a paternidade responsável exerce-se tanto com a deliberação ponderada e generosa de fazer crescer uma família numerosa, como com a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento»[520]. As motivações que devem guiar os esposos no exercício responsável da paternidade e da maternidade derivam do pleno reconhecimento dos próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores.

233 Quanto aos «meios» para atuar a procriação responsável, há que se excluir como moralmente ilícitos tanto a esterilização como o aborto[521]. Este último, em particular, é um abominável delito e constitui sempre uma desordem moral particularmente grave[522]; longe de ser um direito, é antes um triste fenômeno que contribui gravemente para a difusão de uma mentalidade contra a vida, ameaçando perigosamente uma convivência social justa e democrática[523].

É igualmente de excluir o recurso aos meios contraceptivos nas suas diversas formas[524]: tal rejeição tem o seu fundamento numa concepção correta e integral da pessoa e da sexualidade humana[525] e tem o valor de uma instância moral em defesa da verdadeira humanização dos povos[526]. As mesmas razões de ordem antropológica justificam, pelo contrário, como lícito o recurso à abstinência periódica nos períodos de fertilidade feminina[527]. Rejeitar a contracepção e recorrer aos métodos naturais de regulação da fertilidade significa modelar as relações interpessoais entre os cônjuges com base no respeito recíproco e no total acolhimento, com reflexos positivos também para a realização de uma ordem social mais humana.

234 O juízo acerca do intervalo entre os nascimentos e o número dos filhos a procriar compete somente aos esposos. Este é um seu direito inalienável, a ser exercitado diante de Deus, considerando os deveres para consigo mesmos, para com os filhos já nascidos, a família e a sociedade[528]. A intervenção dos poderes públicos, no âmbito das suas competências, para a difusão de uma informação apropriada e a adoção de medidas oportunas em campo demográfico, deve ser efetuada no respeito das pessoas e da liberdade dos casais: ninguém os pode substituir nas suas opções[529]; tampouco o podem fazer as várias organizações que atuam neste setor.

São moralmente condenáveis como atentados à dignidade da pessoa e da família, todos os programas de ajuda econômica destinados a financiar campanhas de esterilização e de contracepção ou subordinadas à aceitação de tais campanhas. A solução das questões conexas ao crescimento demográfico deve ser antes perseguida no simultâneo respeito tanto da moral sexual e como da moral social, promovendo uma maior justiça e autêntica solidariedade para dar por todo lado dignidade à vida, a começar das condições econômicas, sociais e culturais.

235 O desejo de maternidade ou paternidade não funda algum « direito ao filho », ao passo que, pelo contrário, são evidentes os direitos do nascituro, a quem devem ser garantidas as condições ótimas de existência, através da estabilidade da família fundada no matrimônio, a complementaridade das duas figuras, paterna e materna[530]. O rápido progresso da pesquisa e das aplicações técnicas na esfera da reprodução põe novas e delicadas questões que chamam em causa a sociedade e as normas que regulam a convivência humana.

É preciso reafirmar que não são eticamente aceitáveis todas as técnicas reprodutivas — quais a doação de esperma ou de ovócitos; a maternidade substitutiva; a fecundação artificial heteróloga — que prevêem o recurso ao útero ou a gametas de pessoas estranhas ao casal conjugal, lesando o direito do filho a nascer de um pai e de uma mãe que sejam tais tanto do ponto de vista biológico como jurídico, ou dissociam o ato unitivo do ato procriador recorrendo a técnicas de laboratório, quais a inseminação e a fecundação artificial homóloga, de modo que o filho aparece mais como o resultado de um ato técnico do que como o fruto natural do ato humano de plena e total doação dos cônjuges[531]. Evitar o recurso às diversas formas da chamada procriação assistida, substitutiva do ato conjugal, significa respeitar — seja nos pais seja nos filhos que eles pretendem gerar — a dignidade integral da pessoa humana[532]. São lícitos, pelo contrário, os meios que se configuram como ajuda ao ato conjugal ou ao conseguimento dos seus efeitos[533].

236 Uma questão de particular relevância social e cultural, pelas múltiplas e graves implicações morais que apresenta, é a referente à clonagem humana, termo que, de per si, em sentido genérico, significa reprodução de uma entidade biológica geneticamente idêntica à de origem. Ela tem assumido, no pensamento e na praxe experimental, diversos significados que supõem, por sua vez, procedimentos diversos do ponto de vista das modalidades técnicas de realização, bem como finalidades diferentes. Pode significar a simples replicação em laboratório de células ou de porções de ADN. Mas especificamente hoje se entende a reprodução de indivíduos, no estado embrional com modalidades diferentes da fecundação natural e de modo que sejam geneticamente idênticos ao indivíduo de quem têm origem. Este tipo de clonagem pode ter a finalidade reprodutiva de embriões humanos ou a assim chamada terapêutica, tendente a utilizar tais embriões para fins de pesquisa científica ou mais especificamente para a reprodução de células tronco.

Do ponto de vista ético a simples replicação de células normais ou de porções de ADN não apresenta problemas éticos particulares. Bem distinto é o juízo do Magistério sobre a clonagem propriamente dita. É contrária à dignidade da procriação humana porque se realiza em ausência total do ato de amor pessoal entre os esposos, sendo uma reprodução agâmica e assexuada[534]. Em segundo lugar este tipo de reprodução representa uma forma de domínio total sobre o indivíduo reproduzido por parte de quem o reproduz[535]. O fato de que seja realizada a clonagem para reproduzir embriões dos quais tirar células que possam ser usadas para a terapia não atenua a gravidade moral, mesmo porque para tirar tais células o embrião deve ser primeiro produzido e depois suprimido[536].

237 Os pais, como ministros da vida, não devem nunca olvidar que a dimensão espiritual da procriação merece uma consideração superior à reservada a qualquer outro aspecto: «A paternidade e a maternidade representam uma tarefa de natureza conjuntamente física e espiritual; através delas, passa realmente a genealogia da pessoa, que tem o seu princípio eterno em Deus e a Ele deve conduzir»[537]. Acolhendo a vida humana na unidade das suas dimensões, físicas e espirituais, as famílias contribuem para a «comunhão das gerações» continuidade da espécie e dão, deste modo, um contributo essencial e insubstituível para o progresso da sociedade. Por isto, «a família tem o direito à assistência da sociedade no que se refere aos seus deveres na procriação e educação dos filhos. Os casais casados com família numerosa têm direito a uma ajuda adequada e não devem ser discriminados»[538].

c) A tarefa educativa

238. Com a obra educativa, a família forma o homem para a plenitude da sua dignidade pessoal, segundo todas as suas dimensões, inclusive a social. A família constitui, efetivamente, «una comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e a transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e bem-estar de seus próprios membros e da sociedade»[539]. Exercendo a sua missão educativa, a família contribui para o bem comum e constitui a primeira escola das virtudes sociais, de que todas as sociedades necessitam[540]. As pessoas são ajudadas, em família, a crescer na liberdade e na responsabilidade, requisitos indispensáveis para se assumir qualquer tarefa na sociedade. Com a educação, ademais, são comunicados, para serem assimilados e feitos próprios por cada um, alguns valores fundamentais, necessários para ser cidadãos livres, honestos e responsáveis[541].

239 A família tem um papel de todo original e insubstituível na educação dos filhos[542]. O amor paterno e materno, colocando-se ao serviço dos filhos para extrair deles («e-ducere») o melhor de si, tem a sua plena realização precisamente na tarefa educativa: «o amor dos pais de fonte torna-se alma e, portanto, norma, que inspira e guia toda a ação educativa concreta, enriquecendo-a com aqueles valores de docilidade, constância, bondade, serviço, desinteresse, espírito de sacrifício, que são o fruto mais precioso do amor»[543].

O direito-dever dos pais de educar a prole se qualifica «como essencial, ligado como está à transmissão da vida humana; como original e primário, em relação ao dever de educar dos outros, pela unicidade da relação de amor que subsiste entre pais e filhos; como insubstituível e inalienável, e portanto, não delegável totalmente a outros ou por outros usurpável»[544]. Os pais têm o direito-dever de oferecer uma educação religiosa e uma formação moral aos seus filhos[545]: direito que não pode ser cancelado pelo Estado, mas deve ser respeitado e promovido; dever primário, que a família não pode descurar nem delegar.

240 Os pais são os primeiros, mas não os únicos educadores de seus filhos. Compete-lhes, pois, a eles exercer com sentido de responsabilidade a sua obra educativa em colaboração estreita e vigilante com os organismos civis e eclesiais: «a dimensão comunitária, civil e eclesial do homem exige e conduz a uma obra mais ampla e articulada, que seja o fruto da colaboração ordenada das diversas forças educativas. Estas forças são todas elas necessárias, mesmo que cada uma possa e deva intervir com a sua competência e o seu contributo próprio»[546]. Os pais têm o direito de escolher os instrumentos formativos correspondentes às próprias convicções e de buscar os meios que possam ajudá-los da melhor maneira na sua tarefa de educadores, mesmo no âmbito espiritual e religioso. As autoridades públicas têm o dever de garantir tal direito e de assegurar as condições concretas que consentem o seu exercício[547]. Neste contexto, se coloca antes de mais o tema da colaboração entre a família e a instituição escolar.

241. Os pais têm o direito de fundar e manter instituições educativas. As autoridades públicas devem assegurar que «se distribuam as subvenções públicas de modo tal que os pais sejam verdadeiramente livres para exercer o seu direito, sem ter de suportar ônus injustos. Os pais não devem ser constrangidos a fazer, nem direta nem indiretamente, despesas suplementares que impeçam ou limitem injustamente o exercício desta liberdade»[548]. Deve-se, portanto, considerar uma injustiça negar a subvenção econômica pública às escolas não estatais que dela necessitem e que prestam um serviço à sociedade civil: «Quando o Estado reivindica para si o monopólio escolar, ultrapassa os seus direitos e ofende a justiça… o Estado não pode, sem cometer injustiça, limitar-se a tolerar as escolas ditas privadas. Estas prestam um serviço público e, de conseqüência, têm o direito de ser ajudadas economicamente»[549].

242. A família tem a responsabilidade de oferecer uma educação integral. Toda a verdadeira educação, efetivamente, «visa o aprimoramento da pessoa humana em relação a seu fim último e o bem das sociedades de que o homem é membro, e em cujas tarefas, uma vez adulto, terá que participar»[550]. A integralidade fica assegurada quando os filhos — com o testemunho de vida e com a palavra — são educados para o diálogo, para o encontro, para a sociabilidade, para a legalidade, para a solidariedade e para a paz, mediante o cultivo das virtudes fundamentais da justiça e da caridade[551].

Na educação dos filhos, o papel paterno e o materno são igualmente necessários[552]. Os pais devem, pois, agir conjuntamente. A autoridade deve ser por eles exercida com respeito e delicadeza, mas também com firmeza e vigor: deve ser credível, coerente, sábia e sempre orientada ao bem integral dos filhos.

243 Os pais têm ainda uma particular responsabilidade na esfera da educação sexual. É de fundamental importância, para um crescimento equilibrado, que os filhos aprendam de modo ordenado e progressivo o significado da sexualidade e aprendam a apreciar os valores humanos e morais relativos a ela: «Pelos laços estreitos que ligam a dimensão sexual da pessoa e os seus valores éticos, o dever educativo deve conduzir os filhos a conhecer e a estimar as normas morais como necessária e preciosa garantia para um crescimento pessoal responsável na sexualidade humana»[553]. Os pais têm a obrigação de verificar o modo como se realiza a a educação sexual nas instituições educativas, a fim de garantir que um tema tão importante e delicado seja abordado de modo apropriado.

d) A dignidade e os direitos das crianças

244 A doutrina social da Igreja indica constantemente a exigência de respeitar a dignidade das crianças: «Na família, comunidade de pessoas, deve reservar-se uma especialíssima atenção à criança, desenvolvendo uma estima profunda pela sua dignidade pessoal como também um grande respeito e um generoso serviço pelos seus direitos. Isto vale para cada criança, mas adquire uma urgência singular quanto mais pequena e desprovida, doente, sofredora ou diminuída for a criança»[554].

Os direitos das crianças devem ser protegidos pelos ordenamentos jurídicos. É necessário, antes de tudo, o reconhecimento público em todos os países do valor social da infância: «Nenhum país do mundo, nenhum sistema político pode pensar ao próprio porvir diversamente, senão através da imagem destas novas gerações, que hão de assumir de seus progenitores o multíplice patrimônio dos valores, dos deveres e das aspirações da nação à qual pertencem, juntamente com o patrimônio de toda a família humana»[555]. O primeiro direito da criança é o direito «a nascer numa verdadeira família»[556], um direito cujo respeito sempre foi problemático e que hoje conhece novas formas de violação devidas ao progresso das técnicas genéticas.

245 A situação de uma grande parte das crianças no mundo está longe de ser satisfatória, por falta de condições que favoreçam o seu crescimento integral, apesar da existência de um instrumento jurídico internacional específico para a tutela dos direitos da criança[557], que empenha quase todos os membros da comunidade internacional. Trata-se de condições ligadas à falta de serviços sanitários, de uma alimentação adequada, de possibilidade de receber um mínimo de formação escolar e de uma casa. Permanecem irresolutos, ademais, alguns problemas gravíssimos: o tráfico de crianças, o trabalho infantil, o fenômeno dos “meninos de rua”, o uso de crianças em conflitos armados, o matrimônio das meninas, o uso de crianças para o comércio de material pornográfico, também através dos mais modernos e sofisticados instrumentos de comunicação social. É indispensável combater, em âmbito nacional e internacional, as gravíssimas ofensas à dignidade dos meninos e das meninas derivadas da exploração sexual, das pessoas dadas à pedofilia e das violências de todo e qualquer tipo, sofridas por estas pessoas humanas mais indefesas[558]. Trata-se de atos gravíssimos e delituosos, que devem ser eficazmente combatidos, com medidas preventivas e penais, através de uma ação enérgica das autoridades.

IV. A FAMÍLIA PROTAGONISTA DA VIDA SOCIAL

a) Solidariedade familiar

246 A subjetividade social das famílias, tanto singularmente tomadas como associadas, exprime-se ademais com múltiplas manifestações de solidariedade e de partilha, não somente entre as próprias famílias, como também mediante várias formas de participação na vida social e política. Trata-se da conseqüência da realidade familiar fundada no amor: nascendo do amor e crescendo no amor, a solidariedade pertence à família como dado constitutivo e estrutural.

É uma solidariedade que pode assumir o rosto do serviço e da atenção a quantos vivem na pobreza e na indigência, aos órfãos, aos deficientes, aos enfermos, aos anciães, a quem está em luto, a todos os que estão na dúvida, na solidão ou no abandono; uma solidariedade que se abre ao acolhimento, à guarda ou à adoção; que sabe fazer-se voz de toda a situação de mal-estar junto das instituições, para que estas intervenham de acordo com as próprias finalidades específicas.

247 As famílias, longe de ser somente objeto de ação política, podem e devem ser sujeito de tal atividade, diligenciando «para que as leis e as instituições do Estado não só não ofendam, mas sustentem e defendam positivamente os seus direitos e deveres. Em tal sentido as famílias devem crescer na consciência de serem “protagonistas” da chamada «política familiar» e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade»[559]. Para tanto, deve ser corroborado o associacionismo familiar: «As famílias têm o direito de formar associações com outras famílias e instituições, para desempenhar o papel da família de modo conveniente e efetivo, como também para proteger os direitos, promover o bem e representar os interesses da família. No plano econômico, social, jurídico e cultural, deve ser reconhecido o legítimo papel das famílias e das associações familiares na elaboração e na atuação dos programas que dizem respeito à vida da família»[560].

b) Família, vida econômica e trabalho

248 A relação que intercorre entre a família e a vida econômica é particularmente significativa. Por uma parte, com efeito, a «eco-nomia» nasceu do trabalho doméstico: a casa foi por longo tempo, e ainda ? em muitos lugares — continua a ser, unidade de produção e centro de vida. O dinamismo da vida econômica, por outra parte, se desenvolve com a iniciativa das pessoas e se realiza, segundo círculos concêntricos, em redes cada vez mais vastas de produção e de troca de bens e de serviços, que envolvem em medida crescente as famílias. A família, portanto, há de ser considerada, com todo o direito, como protagonista essencial da vida econômica, orientada não pela lógica do mercado, mas segundo a lógica da partilha e da solidariedade entre as gerações.

249 Uma relação absolutamente particular liga a família e o trabalho: «a família constitui um dos mais importantes termos de referência, segundo os quais tem de ser formada a ordem sócio-ética do trabalho humano»[561].Tal relação tem suas raízes na relação que intercorre entre a pessoa e o seu direito a possuir o fruto do próprio trabalho, e diz respeito não somente ao indivíduo enquanto tal, mas também como membro de uma família, concebida como «sociedade doméstica»[562].

O trabalho é essencial enquanto representa a condição que torna possível a fundação de uma família, cujos meios de subsistência se obtêm mediante o trabalho. O trabalho condiciona também o processo de crescimento das pessoas, pois uma família vítima do desemprego corre o risco de não realizar plenamente as suas finalidades[563].

O contributo que a família pode oferecer à realidade do trabalho é precioso e, sob muitos aspectos, insubstituível. É um contributo que se expressa quer em termos econômicos quer mediante os grandes recursos de solidariedade que a família possui e que constituem um importante apoio para quem, dentro dela, se acha sem trabalho ou está à procura de um emprego. Sobretudo e mais radicalmente, é um contributo que se realiza com a educação para o sentido do trabalho e mediante a oferta de orientações e apoios em face das mesmas opções profissionais.

250 Para tutelar esta relação essencial entre família e trabalho, um elemento a estimar e salvaguardar é o salário-família, ou seja, um salário suficiente para manter e fazer viver dignamente a família[564]. Tal salário deve também permitir a realização de uma poupança que favoreça a aquisição de uma certa propriedade, como garantia de liberdade: o direito à propriedade é estreitamente ligado à existência das famílias, que se põem ao abrigo da necessidade também graças à poupança e à constituição de uma propriedade familiar[565]. Vários podem ser os modos para concretizar o salário familiar. Concorrem para determiná-lo algumas importantes medidas sociais, como os abonos familiares e outros contributos para as pessoas que dependem da família, como também a remuneração do trabalho doméstico de um dos genitores[566].

251 Nas relações entre família e trabalho, uma atenção particular deve ser reservada ao trabalho da mulher em família, o assim chamado trabalho de atenção, que chama em causa também as responsabilidades do homem como marido e como pai. O trabalho de atenção, a começar daquele da mãe, precisamente porque finalizado e dedicado ao serviço da qualidade da vida, constitui um tipo de atividade laboral eminentemente pessoal e personalizante, que deve ser socialmente reconhecida e valorizada[567], também através de uma remuneração econômica pelo menos equivalente à de outros trabalhos[568]. Ao mesmo tempo, é necessário eliminar todos os obstáculos que impedem aos esposos exercer livremente a sua responsabilidade procriadora e, em particular, os que constrangem a mulher a não realizar plenamente as suas funções maternas[569].

252 O ponto de partida para uma relação correta e construtiva entre a família e a sociedade é o reconhecimento da subjetividade e da prioridade social da família. A sua íntima relação impõe que «a sociedade não abandone o seu dever fundamental de respeitar e de promover a família»[570]. A sociedade e, em particular, as instituições estatais — no respeito da prioridade e «antecedência» da família — são chamadas a garantir e a favorecer a genuína identidade da vida familiar e a evitar e combater tudo o que a altere ou fira. Isto requer que a ação política e legislativa salvaguarde os valores da família, desde a promoção da intimidade e da convivência familiar, até ao respeito da vida nascente, à efetiva liberdade de opção na educação dos filhos. A sociedade e o Estado não podem, portanto, nem absorver, nem substituir, nem reduzir a dimensão social da família mesma; deve antes honrá-la, reconhecê-la, respeitá-la e promovê-la segundo o princípio de subsidiariedade[571].

253 O serviço da sociedade à família se concretiza no reconhecimento, no respeito e na promoção dos direitos da família[572]. Tudo isto requer a realização de políticas familiares autênticas e eficazes com intervenções precisas aptas para responder às necessidades que derivam dos direitos da família como tal. Nesse sentido, é necessário o pré-requisito, essencial e irrenunciável, do reconhecimento — que comporta a tutela, a valorização e a promoção — da identidade da família, sociedade natural fundada sobre o matrimônio. Tal reconhecimento traça uma linha de demarcação clara entre a família propriamente entendida e as outras convivências, que da família — pela sua natureza — não podem merecer nem o nome nem o estatuto.

254 O reconhecimento, por parte das instituições civis e do Estado, da prioridade da família sobre qualquer outra comunidade e sobre a própria realidade estatal, leva a superar as concepções meramente individualistas e a assumir a dimensão familiar como perspectiva, cultural e política, irrenunciável na consideração das pessoas. Isto não se põe como alternativa, mas como suporte e tutela dos direitos mesmos que as pessoas têm individualmente. Tal perspectiva torna possível elaborar critérios normativos para uma solução correta dos diversos problemas sociais, pois as pessoas não devem ser consideradas só singularmente, como também em relação aos núcleos familiares em que estão inseridas, cujos valores específicos e exigências se devem ter na devida conta.

CAPÍTULO VI – O TRABALHO HUMANO

I. ASPECTOS BÍBLICOS

a) A tarefa de submeter a terra

255 O Antigo Testamento apresenta Deus como criador onipotente (cf. Gên 2, 2; Jó 38-41; Sal 103[104]; Sal 146-147[147]), que plasma o homem à Sua imagem e o convida a cultivar a terra (cf. Gên 2, 5-6) e a guardar o jardim do Éden em que o pôs (cf. Gên 2, 15). Ao primeiro casal humano Deus confia a tarefa de submeter a terra e de dominar sobre todo ser vivente (cf. Gn 1, 28). O domínio do homem sobre os demais seres viventes não deve todavia ser despótico e destituído de bom senso; pelo contrario ele deve «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15) os bens criados por Deus: bens que o homem não criou, mas os recebeu como um dom precioso posto pelo Criador sob a sua responsabilidade. Cultivara terra significa não abandoná-la a si mesma; exercer domínio sobre ela e guardá-la, assim como um rei sábio cuida do seu povo e um pastor, da sua grei.

No desígnio do Criador, as realidades criadas, boas em si mesmas, existem em função do homem. O deslumbramento ante o mistério da grandeza do homem faz exclamar ao salmista: «que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino, de glória e honra o coroaste. Deste-lhe o domínio sobre as obras de tuas mãos, tudo submeteste a seus pés» (Sal 8, 5-7).

256 O trabalho pertence à condição originária do homem e precede a sua queda; não é, portanto, nem punição nem maldição. Este se torna fadiga e pena por causa do pecado de Adão e Eva, que quebrantam o seu relacionamento confiante e harmonioso com Deus (cf. Gn 3, 6-8). A proibição de comer «da árvore do conhecimento do bem e do mal» (Gên 2, 17) lembra ao homem que ele recebeu tudo como dom e que continua a ser uma criatura e não o Criador. O pecado de Adão e Eva foi provocado precisamente por esta tentação: «sereis como Deus» (Gn 3, 5). Eles quiseram ter o domínio absoluto sobre todas as coisas, sem se submeterem à vontade do Criador. Desde então o solo se torna avaro, ingrato, surdamente hostil (cf. Gn 4, 12); somente com o suor da fronte será possível extrair dele alimento (cf. Gn 3, 17.19). Não obstante o pecado dos progenitores, permanecem inalterados, todavia, o desígnio do Criador, o sentido das Suas criaturas e, dentre elas, do homem, chamado a ser cultivador e guardião da criação.

257 O trabalho deve ser honrado porque fonte de riqueza ou pelo menos condições de vida decorosas e, em geral, é instrumento eficaz contra a pobreza (cf. Pr 10, 4), mas não se deve ceder à tentação de idolatrá-lo, pois que nele não se pode encontrar o sentido último e definitivo da vida. O trabalho é essencial, mas é Deus — não o trabalho — a fonte da vida e o fim do homem. O princípio fundamental da Sabedoria, com efeito, é o temor do Senhor; a exigência da justiça, que daí deriva, precede a do lucro: « Vale mais o pouco com o temor do Senhor / que um grande tesouro com a inquietação » (Pr 15, 16). « Mais vale o pouco com justiça / do que grandes lucros com iniqüidade » (Pr 16, 8).

258 Ápice do ensinamento bíblico sobre o trabalho é o mandamento do repouso sabático. Para o homem, ligado à necessidade do trabalho, o repouso abre a perspectiva de uma liberdade mais plena, a do Sábado eterno (cf. Hb 4, 9-10). O repouso consente aos homens recordar e reviver as obras de Deus, da Criação à Redenção, e reconhecer-se a si próprios como obra Sua (cf. Ef 2, 10), dar-Lhe graças pela própria vida e subsistência a Ele, que é seu autor.

A memória e a experiência do sábado constituem um baluarte contra a escravização do homem ao trabalho, voluntário ou imposto, contra toda forma de exploração, larvada ou manifesta. O repouso sabático, de fato, mais que para consentir a participação no culto de Deus, foi instituído em defesa do pobre; tem também uma função liberatória das degenerações anti-sociais do trabalho humano. Tal repouso, que pode durar até mesmo um ano, comporta uma expropriação dos frutos da terra a favor dos pobres e a suspensão dos direitos de propriedade dos donos do solo: «Durante seis anos, semearás a terra e recolherás o produto. Mas, no sétimo ano, deixá-la-ás repousar em alqueive; os pobres de teu povo comerão o seu produto, e os animais selvagens comerão o resto. Farás o mesmo com a tua vinha e o teu olival » (Ex 23, 10-11). Este costume corresponde a uma intuição profunda: o acúmulo de bens por parte de alguns pode tornar-se uma subtração de bens a outros.

b) Jesus homem do trabalho

259 Na Sua pregação Jesus ensina a apreciar o trabalho. Ele mesmo, « se tornou semelhante a nós em tudo, passando a maior parte dos anos da vida sobre a terra junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual »[573], na oficina de José (cf. Mt 13, 55; Mc 6, 3), a quem estava submisso (cf. Lc 2, 51). Jesus condena o comportamento do servo indolente, que esconde debaixo da terra o talento (cf. Mt 25, 14-30) e louva o servo fiel e prudente que o patrão encontra aplicado em cumprir a tarefa que lhe fora confiada (cf. Mt 24, 46). Ele descreve a Sua própria missão como um trabalhar: « Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também» (Jo 5, 17); e os seus discípulos como operários na messe do Senhor, que é a humanidade a evangelizar (cf. Mt 9, 37-38). Para estes operários vale o princípio geral segundo o qual « o operário é digno do seu salário» (Lc 10, 7); eles estão autorizados a permanecer nas casas em que forem acolhidos, a comer e a beber do que lhes for servido (cf. ibidem).

260 Na Sua pregação, Jesus ensina aos homens a não se deixarem escravizar pelo trabalho. Eles devem preocupar-se, antes de tudo, com a sua alma; ganhar o mundo o mundo inteiro não é o escopo de sua vida (cf. Mc 8, 36). Os tesouros da terra, com efeito, se consomem, ao passo que os tesouros do céu são imperecedouros: a estes se deve ligar o próprio coração (cf. Mt 6, 19-21). O trabalho não deve afligir (cf. Mt 6, 25.31.34): preocupado e agitado por muitas coisas, o homem corre o risco de negligenciar o Reino de Deus e a Sua justiça (cf. Mt 6, 33), de que verdadeiramente necessita; tudo mais, inclusive o trabalho, encontra o seu lugar, o seu sentido e o seu valor somente se orientado para esta única coisa necessária, que jamais lhe será tirada (cf. Lc 10, 40-42).

261 Durante o Seu ministério terreno, Jesus trabalha incansavelmente, realizando obras potentes para libertar o homem da doença, do sofrimento e da morte. O sábado, que o Antigo Testamento propusera como dia de libertação e que, observado só formalmente, era esvaziado do seu autêntico conteúdo, é reafirmado por Jesus no seu valor originário: «O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado! » (Mc 2, 27). Com as curas, realizadas neste dia de repouso (cf. Mt 12, 9-14; Mc 3, 1-6; Lc 6, 6-11; 13, 10-17; 14, 1-6), Ele quer demonstrar que o sábado é Seu, porque Ele é verdadeiramente o Filho de Deus, e que é o dia em que se deve dedicar a Deus e aos outros. Libertar do mal, praticar a fraternidade e a partilha é conferir ao trabalho o seu significado mais nobre, aquele que permite à humanidade encaminhar-se para o Sábado eterno, no qual o repouso se torna a festa a que o homem interiormente aspira. Precisamente na medida em que orienta a humanidade a fazer experiência do sábado de Deus e da Sua vida convival, o trabalho inaugura sobre a terra a nova criação.

262 A atividade humana de enriquecimento e de transformação do universo pode e deve fazer vir à tona as perfeições nele escondidas, que no Verbo incriado têm o seu princípio e o seu modelo. Os escritos paulinos e joaninos ressaltam, de fato, a dimensão trinitária da criação e, em particular, o liame que intercorre entre o Filho-Verbo, o « Logos », e a criação (cf. Jo 1, 3; 1 Cor 8, 6; Col 1, 15-17). Criado n’Ele e por meio d’Ele, redimido por Ele, o universo não é um amontoado casual, mas um «cosmos»[574], cuja ordem o homem deve descobrir, secundar e levar à plenitude: «Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem— aquele mundo que, entrando nele o pecado, “foi submetido à caducidade” (Rm 8, 20; cf. ibid., 8, 19-22) ? readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor»[575]. De tal modo, ou seja, descobrindo, em crescente progressão, «a inexplorável riqueza de Cristo» (Ef 3, 8), na criação, o trabalho humano se transforma num serviço prestado à grandeza de Deus.

263 O trabalho representa uma dimensão fundamental da existência humana como participação não só na obra da criação, como também da redenção. Quem suporta a penosa fadiga do trabalho em união com Jesus, num certo sentido, coopera com o Filho de Deus na Sua obra redentora e se mostra discípulo Cristo levando a Cruz, cada dia, na atividade que é chamado a levar a cabo. Nesta perspectiva, o trabalho pode ser considerado como um meio de santificação e uma animação das realidades terrenas no Espírito de Cristo[576].Assim concebido o trabalho é expressão da plena humanidade do homem, na sua condição histórica e na sua orientação escatológica: a sua ação livre e responsável revela a sua íntima relação com o Criador e o seu potencial criativo, enquanto todos os dias combate o desfiguramento do pecado, também ganhando o pão com o suor da fronte.

c) O dever de trabalhar

264 A consciência da transitoriedade da «figura deste mundo» (cf. 1 Cor 7, 31) não isenta de nenhum empenho histórico, muito menos do trabalho (cf. 2Ts 3, 7-15), que é parte integrante da condição humana, mesmo não sendo a única razão de vida. Nenhum cristão, pelo fato de pertencer a uma comunidade solidária e fraterna, deve sentir-se no direito de não trabalhar e de viver à custa dos outros (cf. 2Ts 3, 6-12); todos, antes, são exortados pelo Apóstolo Paulo a tomar como « um ponto de honra » o trabalhar com as próprias mãos de modo a não ser «pesados a ninguém» (1 Ts 4, 11-12) e a praticar uma solidariedade também material, compartilhando os frutos do trabalho com « os necessitados » (Ef 4, 28). São Tiago defende os direitos conculcados dos trabalhadores: «Eis que o salário, que defraudastes dos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, clama, e seus gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos» (Tg 5, 4). Os crentes devem viver o trabalho com o estilo de Cristo e torná-lo ocasião de testemunho cristão « em presença dos de fora » (1 Ts 4, 12).

265 Os Padres da Igreja nunca consideram o trabalho como «opus servile» ? assim era concebido, pelo contrário, na cultura a eles contemporânea ?, mas sempre como «opus humanum», e tendem a honrar todas as suas expressões. Mediante o trabalho, o homem governa com Deus o mundo, juntamente com Ele é sempre seu senhor, e realiza coisas boas para si e para os outros. O ócio é nocivo ao ser do homem, enquanto a atividade favorece ao seu corpo e ao seu espírito[577]. O cristão é chamado a trabalhar não só para conseguir o pão, mas também por solicitude para com o próximo mais pobre, ao qual o Senhor ordena dar de comer, de beber, de vestir, acolhimento, atenção e companhia (cf. Mt 25, 35-36)[578]. Cada trabalhador, afirma Santo Ambrósio, è a mão de Cristo que continua a criar e a fazer o bem[579].

266 Com o seu trabalho e a sua laboriosidade, o homem, partícipe da arte e da sabedoria divina, torna mais bela a criação, o cosmos já ordenado pelo Pai[580]; suscita aquelas energias sociais e comunitárias que alimentam o bem comum[581], a favor sobretudo dos mais necessitados. O trabalho humano, finalizado à caridade, converte-se em ocasião de contemplação, transforma-se em devota oração, em ascese vigilante e em trépida esperança do dia sem ocaso: «Nesta visão superior, o trabalho, pena e ao mesmo tempo premio da atividade humana, comporta uma outra relação, aquela essencialmente religiosa, que foi felizmente expressa na fórmula beneditina: “Ora et labora”! O fato religioso confere ao trabalho humano uma espiritualidade animadora e redentora. Tal parentesco entre trabalho e religião reflete a aliança misteriosa mas real que medeia entre o operar humano e o providencial de Deus”[582].

II. O VALOR PROFÉTICO DA «RERUM NOVARUM»

267 O curso da história está marcado por profundas transformações e por exaltantes conquistas do trabalho, mas também pela exploração de tantos trabalhadores e pelas ofensas à sua dignidade. A revolução industrial lançou à Igreja um grande desafio, ao qual o Magistério social respondeu com a força da profecia, afirmando princípios de valor universal e de perene atualidade, em favor do homem que trabalha e de seus direitos.

Destinatária da mensagem da Igreja fora por séculos uma sociedade de tipo agrário, caracterizada por ritmos regulares e cíclicos; agora o Evangelho deveria ser anunciado e vivido num novo areópago, no tumulto dos acontecimentos sociais de uma sociedade mais dinâmica, levando em conta a complexidade dos novos fenômenos e das impensáveis transformações possibilitadas pela técnica. No centro da solicitude pastoral da Igreja impunha-se mais e mais urgentemente a questão operária, ou seja, o problema da exploração dos trabalhadores, conseqüência da nova organização industrial do trabalho, de matriz capitalista, e o problema, não menos grave, da instrumentalização ideológica, socialista e comunista, das justas reivindicações do mundo do trabalho. No seio deste horizonte histórico se colocam as reflexões e as advertências da Encíclica «Rerum Novarum» de Leão XIII.

268 A «Rerum Novarum» é antes de tudo uma vívida defesa da inalienável dignidade dos trabalhadores, à qual anexa a importância do direito de propriedade, do princípio de colaboração entre as classes, dos direitos dos fracos e dos pobres, das obrigações dos trabalhadores e dos empregadores, do direito de associação.

As orientações ideais expressas na encíclica reforçam o empenho de animação cristã da vida social, que se manifestou no nascimento e na consolidação de numerosas iniciativas de alto caráter civil: uniões e centros de estudos sociais, associações, sociedades operárias, sindicatos, cooperativas, bancos rurais, seguros, obras de assistência. Tudo isto deu um notável impulso à legislação do trabalho para a proteção dos operários, sobretudo das crianças e das mulheres; à instrução e à melhora dos salários e da higiene.

269 Desde a «Rerum Novarum», a Igreja jamais deixou de considerar os problemas do trabalho no contexto de uma questão social que foi progressivamente assumindo dimensões mundiais[583]. A Encíclica « Laborem exercens », enriquece a visão personalista do trabalho característica dos precedentes documentos sociais, indicando a necessidade de um aprofundamento dos significados e das tarefas que o trabalho comporta, em consideração do fato de que «surgem sempre novas interrogações e novos problemas, nascem novas esperanças, como também motivos de temor e ameaças, ligados com esta dimensão fundamental da existência humana, pela qual é construída cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a própria dignidade específica, mas na qual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetro constante dos esforços humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustiças que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das nações e no plano internacional »[584]. O trabalho, com efeito, « chave essencial »[585] de toda a questão social, condiciona o desenvolvimento não só econômico, mas também cultural e moral, das pessoas, da família, da sociedade e de todo o gênero humano.

III. A DIGNIDADE DO TRABALHO

a) A dimensão subjetiva e objetiva do trabalho

270 O trabalho humano tem uma dúplice dimensão:objetiva e subjetiva. Em sentido objetivo é o conjunto de atividades, recursos, instrumentos e técnicas de que o homem se serve para produzir, para dominar a terra, segundo as palavras do Livro do Gênesis. O trabalho em sentido subjetivo é o agir do homem enquanto ser dinâmico, capaz de levar a cabo várias ações que pertencem ao processo do trabalho e que correspondem à sua vocação pessoal: «O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque, como “imagem de Deus”, é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjetividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir de si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho»[586].

O trabalho em sentido objetivo constitui o aspecto contingente da atividade do homem, que varia incessantemente nas suas modalidades com o mudar das condições técnicas, culturais, sociais e políticas. Em sentido subjetivo se configura, por seu turno, como a sua dimensão estável, porque não depende do que o homem realiza concretamente nem do gênero de atividade que exerce, mas só e exclusivamente da sua dignidade de ser pessoal. A distinção é decisiva tanto para compreender qual é o fundamento último do valor e da dignidade do trabalho, quanto em vista do problema de uma organização dos sistemas econômicos e sociais respeitosa dos direitos do homem.

271 A subjetividade confere ao trabalho a sua peculiar dignidade, que impede de considerá-lo como uma simples mercadoria ou um elemento impessoal da organização produtiva. O trabalho, independentemente do seu menor ou maior valor objetivo, é expressão essencial da pessoa, é « actus personae ». Qualquer forma de materialismo e de economicismo que tentasse reduzir o trabalhador a mero instrumento de produção, a simples força de trabalho, a valor exclusivamente material, acabaria por desnaturar irremediavelmente a essência do trabalho, privando-o da sua finalidade mais nobre e profundamente humana. A pessoa é o parâmetro da dignidade do trabalho: « Não há dúvida nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem um seu valor ético, o qual, sem meios termos, permanece diretamente ligado ao fato de aquele que o realiza ser uma pessoa »[587].

A dimensão subjetiva do trabalho deve ter a preeminência sobre a objetiva, porque é aquela do homem mesmo que realiza o trabalho, determinando-lhe a qualidade e o valor mais alto. Se faltar esta consciência ou se não se quiser reconhecer esta verdade, o trabalho perde o seu significado mais verdadeiro e profundo: neste caso, lamentavelmente freqüente e difundido, a atividade trabalhista e as mesmas técnicas utilizadas se tornam mais importantes do que o próprio homem e, de aliadas, se transformam em inimigas da sua dignidade.

272 O trabalho não somente procede da pessoa, mas é também essencialmente ordenado e finalizado a ela. Independentemente do seu conteúdo objetivo, o trabalho deve ser orientado para o sujeito que o realiza, pois a finalidade do trabalho, de qualquer trabalho, permanece sempre o homem. Ainda que não possa ser ignorada a importância da componente objetiva do trabalho sob o aspecto da sua qualidade, tal componente, todavia, deve ser subordinada à realização do homem, e portanto à dimensão subjetiva, graças à qual é possível afirmar que o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho e que «a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem — ainda que seja o trabalho mais humilde de um “serviço” e o mais monótono na escala do modo comum de apreciação e até o mais marginalizador — permanece sempre o mesmo homem»[588].

273 O trabalho humano possui também uma intrínseca dimensão social. O trabalho de um homem, com efeito, se entrelaça naturalmente com o de outros homens : « Hoje mais do que nunca, trabalhar é um trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros: torna-se cada vez mais um fazer qualquer coisa para alguém»[589]. Também os frutos do trabalho oferecem ocasião de intercâmbios, de relações e de encontro. O trabalho, portanto, não se pode ser avaliado eqüitativamente se não se leva em conta a sua natureza social: « já que se não subsiste um corpo realmente social e orgânico, se a ordem social e jurídica não protege o exercício da atividade, se as várias partes, dependentes como são entre si, não trabalham de concerto e não se completam mutuamente, se enfim e mais ainda, não se associam, quase que a formar uma coisa só, a inteligência, o capital e o trabalho, a atividade humana não pode produzir os seus frutos: portanto não pode ela ser com justiça avaliada nem remunerada eqüitativamente, se não se tem em conta a sua natureza social e individual »[590].

274 O trabalho é também « uma obrigação, ou seja, um dever do homem »[591]. O homem deve trabalhar seja porque o Criador lho ordenou, seja para responder às exigências de manutenção e desenvolvimento da sua mesma humanidade. O trabalho se perfila como obrigação moral em relação ao próximo, que é em primeiro lugar a própria família, mas também à sociedade, à qual se pertence; à nação, da qual se é filho ou filha; a toda a família humana, da qual se é membro: somos herdeiros do trabalho de gerações e ao mesmo tempo artífices do futuro de todos os homens que viverão depois de nós.

275 O trabalho confirma a profunda identidade do homem criado à imagem e semelhança de Deus: «O homem, ao tornar-se — mediante o seu trabalho — cada vez mais senhor da terra, e ao consolidar — ainda mediante o trabalho — o seu domínio sobre o mundo visível, em qualquer hipótese e em todas as fases deste processo, permanece na linha daquela disposição original do Criador, a qual se mantém necessária e indissoluvelmente ligada ao fato de o homem ter sido criado, como varão e mulher, “à imagem de Deus”»[592]. Isto qualifica a atividade do homem no universo: ele não é seu proprietário, mas o fiduciário, chamado a refletir no próprio agir o sinal d’Aquele de que é imagem.

b) As relações entre trabalho e capital

276 O trabalho, pelo seu caráter subjetivo ou pessoal, é superior a todo e qualquer outro fator de produção: este princípio vale, em particular, no que tange ao capital. Hoje, o termo «capital» tem diversas acepções: às vezes indica os meios materiais de produção na empresa, às vezes os recursos financeiros investidos numa iniciativa produtiva ou também em operações nos mercados financeiros. Fala-se também, de modo não de todo apropriado, de «capital humano», para indicar os recursos humanos, ou seja, os homens mesmos, enquanto capazes de esforço laboral, de conhecimento, de criatividade, de intuição das exigências dos próprios semelhantes, de mútua compreensão enquanto membros de uma organização. Fala-se de «capital social» quando se quer indicar a capacidade de colaboração de uma coletividade, fruto do investimento em liames fiduciários recíprocos. Esta multiplicidade de significados oferece ulteriores elementos para refletir sobre o que possa significar, hoje, a relação entre trabalho e capital.

277 A doutrina social tem enfrentado as relações entre trabalho e capital, salientando seja a prioridade do primeiro sobre o segundo, seja a sua complementaridade.

O trabalho tem uma prioridade intrínseca em relação ao capital: «Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção, relativamente ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o “capital”, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda a experiência histórica do homem»[593]. Ele «pertence ao patrimônio estável da doutrina da Igreja»[594].

Entre capital e trabalho deve haver complementaridade: é a mesma lógica intrínseca ao processo produtivo a mostrar a necessidade da sua recíproca compenetração e a urgência de dar vida a sistemas econômicos nos quais a antinomia entre trabalho e capital seja superada[595]. Em tempos nos quais, no interior de um sistema econômico menos complexo, o «capital» e o «trabalho assalariado» identificavam com uma certa precisão não só dois fatores produtivos, mas também e sobretudo duas concretas classes sociais, a Igreja afirmava que ambos são em si legítimos[596]: « de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital »[597]. Trata-se de uma verdade que vale também para presente, porque « é inteiramente falso atribuir ou só ao capital ou só ao trabalho o produto do concurso de ambos; e é deveras injusto que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos »[598].

278 Na consideração das relações entre trabalho e capital, sobretudo em face das imponentes transformações dos nossos tempos, se deve entender que «o principal recurso» e o «fator decisivo»[599] nas mãos do homem é o próprio homem, e que «o desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho»[600]. O mundo do trabalho está, efetivamente, descobrindo cada vez mais que o valor do «capital humano» tem expressão no conhecimento dos trabalhadores, na sua disponibilidade a tecer relações, na criatividade, na própria qualidade empresarial, na capacidade de enfrentar conscientemente o novo, de trabalhar juntos e de saber perseguir objetivos comuns. Trata-se de qualidades eminentemente pessoais, que pertencem ao sujeito do trabalho mais que aos aspectos objetivos, técnicos, operativos do trabalho mesmo. Tudo isto comporta uma perspectiva nova nas relações entre trabalho e capital: pode-se afirmar que, contrariamente ao que acontecia na velha organização do trabalho, em que o sujeito acabava por ser nivelado ao objeto, à máquina, nos dias de hoje dimensão subjetiva do trabalho tende a ser mais decisiva e importante do que a objetiva.

279 A relação entre trabalho e capital não raro apresenta traços de conflituosidade, que assume novas características com o mudar dos contextos sociais e econômicos. Ontem, o conflito entre capital e trabalho era originado, sobretudo, « pelo fato de que os operários punham as suas forças à disposição do grupo dos patrões e empresários, e de que este, guiado pelo princípio do maior lucro da produção, procurava manter o mais baixo possível o salário para o trabalho executado pelos operários»[601]. Atualmente, a conflituosidade de tal relação apresenta aspectos novos e, talvez, mais preocupantes: os progressos científicos e tecnológicos e a mundialização dos mercados, de per si fonte de desenvolvimento e de progresso, expõem os trabalhadores ao risco de ser explorados pelas engrenagens da economia e pela busca desenfreada de produtividade[602].

280 Não se deve julgar erroneamente que o processo de superação da dependência do trabalho em relação à matéria seja capaz por si de superar a alienação no trabalho e do trabalho. A referência não é só aos grandes bolsões de não trabalho, de trabalho clandestino, de trabalho infantil, de trabalho sub-remunerado, de trabalho explorado que ainda persistem, mas também às novas formas, muito mais sutis, da exploração dos novos trabalhos, ao super-trabalho, ao trabalho-carreira que às vezes rouba espaço a dimensões igualmente humanas e necessárias para a pessoa, à excessiva flexibilidade do trabalho que torna precária e não raro impossível a vida familiar, à modularidade do trabalho que corre o risco de ter graves repercussões sobre a percepção unitária da própria existência e sobre a estabilidade das relações familiares. Se o homem é alienado quando inverte meios e fins, também no novo contexto de trabalho imaterial, leve, qualitativo mais que quantitativo, podem dar-se elementos de alienação «conforme cresça a … participação [do homem] numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento»[603].

c) O trabalho, título de participação

281 A relação entre trabalho e capital se expressa também através da participação dos trabalhadores na propriedade, na gestão e dos seus frutos. É esta uma exigência descurada demasiado freqüentemente, que, pelo contrário, deve ser valorizado ao máximo: «cada um dos que a compõem, com base no próprio trabalho, tiver garantido o pleno direito a considerar-se comproprietário do grande “banco” de trabalho em que se empenha juntamente com todos os demais. E uma das vias para alcançar tal objetivo poderia ser a de associar o trabalho, na medida do possível, à propriedade do capital e dar possibilidades de vida a uma série de corpos intermediários com finalidades econômicas, sociais e culturais: corpos estes que hão de usufruir de uma efetiva autonomia em relação aos poderes públicos e que hão de procurar conseguir os seus objetivos específicos mantendo entre si relações de leal colaboração recíproca, subordinadamente às exigências do bem comum, e que hão de, ainda, apresentar-se sob a forma e com a substância de uma comunidade viva; quer dizer, de molde a que neles os respectivos membros sejam considerados e tratados como pessoas e estimulados a tomar parte ativa na sua vida»[604]. A nova organização do trabalho, em que o saber conta mais do que a mera propriedade dos meios de produção, atesta de maneira concreta que o trabalho, pelo seu caráter subjetivo, é título de participação: é indispensável ancorar-se nesta consciência para aquilatar a justa posição do trabalho no processo produtivo e para encontrar modalidades de participação consoantes com a subjetividade do trabalho nas peculiaridades das várias situações concretas[605].

d. Relação entre trabalho e propriedade privada

282 O Magistério social da Igreja articula a relação entre trabalho e capital também em relação ao instituto da propriedade privada, ao respectivo direito e ao seu uso. O direito à propriedade privada subordina-se ao princípio da destinação universal dos bens e não deve constituir motivo de impedimento ao trabalho e ao crescimento de outrem. A propriedade, que se adquire antes de tudo através do trabalho, deve servir ao trabalho. Isto vale de modo particular no que diz respeito à posse dos meios de produção; mas tal princípio concerne também aos bens próprios do mundo financeiro, técnico, intelectual, pessoal.

Os meios de produção «não podem ser possuídos contra o trabalho, como não podem ser possuídos para possuir»[606]. A sua posse passa a ser ilegítima quando a propriedade « não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho »[607].

283 A propriedade privada e pública, bem como os vários mecanismos do sistema econômico devem ser predispostos para uma economia ao serviço do homem, de modo que contribuam a atuar o princípio da destinação universal dos bens. Nesta perspectiva ganha relevo a questão referente à propriedade e ao uso das novas tecnologias e conhecimentos, que constituem, no nosso tempo, uma outra forma particular de propriedade, de importância não inferior à da terra e do capital[608]. Tais recursos, como todos os outros bens, têm uma destinação universal; também estes devem ser inseridos num contexto de normas jurídicas e de regras sociais que garantam um uso inspirado em critérios de justiça, de eqüidade e de respeito dos direitos do homem. Os novos saberes e as tecnologias, graças à sua enorme potencialidade, podem dar um contributo decisivo à promoção do progresso social, mas correm o risco de se converter em fonte de desemprego e de ampliar a distância entre zonas desenvolvidas e zonas de subdesenvolvimento, se permanecem concentrados nos países mais ricos ou nas mãos de grupos restritos de poder.

e) O repouso festivo

284 O repouso festivo é um direito[609].Deus « repousou de toda a obra que fizera » (Gên 2, 2): também os homens, criados à Sua imagem, devem gozar de suficiente repouso e tempo livre que lhes permita cuidar da vida familiar, cultural, social e religiosa[610]. Para tanto contribui a instituição do dia do Senhor[611]. Os fiéis, durante o domingo e nos demais dias santos de guarda, devem abster-se de « trabalhos ou atividades que impedem o culto devido a Deus, a alegria própria do dia do Senhor, a prática das obras de misericórdia e o descanso conveniente do espírito e do corpo »[612]. Necessidades familiares ou exigências de utilidade social podem legitimamente isentar do repouso dominical, mas não devem criar hábitos prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde.

285 O domingo é um dia a ser santificado com uma caridade operosa, reservando atenções à família e aos parentes, como aos doentes, aos enfermos, aos idosos; não se devem tampouco esquecer aqueles « irmãos que têm as mesmas necessidades e os mesmos direitos e não podem repousar por causa da pobreza e da miséria »[613]; ademais é um tempo propício para a reflexão, o silêncio, o estudo, que favorecem o crescimento da vida interior e cristã. Os fiéis devem distinguir-se, também neste dia, pela sua moderação, evitando todos os excessos e as violências que não raro caracterizam as diversões de massa[614]. O dia do Senhor deve ser sempre vivido como o dia da libertação, que faz participar « da assembléia festiva dos primeiros inscritos no livro dos céus» (Hb 12, 22-23) e antecipa a celebração da Páscoa definitiva na glória do céu[615].

286 As autoridades públicas têm o dever de vigiar para que não se subtraia aos cidadãos, por motivos de produtividade econômica, o tempo destinado ao repouso e aoculto divino. Os empregadores têm uma obrigação análoga em relação aos seus empregados[616]. Os cristãos devem envidar esforços, no respeito à liberdade religiosa e ao bem comum de todos, para que as leis reconheçam os domingos e os dias de festa da Igreja como feriados: «A todos têm de dar um exemplo público de oração, de respeito e de alegria e defender suas tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana»[617]. Todo cristão deverá «evitar impor sem necessidade a outrem o que o impediria de guardar o dia do Senhor»[618].

IV. O DIREITO AO TRABALHO

a) O trabalho é necessário

287 O trabalho é um direito fundamental e é um bem para o homem[619]: um bem útil, digno dele porque apto a exprimir e a acrescer a dignidade humana. A Igreja ensina o valor do trabalho não só porque este é sempre pessoal, mas também pelo caráter de necessidade[620]. O trabalho é necessário para formar e manter uma família[621], para ter direito à propriedade[622], para contribuir para o bem comum da família humana[623]. A consideração das implicações morais que a questão do trabalho comporta na vida social induz a Igreja a qualificar o desemprego como uma « verdadeira calamidade social »[624], sobretudo em relação às jovens gerações.

288 O trabalho é um bem de todos, que deve ser disponível para todos aqueles que são capazes de trabalhar. O « pleno emprego » é, portanto, um objetivo obrigado para todo o ordenamento econômico orientado para a justiça e para o bem comum. Uma sociedade em que o direito ao trabalho seja esvaecido ou sistematicamente negado e no qual as medidas de política econômica não consintam aos trabalhadores alcançar níveis satisfatórios de emprego, « não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social »[625]. Um papel importante e, portanto, uma responsabilidade específica e grave, pertencem, neste âmbito, ao « empregador indireto »[626], ou seja àqueles sujeitos ? pessoas ou instituições de vário tipo ? que estão aptas a orientar, no plano nacional ou internacional, a política do trabalho e da economia.

289 A capacidade de fazer projetos de uma sociedade orientada para o bem comum e projetada para o futuro se mede também e sobretudo em base às perspectivas de trabalho que ela é capaz de oferecer. O alto índice de desemprego, a presença de sistemas de instrução obsoletos e de dificuldades duradouras no acesso à formação e ao mercado do trabalho constituem, para muitos jovens sobretudo, um forte obstáculo na estrada da realização humana e profissional. Quem é desempregado ou subempregado, com efeito, sofre as conseqüências profundamente negativas que tal condição determina na personalidade e corre o risco de ser posto à margem da sociedade, de se tornar uma vítima da exclusão social[627]. Este é um drama que afeta, em geral, além dos jovens, as mulheres, os trabalhadores menos especializados, os deficientes, os imigrantes, os ex-carcerários, os analfabetos, todos os sujeitos que encontram maiores dificuldades na busca de uma colocação no mundo do trabalho.

290 A manutenção do emprego depende cada vez mais das capacidades profissionais[628]. O sistema de instrução e de educação não deve descurar a formação humana, tão necessária para desempenhar com proveito as tarefas requeridas. A necessidade cada vez maior de mudar várias vezes de emprego no arco da vida, obriga o sistema educativo a favorecer a disponibilidade das pessoas para a uma permanente atualização e requalificação. Os jovens devem aprender a agir autonomamente, a tornar-se capazes de assumir responsavelmente a tarefa de enfrentar com competências adequadas os riscos ligados a um contexto econômico mutável e não raro imprevisível nos seus cenários evolutivos[629]. É igualmente indispensável a oferta de oportunas ocasiões formativas aos adultos em busca de requalificação e aos desempregados. Cada vez mais , o percurso de trabalho das pessoas deve encontrar novas formas concretas de apoio, a começar precisamente do sistema formativo, de modo que seja menos difícil atravessar fases de mudança, de incerteza, de precariedade.

b) O papel do Estado e da sociedade civil na promoção do direito ao trabalho

291 Os problemas do emprego chamam em causa as responsabilidades do Estado, ao qual compete o dever de promover políticas ativas do trabalho tais que favoreçam a criação de oportunidades trabalhistas no território nacional, incentivando para tal fim o mundo produtivo. O dever do Estado não consiste tanto em assegurar diretamente o direito ao trabalho de todos os cidadãos, regulando toda a vida econômica e mortificando a livre iniciativa de cada indivíduo, quanto em « secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise »[630].

292 Defronte às dimensões planetárias rapidamente assumidas pelas relações econômico-financeiras e pelo mercado do trabalho, se deve promover uma colaboração internacional eficaz entre os Estados, mediante tratados, acordos e planos de ação comuns que salvaguardem o direito ao trabalho também nas fases mais criticas do ciclo econômico, em âmbito nacional e internacional. É necessário estar cientes do fato de que o trabalho humano é um direito do qual dependem diretamente a promoção da justiça social e da paz civil. Importantes tarefas nesta direção cabem às Organizações internacionais e às sindicais: coligando-se nas formas mais oportunas, elas devem empenhar-se, antes de tudo, a tecer «uma trama sempre mais espessa de disposições jurídicas que protegem o trabalho dos homens, das mulheres, dos jovens, e lhe asseguram, conveniente retribuição»[631].

293 Para a promoção do direito ao trabalho, é importante, hoje como nos tempos da «Rerum Novarum», que haja um « processo livre de auto-organização da sociedade »[632]. Testemunhos significativos e exemplos de auto-organização podem ser encontradas nas numerosas iniciativas, empresariais e sociais, caracterizadas por formas de participação, de cooperação e de auto-gestão, que revelam a fusão das energias solidárias. Eles se oferecem ao mercado como um variegado setor de atividades trabalhistas que se distinguem por uma atenção particular à componente relacional dos bens produzidos e dos serviços dispensados em multíplices âmbitos: instrução, tutela da saúde, serviços sociais de base, cultura. As iniciativas do chamado «terceiro setor» constituem uma oportunidade sempre mais relevante de desenvolvimento do trabalho e da economia.

c) A família e o direito ao trabalho

294 O trabalho é « o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que é um direito fundamental e uma vocação do homem »[633]: ele assegura os meios de subsistência e garante o processo educativo dos filhos[634]. Família e trabalho, assim estreitamente interdependentes na experiência da grande maioria das pessoas, merecem finalmente uma consideração mais adequada à realidade, uma atenção que as compreenda juntas, sem os limites de uma concepção privatista da família e economicista do trabalho. A tal propósito, é necessário que as empresas, as organizações profissionais, os sindicatos e o Estado se tornem promotores de políticas do trabalho que não penalizem, mas favoreçam o núcleo familiar do ponto de vista do emprego. A vida de família e o trabalho, efetivamente, se condicionam reciprocamente de vário modo. O pendularismo, a dupla jornada de trabalho e a fadiga física e psicológica reduzem o tempo dedicado à vida familiar[635]; as situações de desemprego têm repercussões materiais e espirituais sobre as famílias, assim como as tensões e as crises familiares influem negativamente sobre as atitudes e sobre o rendimento no campo do trabalho.

d) As mulheres e o direito ao trabalho

295 O gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social, por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho. O primeiro e indispensável passo em tal direção é a concreta possibilidade de acesso a uma formação profissional. O reconhecimento e a tutela dos direitos das mulheres no contexto do trabalho dependem, em geral, da organização do trabalho, que deve levar em conta a dignidade e a vocação da mulher, cuja « verdadeira promoção … exige que o trabalho seja estruturado de tal maneira que ela não se veja obrigada a pagar a própria promoção com o ter de abandonar a sua especificidade e com detrimento da sua família, na qual ela, como mãe, tem um papel insubstituível »[636]. É uma questão sobre a qual se medem a qualidade da sociedade e a efetiva tutela do direito das mulheres ao trabalho.

A persistência de muitas formas de discriminação ofensivas da dignidade e vocação da mulher na esfera do trabalho é devida a uma longa série de condicionamentos penalizantes para a mulher, que foi e ainda é « deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão»[637]. Estas dificuldades, lamentavelmen­te, não estão superadas, como bem mostram por toda parte as várias situações que aviltam as mulheres, sujeitando-as também a formas de verdadeira e própria exploração. A urgência de um efetivo reconhecimento dos direitos das mulheres no trabalho se adverte especialmente sob o aspecto retributivo, assegurativo e previdenciário[638].

e) Trabalho infantil

296 O trabalho infantil, nas suas formas intoleráveis, constitui um tipo de violência menos evidente do que outros, mas nem por isso menos terrível[639]. Uma violência que, para além de todas as implicações políticas, econômicas e jurídicas, é sempre essencialmente um problema moral. Eis a advertência de Leão XIII: «Quanto aos infantes, cuide-se não os admitir nas oficinas antes da a idade lhes tenha desenvolvido suficientemente as forças físicas, intelectuais e morais. As forças, que na puerícia brotam semelhantemente à erva em flor, um movimento precoce as dissipa, tornando portanto impossível a própria educação dos infantes»[640]. A chaga do trabalho infantil, a mais de cem anos de distância não foi ainda debelada.

Mesmo com a consciência de que, ao menos por ora, em certos países o contributo dado pelo trabalho das crianças ao orçamento familiar e às economias nacionais é irrenunciável e que, em todo caso, algumas formas de trabalho realizadas a tempo parcial, podem ser frutuosas para as próprias crianças, a doutrina social denuncia o aumento da «exploração trabalhista dos menores em condições de verdadeira escravidão»[641]. Tal exploração constitui uma grave violação da dignidade humana de que todo indivíduo, «por pequeno ou aparentemente insignificante que seja em termos de utilidade»[642], é portador.

f) A emigração e o trabalho

297 A imigração pode ser antes um recurso que um obstáculo para o desenvolvimento. No mundo atual, em que se agrava o desequilíbrio entre países ricos e países pobres e nos quais o progresso das comunicações reduz rapidamente as distâncias, crescem as migrações das pessoas em busca de melhores condições de vida, provenientes das zonas menos favorecidas da terra: a sua chegada nos países desenvolvidos é não raro percebido como uma ameaça para os elevados níveis de bem-estar alcançados graças a decênios de crescimento econômico. Os imigrados, todavia, na maioria dos casos, respondem a uma demanda de trabalho que, do contrário, ficaria insatisfeita, em setores e em territórios nos quais a mão-de-obra local é insuficiente ou não está disposta a fornecer o próprio contributo em trabalho.

298 As instituições dos países anfitriões devem vigiar cuidadosamente para que não se difunda a tentação de explorar a mão-de-obra estrangeira, privando-a dos direitos garantidos aos trabalhadores nacionais, que devem ser assegurados a todos sem discriminação. A regulamentação dos fluxos migratórios segundo critérios de eqüidade e de equilíbrio[643] é uma das condições indispensáveis para conseguir que as inserções sejam feitas com as garantias exigidas pela dignidade da pessoa humana. Os imigrantes devem ser acolhidos enquanto pessoas e ajudados, junto com as suas famílias, a integrar-se na vida social[644]. Em tal perspectiva deve ser respeitado e promovido o direito a ver reunida a família[645]. Ao mesmo tempo, na medida do possível, devem ser favorecidas todas as condições que consentem o aumento das possibilidades de trabalho nas próprias regiões de origem[646].

g) O mundo agrícola e o direito ao trabalho

299 Uma particular atenção merece o trabalho agrícola, pelo papel social, cultural e econômico que detém nos sistemas econômicos de muitos países, pelos numerosos problemas que deve enfrentar no contexto de uma economia cada vez mais globalizada, pela sua crescente importância na salvaguarda do ambiente natural: «portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes, para restituir à agricultura — e aos homens dos campos — o seu justo valor como base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social»[647].

As profundas e radicais transformações em curso no plano social e cultural, também na agricultura e no vasto mundo rural, repropõem com urgência um aprofundamento sobre o significado do trabalho agrícola nas suas multíplices dimensões. Trata-se de um desafio de notável importância, que deve ser enfrentado com políticas agrícolas e ambientais capazes de superar uma certa concepção residual e assistencial e de elaborar novas perspectivas para uma agricultura moderna, apta a cumprir um papel significativo na vida social e econômica.

300 Em alguns países é indispensável uma redistribuição da terra, no âmbito de eficazes políticas de reforma agrária, a fim de superar o impedimento que o latifúndio improdutivo, condenado pela doutrina social da Igreja[648],representa a um autêntico desenvolvimento econômico: «Os países em via de desenvolvimento podem combater eficazmente o atual processo de concentração da propriedade da terra, se afrontarem algumas situações que se podem classificar como verdadeiros e próprios nós estruturais. Tais são as carências e os atrasos a nível legislativo quanto ao reconhecimento do título de propriedade da terra e em relação ao mercado de crédito; o desinteresse pela investigação e formação em agricultura; a negligência a propósito de serviços sociais e de infra-estruturas nas áreas rurais»[649]. Areforma agrária torna-se, portanto, além de uma necessidade política, uma obrigação moral, dado que a sua não atuação obstaculiza nestes países os efeitos benéficos derivantes da abertura dos mercados e, em geral, daquelas ocasiões profícuas de crescimento que a globalização em curso pode oferecer[650].

V. DIREITOS DOS TRABALHADORES

a) Dignidade dos trabalhadores e respeito dos seus direitos

301 Os direitos dos trabalhadores, como todos os demais direitos, se baseiam na natureza da pessoa humana e na sua dignidade transcendente. O Magistério social da Igreja houve por bem enumerar alguns deles, auspiciando o seu reconhecimento nos ordenamentos jurídicos: o direito a uma justa remuneração[651]; o direito ao repouso[652]; o direito « a dispor de ambientes de trabalho e de processos de laboração que não causem dano à saúde física dos trabalhadores nem lesem a sua integridade moral »[653]; o direito a ver salvaguardada a própria personalidade no lugar de trabalho, « sem serem violados seja de que modo for na própria consciência ou dignidade »[654]; o direito a convenientes subvenções indispensáveis para a subsistência dos trabalhadores desempregados e das suas famílias[655]; do direito à pensão de aposentadoria ou reforma, ao seguro para a velhice bem como para a doença e ao seguro para os casos de acidentes de trabalho[656]; o direito a disposições sociais referentes à maternidade[657]; o direito de reunir-se e de associar-se[658]. Tais direitos são freqüentemente desrespeitados, como confirmam os tristes fenômenos do trabalho sub-remunerado, desprovido de tutela ou não representado de modo adequado. Dá-se com freqüência que as condições de trabalho para homens, mulheres e crianças, especialmente nos países em via de desenvolvimento, sejam tão desumanas que ofendem a sua dignidade e prejudicam a sua saúde.

b) O direito à remuneração eqüitativa e distribuição da renda

302 A remuneração é o instrumento mais importante para realizar a justiça nas relações de trabalho[659]. O « justo salário é o fruto legítimo do trabalho »[660]; comete grave injustiça quem o recusa ou não o dá no tempo devido e em proporção eqüitativa ao trabalho realizado (cf. Lv 19, 13; Dt 24, 14-15; Tg 5, 4). O salário é o instrumento que permite ao trabalhador aceder aos bens da terra: « o trabalho deve ser remunerado de tal modo que permita ao homem e à família levar uma vida digna, tanto material ou social, como cultural ou espiritual, tendo em conta as funções e a produtividade de cada um, e o bem comum »[661]. O simples acordo entre empregado e empregador acerca do montante da remuneração não basta para qualificar como « justa » a remuneração concordada, porque ela « não deve ser inferior ao sustento »[662] do trabalhador: a justiça natural é anterior e superior à liberdade do contrato.

303 O bem-estar econômico de um País não se mede exclusivamente pela quantidade de bens produzidos, mas também levando em conta o modo como são produzidos e o grau de equidade na distribuição das rendas, que a todos deveria consentir ter à disposição o que é necessário para desenvolvimento e o aperfeiçoamento da própria pessoa. Uma distribuição eqüitativa da renda deve ser buscada com base em critérios não só de justiça comutativa, mas também de justiça social, ou seja, considerando, além do valor objetivo das prestações de trabalho, a dignidade humana dos sujeitos que as realizam. Um bem-estar econômico autêntico se persegue também através de adequadas políticas sociais de redistribuição da renda que, tendo em conta as condições gerais, considerem oportunamente os méritos e as necessidades de cada cidadão.

d) O direito de greve

304 A doutrina social reconhece a legitimidade da greve « quando se apresenta como recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado »[663], depois de se terem revelado ineficazes todos os outros recursos para a composição dos conflitos[664]. A greve, uma das conquistas mais penosas do associacionismo sindical, pode ser definida como a recusa coletiva e concertada, por parte dos trabalhadores, de prestar o seu trabalho, com o objetivo de obter, por meio da pressão assim exercida sobre os empregadores, sobre o Estado e sobre a opinião pública, melhores condições de trabalho e da sua situação social. Também a greve, conquanto se perfile « como … uma espécie de ultimato »[665], deve ser sempre um método pacífico de reivindicação e de luta pelos próprios direitos; torna-se « moralmente inaceitável quando é acompanhada de violências ou ainda quando se lhe atribuem objetivos não diretamente ligados às condições de trabalho ou contrários ao bem comum »[666].

VI. SOLIDARIEDADE ENTRE OS TRABALHADORES

a) A importância dos sindicatos

305 O Magistério reconhece o papel fundamental cumprido pelos sindicatos dos trabalhadores, cuja razão de ser consiste no direito dos trabalhadores a formar associações ou uniões para defender os interesses vitais dos homens empregados nas várias profissões. Os sindicatos « cresceram a partir da luta dos trabalhadores, do mundo do trabalho e, sobretudo, dos trabalhadores da indústria, pela tutela dos seus justos direitos, em confronto com os empresários e os proprietários dos meios de produção »[667]. As organizações sindicais, perseguindo o seu fim especifico ao serviço do bem comum, são um fator construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento indispensável da vida social. O reconhecimento dos direitos do trabalho constitui desde sempre um problema de difícil solução, porque se atua no interior de processos históricos e institucionais complexos, e ainda hoje pode considerar-se incompleto. Isto torna mais que nunca atual e necessário o exercício de uma autêntica solidariedade entre os trabalhadores.

306 A doutrina social ensina que as relações no interior do mundo do trabalho devem ser caracterizadas pela colaboração: o ódio e a luta para eliminar o outro constituem métodos de todo inaceitáveis, mesmo porque, em todo o sistema social, são indispensáveis para o processo de produção tanto o trabalho quanto o capital. À luz desta concepção, a doutrina social «não pensa que os sindicatos sejam somente o reflexo de uma estrutura “de classe” da sociedade, como não pensa que eles sejam o expoente de uma luta de classe, que inevitavelmente governe a vida social»[668]. Os sindicatos são propriamente os promotores da luta pela justiça social, pelos direitos dos homens do trabalho, nas suas especificas profissões: «Esta “luta” deve ser compreendida como um empenhamento normal das pessoas “em prol” do justo bem: […] não é uma luta “contra” os outros»[669]. O sindicato, sendo antes de tudo instrumento de solidariedade e de justiça, não pode abusar dos instrumentos de luta; em razão da sua vocação, deve vencer as tentações do corporativismo, saber auto-regular-se e avaliar as conseqüências das próprias opções em relação ao horizonte do bem comum[670].

307 Ao sindicato, além das funções defensivas e reivindicativas, competem tanto uma representação com o fim de « colaborar na boa organização da vida econômica », quanto a educação da consciência social dos trabalhadores, a fim de que estes se sintam parte ativa, segundo as capacidades e aptidões de cada um, no conjunto do desenvolvimento econômico e social, bem como na realização do bem comum universal[671]. O sindicato e as outras formas de associacionismo dos trabalhadores devem assumir uma função de colaboração com os outros sujeitos sociais e interessar-se pela gestão da coisa pública. As organizações sindicais têm o dever de influenciar o poder político, de modo a sensibilizá-lo devidamente aos problemas do trabalho e a empenhá-lo a favorecer a realização dos direitos dos trabalhadores. Os sindicatos, todavia, não têm o caráter de « partidos políticos » que lutam pelo poder, e nem devem tampouco ser submetidos às decisões dos partidos políticos ou haver com estes liames muito estreitos: «em tal situação estes perdem facilmente o contato com aquilo que é sua função específica, que é aquela de assegurar os justos direitos dos homens do trabalho no quadro do bem comum de toda a sociedade, e transformam-se, ao invés, em um instrumento a serviço de outros objetivos»[672].

b) Novas formas de solidariedade

308 O contexto socioeconômico hodierno, caracterizado por processos de globalização econômico-financeira cada vez mais rápidos, concita os sindicatos a renovar-se. Atualmente os sindicatos são chamados a atuar de novas formas[673], ampliando o raio da própria ação de solidariedade de modo que sejam tutelados, além das categorias de trabalho tradicionais, os trabalhadores com contrato atípicos ou por tempo determinado; os trabalhadores cujo o emprego é colocado em perigo pelas fusões de empresas que ocorrem com freqüência cada vez maior, também em plano internacional; aqueles que não têm um emprego, os imigrantes, os trabalhadores sazonais, aqueles que por falta de atualização profissional foram excluídos do mercado de trabalho e não podem reingressar sem adequados cursos de requalificação.

Defronte às modificações que se deram no mundo do trabalho, a solidariedade poderá ser recuperada e quiçá melhor fundada em relação ao passado se houver um empenho para uma redescoberta do valor subjetivo do trabalho: «é necessário prosseguir a interrogar-se sobre o sujeito do trabalho e sobre as condições da sua existência». Para tanto, «é preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do trabalho»[674].

309 Procurando «novas formas de solidariedade»[675], as associações dos trabalhadores devem orientar-se em direção a assunção de maiores responsabilidades, não apenas em relação aos tradicionais mecanismos de redistribuição, mas também em relação à produção da riqueza e da criação de condições sociais, políticas e culturais que consintam a todos os que podem e desejam trabalhar exercer o seu direito ao trabalho, no pleno respeito de sua dignidade de trabalhadores. A superação gradual do modelo organizativo baseado no trabalho assalariado na grande empresa, de mais a mais, torna oportuna uma atualização das normas e dos sistemas de segurança social, mediante os quais os trabalhadores estiveram até agora tutelados, sem prejuízo dos seus direitos fundamentais.

VII. AS «RES NOVAE» DO NOVO MUNDO DO TRABALHO

a) Uma fase de transição epocal

310 Um dos estímulos mais significativos à atual transformação da organização do trabalho é dado pelo fenômeno da globalização, que consente experimentar novas formas de produção, com o deslocamento das instalações em áreas diferentes daquelas em que são tomadas as decisões estratégicas e distantes dos mercados de consumo. Dois são os fatores que dão impulso a este fenômeno: a extraordinária velocidade de comunicação sem limites de espaço e de tempo e a relativa facilidade para transportar mercadorias e pessoas de um lado ao outro do globo. Isto comporta uma conseqüência fundamental sobre os processos produtivos: a propriedade é cada vez mais distante, não raro, indiferente aos efeitos sociais das opções que faz. Por outro lado, se é verdade que a globalização, a priori, não é nem boa nem má em si, mas depende do uso que dela faz o homem[676], deve-se afirmar que é necessária uma globalização das tutelas, dos direitos mínimos essenciais, da eqüidade.

311 Uma das características mais relevantes da nova organização do trabalho é a fragmentação física do ciclo produtivo, promovida para conseguir uma maior eficiência e maior lucro. Nesta perspectiva, as tradicionais coordenadas espaço-tempo, no interior das quais se configurava o ciclo produtivo, sofrem uma transformação sem precedentes, que determina uma mudança na estrutura mesma do trabalho. Tudo isto tem conseqüências relevantes na vida dos indivíduos e das comunidades, submetidos a mudanças radicais tanto no plano das condições materiais como no plano cultural e dos valores. Este fenômeno está envolvendo, em âmbito global e local, milhões de pessoas, independentemente da profissão que exercem, da sua condição social, da preparação cultural. A reorganização do tempo, a sua regularização e as mudanças em curso no uso do espaço — comparáveis, pela sua magnitude, à primeira revolução industrial, na medida em que envolvem todos os setores produtivos, em todos os continentes, independentemente do seu grau de desenvolvimento — devem considerar-se, portanto, um desafio decisivo, mesmo em nível ético e cultural, no campo da definição de um sistema renovado de tutela do trabalho.

312 A globalização da economia, com a liberalização dos mercados, o acentuar-se da concorrência, o aumento de empresas especializadas no fornecimento de produtos e serviços, requer maior flexibilidade no mercado do trabalho e na organização e na gestão dos processos produtivos. No juízo sobre esta delicada matéria, parece oportuno reservar uma maior atenção moral, cultural e no âmbito dos projetos, ao orientar o agir social e político sobre as temáticas ligadas à identidade e aos conteúdos do novo trabalho, num mercado e numa economia que também são novos. As modificações do mercado do trabalho, não raro, são um efeito da modificação do trabalho mesmo e não a sua causa.

313 O trabalho, sobretudo no interior dos sistemas econômicos dos países mais desenvolvidos, atravessa uma fase que assinala a passagem de uma economia industrial a uma economia essencialmente concentrada sobre serviços e sobre a inovação tecnológica. Ocorre que os serviços e as atividades caracterizadas por um forte conteúdo informativo crescem de modo mais rápido do que as dos tradicionais setores primário e secundário, com conseqüências de largo alcance na organização da produção e das trocas, no conteúdo e na forma das prestações de trabalho e nos sistemas de proteção social.

Graças às inovações tecnológicas, o mundo do trabalho se enriquece de profissões novas, enquanto outras desaparecem. Na atual fase de transição, com efeito, se assiste a uma contínua passagem de empregados da industria aos serviços. Enquanto perde terreno o modelo econômico e social ligado à grande fábrica e ao trabalho de uma classe operária homogênea, melhoram as perspectivas de emprego no terciário e aumentam, em particular, as atividades laborais na repartição dos serviços à pessoa, das prestações part time, interinas e «atípicas», ou seja, formas de trabalho que não são enquadráveis nem como trabalho dependente nem como trabalho autônomo.

314 A transição em curso assinala a passagem do trabalho contratado por tempo indeterminado, entendido como emprego fixo, a um percurso profissional caracterizado por uma pluralidade de atividades profissionais; de um mundo do trabalho compacto, definido e reconhecido, a um universo de trabalhos, variegado, fluido, rico de promessas, mas também impregnado de interrogações preocupantes, especialmente em face da crescente incerteza acerca das perspectivas de emprego, de fenômenos persistentes de desemprego estrutural, da inadequação dos atuais sistemas de seguridade social. As exigências da competição, da inovação tecnológica e da complexidade dos fluxos financeiros devem ser harmonizados com a defesa do trabalhador e dos seus direitos.

A insegurança e a precariedade não dizem respeito somente à condição de trabalho dos homens que vivem nos países mais desenvolvidos, mas se referem também, e sobretudo, às realidades economicamente menos avançadas do planeta, aos países em via de desenvolvimento e aos países com economias em transição. Estes últimos, além dos complexos problemas ligados com a mudança dos modelos econômicos e produtivos, devem enfrentar quotidianamente as difíceis exigências que provêm da globalização em curso. A situação se mostra particularmente dramática para o mundo do trabalho, submetido a vastas e radicais mudanças culturais e estruturais, em contextos freqüentemente desprovidos de suportes legislativos, formativos e de assistência social.

315 A descentralização produtiva, que atribui às empresas menores multíplices funções, dantes concentrados nas grandes unidades produtivas, faz adquirir vigor e imprime novo impulso às pequenas e médias empresas. Vêm à tona assim, ao lado do artesanato tradicional, novas empresas caracterizadas por pequenas unidades produtivas que atuam em setores de produção modernos ou em atividades descentradas das empresas maiores. Muitas atividades que ontem exigiam trabalho dependente, hoje são realizadas de formas novas, que favorecem o trabalho independente e se caracterizam por uma maior componente de risco e de responsabilidade

O trabalho nas pequenas e médias empresas, o trabalho artesanal e o trabalho independente podem constituir uma ocasião para tornar mais humana a experiência do trabalho, tanto pela possibilidade de estabelecer positivas relações interpessoais em comunidades de pequenas dimensões, quanto pelas oportunidades oferecidas por uma maior iniciativa e empreendimento; mas não são poucos, nestes setores, os casos de tratamentos injustos, de trabalho mal remunerado e sobretudo inseguro.

316 Nos paises em via de desenvolvimento, ademais, se difundiu, nestes últimos anos, o fenômeno da expansão de atividades econômicas « informais » ou «submersas», que representa um sinal de crescimento econômico promissor, mas levanta problemas éticos e jurídicos. O significativo aumento da oferta de trabalho suscitado por tais atividades deve-se, de fato, à ausência de especialização de grande parte dos trabalhadores locais e ao desenvolvimento desordenado dos setores econômicos formais. Um número elevado de pessoas fica assim obrigado a trabalhar em condições de grave precariedade e num quadro desprovido das regras que tutelam a dignidade do trabalhador. Os níveis de produtividade, rendas e teor de vida são extremamente baixos e freqüentemente se revelam insuficientes para garantir aos trabalhadores e às suas famílias a possibilidade de atingir o limiar da subsistência.

b) Doutrina social e «res novae»

317 Em face das imponentes « res novae » do mundo do trabalho, a doutrina social da Igreja recomenda, antes de tudo, evitar o erro de considerar que as mudanças em curso ocorram de modo determinista. O fator decisivo e « o árbitro » desta complexa fase de mudança é uma vez mais o homem, que deve continuar a ser o verdadeiro protagonista do seu trabalho. Ele pode e deve assumir de modo criativo e responsável as atuais inovações e reorganizações, de modo que sirvam ao crescimento da pessoa, da família, das sociedades e da inteira família humana[677]. É esclarecedora para todos a referência à dimensão subjetiva do trabalho, à qual a doutrina social da Igreja ensina a dar a devida prioridade, porque o trabalho humano « procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus e chamadas a prolongar, ajudando-se mutuamente, a obra da criação, dominando a terra »[678].

318 As interpretações de tipo mecanicista e economicista da atividade produtiva, ainda que prevalentes e em todo caso influentes, resultam superadas pela própria análise científica dos problemas relacionados com o trabalho. Tais concepções se mostram hoje mais do que ontem de todo inadequadas para interpretar os fatos, que demonstram cada vez mais o valor do trabalho, enquanto atividade livre e criativa do homem. Também dos dados concretos deve derivar o impulso para superar sem demora horizontes teóricos e critérios operativos restritos e insuficientes em relação às dinâmicas em curso, intrinsecamente incapazes de divisar as concretas e urgentes necessidades humanas na sua vasta gama, que se estende para muito além das categorias somente econômicas. A Igreja bem sabe, e desde sempre o ensina, que o homem, à diferença dos demais seres vivos, tem necessidades certamente não limitadas somente ao «ter»[679], porque a sua natureza e a sua vocação estão em relação indissolúvel com o Transcendente. A pessoa humana se entrega à aventura da transformação das coisas mediante o seu trabalho para satisfazer necessidades e carências antes de tudo materiais, mas o faz seguindo um impulso que a impele sempre para além dos resultados conseguidos, em busca do que possa corresponder mais profundamente às suas indeléveis exigências interiores.

319 Mudam as formas históricas em que se exprime o trabalho humano, mas não devem mudar as suas exigências permanentes, que se reassumem no respeito dos direitos inalienáveis do homem que trabalha. Defronte ao risco de ver negados estes direitos, devem ser imaginadas e construídas novas formas de solidariedade, levando em conta a interdependência que liga entre si os homens do trabalho. Quanto mais profundas são as mudanças, tanto mais decidido deve ser o empenho da inteligência e da vontade para tutelar a dignidade do trabalho, reforçando, nos vários níveis, as instituições envolvidas. Esta perspectiva consente orientar do melhor modo as atuais transformações na direção, tão necessária, da complementaridade entre a dimensão econômica local e a global; entre economia «velha» e « nova »; entre a inovação tecnológica e a exigência de salvaguardar o trabalho humano; entre o crescimento econômico e a compatibilidade ambiental do desenvolvimento.

320 Para a solução das vastas e complexas problemáticas do trabalho, que em algumas áreas assumem dimensões dramáticas, os cientistas e os homens de cultura são chamados a oferecer o seu contributo especifico, tão importante para a escolha de soluções justas. É uma responsabilidade que os insta a por em evidência as oportunidades e os riscos que se perfilam nas mudanças e sobretudo a sugerir linhas de ação para guiar a mudança no sentido mais favorável ao desenvolvimento da inteira família humana. Incumbe-lhes a eles o grave encargo de ler e interpretar os fenômenos sociais com inteligência e amor pela verdade, sem preocupações ditadas por interesses de grupo ou pessoais. O seu contributo, com efeito, justamente porque de natureza teórica, se torna uma referência essencial para a concreta atuação das políticas econômicas[680].

321 Os atuais cenários de profunda transformação do trabalho humano tornam portanto ainda mais urgente um desenvolvimento autenticamente global e solidário, capaz de abarcar todas as regiões do mundo, inclusive as menos favorecidas. Para estas últimas, o início de um processo de desenvolvimento solidário de vasto alcance não só representa uma concreta possibilidade para criar novos empregos, mas também se configura como uma verdadeira e própria condição de sobrevivência para povos inteiros: «É necessário globalizar a solidariedade »[681].

Os desequilíbrios econômicos e sociais existentes no mundo do trabalho devem ser enfrentados restabelecendo a justa hierarquia dos valores e pondo em primeiro lugar a dignidade da pessoa que trabalha: « As novas realidades, que acometem com vigor o processo produtivo como a globalização das finanças, da economia, do comércio e do trabalho, jamais devem violar a dignidade e a centralidade da pessoa humana, nem a liberdade e a democracia dos povos. A solidariedade, a participação e a possibilidade de governar estas mudanças radicais constituem, se não a solução, sem dúvida a necessária garantia ética para que as pessoas e os povos não se tornem instrumentos mas protagonistas do seu futuro. Tudo isto pode ser realizado e, dado que é possível, se torna imperioso »[682].

322 Mostra-se cada vez mais necessária uma cuidadosa ponderação da nova situação do trabalho no atual contexto da globalização, numa perspectiva que valorize a propensão natural dos homens a entabular relações. A tal propósito, se deve afirmar que a universalidade é uma dimensão do homem, não das coisas. A técnica poderá ser a causa instrumental da globalização, mas é a universalidade da família humana a sua causa última. Portanto, também o trabalho tem uma dimensão universal própria, na medida em que se funda na relacionalidade humana. As técnicas, especialmente eletrônicas, têm permitido dilatar este aspecto relacional do trabalho a todo o planeta, imprimindo à globalização um ritmo particularmente acelerado. O fundamento último deste dinamismo é o homem que trabalha, é sempre o elemento subjetivo e não o objetivo. Também o trabalho globalizado tem origem, portanto, no fundamento antropológico da intrínseca dimensão relacional do trabalho. Os aspectos negativos da globalização do trabalho não devem mortificar as possibilidades que se abriram para todos de dar expressão a um humanismo do trabalho em âmbito planetário, a uma solidariedade do mundo do trabalho neste nível, a fim de que, trabalhando em semelhante contexto, dilatado e interconexo, o homem compreenda cada vez mais a sua vocação unitária e solidária.

CAPÍTULO VII – A VIDA ECONÔMICA

I. ASPECTOS BÍBLICOS

a) O homem, pobreza e riqueza

323 No antigo Testamento se percebe uma dupla postura em relação aos bens econômicos e a riqueza. Por um lado, apreço em relação a disponibilidade dos bens materiais considerados necessários para a vida: por vezes a abundância ? mas não a riqueza e o luxo ? é vista como uma bênção de Deus. Na literatura sapiencial, a pobreza é descrita como uma conseqüência negativa do ócio e da falta de laboriosidade (cf. Prov 10,4), mas também como fato natural (cf. Prov 22,2). Por um outro lado, os bens econômicos e a riqueza não são condenados por si mesmo, mas pelo seu mau uso. A tradição profética estigmatiza as fraudes, a usura, a exploração, as injustiças manifestas, freqüentes em relação aos mais pobres (cf. Is 58,3-11; Jr 7,4-7; Os 4,1-2; Am 2,6-7; Mq 2,1-2). Tais tradições, mesmo considerando um mal a pobreza dos oprimidos, dos fracos, dos indigentes, neles vê também um símbolo da situação do homem diante de Deus; d’Ele provêm todos os bens como dom a ser administrado e a ser partilhado.

324 Aquele que reconhece a própria pobreza diante de Deus, qualquer que seja a situação que esteja vivendo, é objeto de particular atenção da parte de Deus: quando o pobre O procura, o Senhor responde; quando grita, Ele o escuta. Aos pobres se dirigem as promessas divinas: eles serão os herdeiros da aliança entre Deus e o seu povo. A intervenção salvífica de Deus se atenuará através de um novo David (cf. Ez 34,22-31), o qual, como e mais que o Rei David, será defensor dos pobres e promotor da justiça; ele estabelecerá uma nova aliança e escreverá uma nova lei no coração dos fiéis (cf. Jr 31,31-34).

A pobreza, quando é aceita ou procurada com espírito religioso, predispõem ao reconhecimento e à aceitação da ordem criatural; o «rico», nesta perspectiva, é aquele que repõem a sua confiança nas coisas que possui mais que em Deus, o homem que se faz forte pela obra de suas mãos e que confia somente nesta força. A pobreza assume o valor moral quando se manifesta como humilde disponibilidade e abertura para com Deus, confiança n’Ele. Estas atitudes tornam o homem capaz de reconhecer a relatividade dos bens econômicos e dos tratados como dons divinos da administração e da partilha, porque a propriedade originária de todos os bens pertence a Deus.

325 Jesus assume toda a tradição do Antigo Testamento também sobre os bens econômicos, sobre a riqueza e sobre a pobreza, conferindo-lhe uma definitiva clareza e plenitude (cf. Mt 6,24 e 13,22; Lc 6,20-24 e 12,15-21; Rm 14,6-8 e 1 Tm 4,4). Ele, doando o Seu Espírito e mudando o coração, vem instaurar o «Reino de Deus», de modo a tornar possível uma nova convivência na justiça, na fraternidade, na solidariedade e na partilha. O Reino inaugurado por Cristo aperfeiçoa a bondade originária da criação e da atividade humana, comprometida pelo pecado. Liberado do mal e reintroduzido na comunhão com Deus, cada homem pode continuar a obra de Jesus, com a ajuda do Seu Espírito: fazer justiça aos pobres, resgatar os oprimidos, consolar os aflitos, buscar ativamente uma nova ordem social, em que se ofereçam adequadas soluções à pobreza material e venham impedidas mais eficazmente as forças que dificultam as tentativas dos mais fracos de liberarem-se de uma condição de miséria e de escravidão. Quando isto acontece, o Reino de Deus se faz já presente sobre esta terra, embora não lhe pertença. Nisto encontrarão finalmente cumprimento as promessas dos Profetas.

326 À luz da Revelação, a atividade econômica deve ser considerada e desenvolvida como resposta reconhecida à vocação que Deus reserva a cada homem. Ele é colocado no jardim para cultivá-lo e guardá-lo, usando-o dentro de limites bem precisos (cf. Gn 2,16-17), no esforço de aperfeiçoamento (cf. Gn 1,26-30; 2,15-16; Sab 9,2-3). Fazendo-se testemunha da grandeza e da bondade do Criador, o homem caminha para a plenitude da liberdade em que Deus o chama. Uma boa administração dos dons recebidos, também dos dons materiais, é obra de justiça para consigo mesmo e para com os outros homens: aquilo que se recebe deve ser bem utilizado, conservado, acrescido, tal como ensina a parábola dos talentos (cf. Mt 25,14-31; Lc 19,12-27).

A atividade econômica e o progresso material devem ser colocados a serviço do homem e da sociedade; se a eles nos dedicarmos com a fé, a esperança e a caridade dos discípulos de Cristo, a própria economia e o progresso podem ser transformados em lugares de salvação e de santificação; nestes âmbitos também é possível dar expressão a um amor e a uma solidariedade mais que humanas e contribuir para o crescimento de uma humanidade nova, que prefigure o mundo dos últimos tempos[683]. Jesus sintetiza toda a Revelação pedindo ao crente enriquecer diante de Deus (cf. Lc 12,21): também a economia é útil para este fito, quando não trai a sua função de instrumento para o crescimento global do homem e das sociedades, da qualidade humana da vida.

327 A fé em Jesus Cristo consente uma correta compreensão do progresso social, no contexto de um humanismo integral e solidário. Para tal fim, é assaz útil o contributo da reflexão teológica oferecido pelo Magistério social: «A fé em Cristo Redentor, ao mesmo tempo que ilumina a partir de dentro a natureza do desenvolvimento, orienta também no trabalho de colaboração. Na Carta de São Paulo aos Colossenses lemos que Cristo é “o primogênito de toda a criatura”, e que “tudo foi criado por Ele e para Ele” (1, 15-16). Com efeito, todas as coisas “subsistem n’Ele”, porque “foi do agrado de Deus que residisse n’Ele toda a plenitude e, por seu intermédio, reconciliar consigo todas as coisas” (ibid. 1, 20). Neste plano divino, que começa na eternidade em Cristo, “imagem” perfeita do Pai, e culmina n’Ele “primogênito dos redivivos” (ibid. 1, 15. 18), insere-se a nossa história, marcada pelo nosso esforço pessoal e coletivo para elevar a condição humana, superar os obstáculos que reaparecem continuamente ao longo do nosso caminho, dispondo-nos assim a participar na plenitude que “reside no Senhor” e que Ele comunica “ao seu Corpo, que é a Igreja” (ibid. 1, 18; cf. Ef 1, 22-23); enquanto que o pecado, o qual sempre nos insidia e compromete as nossas realizações humanas, é vencido e resgatado pela “reconciliação” operada por Cristo (cf. Col 1, 20)»[684].

b) As riquezas existem para ser partilhadas

328 Os bens, ainda que legitimamente possuídos, mantêm sempre uma destinação universal: é imoral toda a forma de acumulação indébita, porque em aberto contraste com a destinação universal consignada por Deus Criador a todos os bens. A salvação cristã é, efetivamente, uma libertação integral do homem, libertação da necessidade, mas também em relação às próprias posses: «O apego ao dinheiro de fato é a raiz de todos os males, pelo seu desejo desenfreado alguns se desviaram da fé» (1 Tm 6,10). Os Padres da Igreja insistem sobre a necessidade da conversão e da transformação das consciências dos fiéis, mais que sobre as exigências de mudança das estruturas sociais e políticas de seu tempo, solicitando a quem desempenha uma atividade econômica e possui bens a considerar-se administradores de quanto Deus lhes confiou.

329 As riquezas realizam a sua função de serviço ao homem quando destinadas a produzir benefícios para os outros e a sociedade[685]: «Como poderíamos fazer o bem ao próximo ? interroga-se Clemente de Alexandria ? se todos não possuíssem nada?»[686]. Na visão de São João Crisóstomo, as riquezas pertencem a alguns, para que estes possam adquirir mérito partilhando com os outros[687]. Elas são um bem que vem de Deus: quem o possuir, deve usá-lo e faze-lo circular, de sorte que também os necessitados possam fruir; o mal está no apego desmedido às riquezas, no desejo de açambarcá-las. São Basílio Magno convida os ricos a abrir as portas de seus armazéns e exclama: « Um grande rio se derrama, em mil canais, sobre o terreno fértil: de igual modo, por mil vias, tu faze chegar a riqueza à habitação dos pobres »[688]. A riqueza, explica São Basílio, é como a água que flui mais pura da fonte na medida em que dela se haure com mais freqüência, mas que apodrece se a fonte permanece inutilizada[689]. O rico, dirá mais tarde São Gregório Magno, não é mais que um administrador daquilo que possui; dar o necessário a quem necessita é obra a ser cumprida com humildade, porque os bens não pertencem a quem os distribui. Quem tem as riquezas somente para si não é inocente; dar a quem tem necessidade significa pagar um débito[690].

II. MORAL E ECONOMIA

330 A doutrina social da Igreja insiste sobre a conotação moral da economia. Pio XI, em uma página da Encíclica «Quadragesimo anno», enfrenta a relação entre economia e a moral: «Pois ainda que a economia e a moral “se regulam, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios”, é erro julgar a ordem econômica e a moral tão encontradas e alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efeito, as chamadas leis econômicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da alma, determinam os fins que a atividade humana se não pode propor, e os que pode procurar com todos os meios no campo econômico; e a razão mostra claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do homem, o fim imposto pelo Criador a toda a ordem econômica. Por sua parte, a lei moral manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa atividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus autor da mesma; subordinando sempre estes fins àquele, como pede a boa ordem»[691].

331 A relação entre moral e economia é necessária e intrínseca: atividade econômica e comportamento moral se compenetram intimamente. A distinção entre moral e economia não implica uma separação entre os dois âmbitos, mas, ao contrário, uma importante reciprocidade. Assim como no âmbito moral se devem ter em conta as razões e as exigências da economia, atuando no campo econômico é imperioso abrir-se às instâncias morais : «Também na vida econômico-social se deve respeitar e fomentar a dignidade da pessoa humana, a sua vocação integral e o bem de toda a sociedade. Pois o homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social »[692]. Dar o justo e devido peso às razões próprias da economia não significa rejeitar como irracional qualquer consideração de ordem metaeconômica, precisamente porque o fim da economia não está na economia mesma, mas na sua destinação humana e social[693]. À economia, com efeito, tanto no âmbito científico, como em nível de praxe, não é confiado o fim da realização do homem e da boa convivência humana, mas uma tarefa parcial: a produção, a distribuição e o consumo dos bens materiais e de serviços.

332 A dimensão moral da economia faz tomar como finalidades indivisíveis, nunca separadas e alternativas, a eficiência econômica e a promoção de um desenvolvimento solidário da humanidade. A moral, constitutiva da vida econômica, não é nem opositiva, nem neutra: inspira-se na justiça e na solidariedade, constitui um fator de eficiência social da própria economia. É um dever desempenhar de modo eficiente a atividade de produção dos bens, pois do contrário se desperdiçam recursos; mas não é aceitável um crescimento econômico obtido em detrimento dos seres humanos, de povos inteiros e de grupos sociais, condenados à indigência e à exclusão. A expansão da riqueza, visível na disponibilidade dos bens e dos serviços, e a exigência moral de uma difusão eqüitativa destes últimos devem estimular o homem e a sociedade como um todo a praticar a virtude essencial da solidariedade[694], para com­bater, no espírito da justiça e da caridade, onde quer que se revele a sua presença, as «estruturas de pecado»[695] que geram e mantém pobreza, subdesenvolvimento e degradação. Tais estruturas são edificadas e consolidadas por muitos atos concretos de egoísmo humano.

333 Para assumir um caráter moral, a atividade econômica deve ter como sujeitos todos os homens e todos os povos. Todos têm o direito de participar da vida econômica e o dever de contribuir, segundo as próprias capacidades, do progresso do próprio país e de toda a família humana[696]. Se, em certa medida, todos são responsáveis por todos, cada qual tem o dever de esforçar-se pelo desenvolvimento econômico de todos[697]: é dever de solidariedade e de justiça, mas também o caminho melhor para fazer progredir a humanidade toda. Vivida moralmente, a economia é pois prestação de um serviço recíproco, mediante a produção dos bens e serviços úteis ao crescimento de cada um, e torna-se oportunidade para cada homem de viver a solidariedade e a vocação à «comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou»[698]. O esforço de conceber e realizar projetos econômico-sociais capazes de propiciar uma sociedade mais eqüitativa e um mundo mais humano representa um desafio árduo, mas também um dever estimulante, para todos os operadores econômicos e para os cultores das ciências econômicas[699].

334 Objeto da economia é a formação da riqueza e o seu incremento progressivo, em termos não apenas quantitativos, mas qualitativos: tudo isto é moralmente correto se orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade em que ele vive e atua. O desenvolvimento, com efeito, não pode ser reduzido a mero processo de acumulação de bens e serviços. Ao contrario, a pura acumulação, ainda que em vista do bem comum, não é uma condição suficiente par a realização da autêntica felicidade humana. Nesse sentido, o Magistério social alerta para a insídia que um tipo de desenvolvimento tão-somente quantitativo esconde, pois a «excessivadisponibilidade de todo o gênero de bens materiais, em favor de algumas camadas sociais, torna facilmente os homens escravos da “posse” e do gozo imediato… É o que se chama a civilização do “consumo”, ou consumismo…»[700].

335 Na perspectiva do desenvolvimento integral e solidário, pode-se dar uma justa apreciação à avaliação moral que a doutrina social oferece sobre a economia de mercado ou, simplesmente, economia livre: «Se por “capitalismo” se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de “economia de empresa”, ou de “economia de mercado”, ou simplesmente de “economia livre”. Mas se por “capitalismo” se entende um sistema onde a liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa»[701]. Assim se define a perspectiva cristã acerca das condições sociais e políticas da atividade econômica: não só as suas regras, mas a sua qualidade moral e o seu significado.

III. INICIATIVA PRIVADA E EMPRESA

336 A doutrina social da Igreja considera a liberdade da pessoa em campo econômico um valor fundamental e um direito inalienável a ser promovido e tutelado: «Cada um tem o direito de iniciativa econômica, cada um usará legitimamente de seus talentos para contribuir para uma abundância que seja de proveito para todos e para colher os justos frutos de seus esforços»[702]. Tal ensinamento põe de guarda contra as conseqüências negativas que derivariam da mortificação ou negação do direito de iniciativa econômica: «A experiência demonstra-nos que a negação deste direito ou a sua limitação, em nome de uma pretensa “igualdade” de todos na sociedade, é algo que reduz, se é que não chega mesmo a destruir de fato, o espírito de iniciativa, isto é, a subjetividade criadora do cidadão»[703]. Nesta perspectiva, a iniciativa livre e responsável em campo econômico pode ser definida como um ato que revela a humanidade do homem enquanto sujeito criativo e relacional. Tal iniciativa deve gozar, portanto, de um espaço amplo. O Estado tem a obrigação moral de pôr vínculos estreitos somente em vista das incompatibilidades entre a busca do bem comum e o tipo de atividade econômica iniciada ou as suas modalidades de realização[704].

337 A dimensão criativa é um elemento essencial do agir humano, também em campo empresarial, e se manifesta especialmente na aptidão a projetar e a inovar: «Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e — enquanto parte essencial desse trabalho — das capacidades de iniciativa e de empreendimento»[705]. Na base de tal ensinamento deve ser individuada a convicção de que «a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas»[706].

a) A empresa e seus fins

338 A empresa deve caracterizar-se pela capacidade de servir o bem comum da sociedade mediante a produção de bens e serviços úteis. Procurando produzir bens e serviços em uma lógica de eficiência e de satisfação dos interesses dos diversos sujeitos implicados, ela cria riqueza para toda a sociedade: não só para os proprietários, mas também para os outros sujeitos interessados na sua atividade. Além de tal função tipicamente econômica, a empresa cumpre também uma função social, criando oportunidades de encontro, de colaboração, de valorização das capacidades das pessoas envolvidas. Na empresa, portanto, a dimensão econômica é condição para que se possam alcançar objetivos não apenas econômicos, mas também sociais e morais, a perseguir conjuntamente.

O objetivo da empresa deve ser realizado em termos e com critérios econômicos, mas não devem ser descurados os autênticos valores que permitem o desenvolvimento concreto da pessoa e da sociedade. Nesta visão personalista e comunitária, «A empresa não pode ser considerada apenas como uma “sociedade de capitais”; é simultaneamente uma “sociedade de pessoas”, da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua atividade, quer aqueles que colaboram com o seu trabalho»[707].

339 Os componentes da empresa devem ser conscientes de que a comunidade na qual atuam representa um bem para todos e não uma estrutura que permite satisfazer exclusivamente os interesses pessoais de alguns. Somente tal consciência permite chegar à construção de uma economia verdadeiramente ao serviço do homem e de elaborar um projeto de real cooperação entre as partes sociais.

Um exemplo muito importante e significativo na direção indicada provém da atividade das empresas cooperativas, das empresas artesanais e das agrícolas de dimensões familiares. A doutrina social tem sublinhado o valor do contributo que elas oferecem para a valorização do trabalho, para o crescimento do sentido de responsabilidade pessoal e social, para a vida democrática, para os valores humanos úteis ao progresso do mercado e da sociedade[708].

340 A doutrina social reconhece a justa função do lucro, como primeiro indicador do bom andamento da empresa: «quando esta dá lucro, isso significa que os fatores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas»[709]. Isto não ofusca a consciência do fato de que nem sempre o lucro indica que a empresa está servindo adequadamente a sociedade[710]. É possível, por exemplo, «que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o patrimônio mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade»[711]. É o que acontece quando a empresa está inserida em sistemas sócio-culturais caracterizados pela exploração das pessoas, inclinados a fugir às obrigações de justiça social e a violar os direitos dos trabalhadores.

É indispensável que, no interior da empresa, a legítima busca do lucro se harmonize com a irrenunciável tutela da dignidade das pessoas que, a vário título, atuam na mesma empresa. As duas exigências não estão absolutamente em contraste uma com a outra, pois que, de um lado, não seria realista pensar em garantir o futuro da empresa sem a produção de bens e serviços e sem conseguir lucros que sejam fruto da atividade econômica realizada; por outro lado, consentindo crescer à pessoa que trabalha, se favorecem uma maior produtividade e eficácia do trabalho mesmo. A empresa deve ser uma comunidade solidária[712] não fechada nos interesses corporativos, tender a uma «ecologia social»[713] do trabalho, e contribuir para o bem comum mediante a salvaguarda do meio ambiente natural.

341 Se na atividade econômica e financeira a busca de um lucro eqüitativo é aceitável, o recurso à usura é moralmente condenado: «Todo aquele que em seus negócios se der a práticas usurárias e mercantis que provocam a fome e a morte de seus irmãos (homens) comete indiretamente um homicídio, que lhe é imputável»[714]. Tal condenação estende-se também às relações econômicas internacionais, especialmente pelo que respeita a situação dos países menos avançados, aos quais não podem ser aplicados «sistemas financeiros abusivos e mesmo usurários»[715]. O Magistério mais recente tem reservado palavras fortes e claras para uma prática ainda hoje dramaticamente estendida: «não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas»[716].

342. A empresa se move hoje no quadro de cenários econômicos de dimensões mais cada vez amplas, nos quais os Estados nacionais mostram limites na capacidade de governar os processos de mudança por que passam as relações econômico-financeiras internacionais; esta situação induz as empresas a assumir responsabilidades novas e maiores em relação ao passado. Nunca como hoje o seu papel aparece determinante em vista de um desenvolvimento autenticamente solidário e integral da humanidade e é igualmente decisivo, neste sentido, o seu nível de consciência do fato de que o «desenvolvimento ou se torna comum a todas as partes do mundo, ou então sofre um processo de regressão mesmo nas zonas caracterizadas por um constante progresso. Este fenômeno é particularmente indicativo da natureza do desenvolvimento autêntico: ou nele participam todas as nações do mundo, ou não será na verdade desenvolvimento»[717].

b) O papel do empresário e do dirigente de empresa

343 A iniciativa econômica é expressão da inteligência humana e da exigência de responder às necessidades do homem de modo criativo e colaborativo. Na criatividade e na cooperação está inscrita a autêntica concepção da competição empresarial: um cum-petere, ou seja, um buscar junto as soluções mais adequadas para responder do modo mais apropriado às necessidades que passo a passo vêm à tona. O sentido de responsabilidade que brota da livre iniciativa econômica se configura não só como virtude individual indispensável para o crescimento humano do indivíduo, mas também como virtude social necessária ao desenvolvimento de uma comunidade solidária: «Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida »[718].

344 Os papéis do empresário e do dirigente reveste uma importância central do ponto de vista social, porque se colocam no coração daquela rede de liames técnicos, comerciais, financeiros, culturais, que caracterizam a moderna realidade da empresa. Dado que as decisões empresariais produzem, em razão da crescente complexidade da atividade empresarial, uma multiplicidade de efeitos conjuntos de grande relevância não só econômica, mas também social, o exercício das responsabilidades empresariais e dirigenciais exige, além de um esforço contínuo de atualização específica, uma constante reflexão sobre as motivações morais que devem guiar as opções pessoais de quem esta investido de tais encargos.

Os empresários e os dirigentes não podem levar em conta exclusivamente o objetivo econômico da empresa, os critérios de eficiência econômica, as exigências do cuidado do «capital» como conjunto dos meios de produção: é também um preciso dever deles o concreto respeito da dignidade humana dos trabalhadores que atuam na empresa[719]. Estes últimos constituem «o patrimônio mais precioso da empresa»[720], o fator decisivo da produção[721]. Nas grandes decisões estratégicas e financeiras, de compra ou de venda, de redimensionamento ou fechamento das filiais, na política das fusões, não se pode limitar exclusivamente a critérios de natureza financeira ou comercial.

345 A doutrina social insiste na necessidade de que o empresário e o dirigente se empenhem em estruturar a atividade profissional nas suas empresas de modo a favorecer a família, especialmente as mães de família no cumprimento das suas funções[722]; respondam, à luz de uma visão integral do homem e do desenvolvimento, à demanda de qualidade «das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral»[723]; invistam, sempre que se apresentarem as condições econômicas e de estabilidade política, nos lugares e nos setores produtivos que oferecem a indivíduos e povos «a ocasião de valorizar o próprio trabalho»[724].

IV. INSTITUIÇÕES ECONÔMICAS AO SERVIÇO DO HOMEM

346. Uma das questões prioritárias na economia é o emprego dos recursos[725], isto é, de todos aqueles bens e serviços cujos sujeitos econômicos, produtores e consumidores privados e públicos, atribuem um valor para a utilidade destes inerentes no campo da produção e do consumo. Na natureza os recursos são quantitativamente escassos e isto implica, necessariamente, que cada sujeito econômico, assim como cada sociedade, deva elaborar alguma estratégia para empregá-los do modo mais racional possível, seguindo a lógica ditada pelo princípio de economia. Disto dependem seja a efetiva solução do problema econômico mais geral, e fundamentalmente, da limitação dos meios em relação às necessidades individuais e sociais, privados e públicos, seja a eficiência completiva, estrutural e funcional, de todo o sistema econômico. Tal eficiência chama diretamente em causa a responsabilidade e a capacidade de vários sujeitos, como o mercado, o Estado e os corpos sociais intermediários.

a) O papel do mercado livre

347 O livre mercado é uma instituição socialmente importante para a sua capacidade de garantir resultados eficientes na produção de bens e serviços. Historicamente, o mercado deu provas de saber impulsionar e manter, por longo período, o desenvolvimento econômico. Existem boas razões para acreditar que, em muitas circunstâncias, «o livre mercado seja o instrumento mais eficaz para colocar os recursos e responder eficazmente as necessidades»[726]. A doutrina social da Igreja aprecia as vantagens seguras que os mecanismos do livre mercado oferecem, seja para uma melhor utilização dos recursos, seja para facilitar a troca de produtos; estes mecanismos « sobretudo, colocam no centro a vontade e as preferências da pessoa que no contrato se encontram com aqueles de uma outra pessoa»[727].

Um verdadeiro mercado concorrencial é um instrumento eficaz para alcançar importantes objetivos de justiça: moderar os excessos de lucros das empresas singulares; responder às exigências dos consumidores; realizar uma melhor utilização e economia dos recursos; premiar os esforços empresariais e a habilidade de inovação; fazer circular a informação, em modo que seja verdadeiramente possível confrontar e adquirir os produtos em um contexto de saudável concorrência.

348 O livre mercado não pode ser julgado prescindindo dos fins que persegue e doa valores que transmite em nível social. O mercado, de fato, não pode encontrar em si mesmo o princípio da própria legitimação. Cabe à consciência individual e à responsabilidade pública estabelecer uma justa relação entre meios e fim[728]. O benefício individual do operador econômico, se bem que legítimo, jamais deve tornar-se o único objetivo. Ao lado deste, existe um outro, também fundamental e superior, aquele da utilidade social, que deve encontrar realização não em contraste, mas em coerência com a lógica de mercado. Quando desempenha as importantes funções acima recordadas, o livre mercado torna-se funcional ao bem e ao desenvolvimento integral do homem, enquanto a inversão da relação entre meios e fins pode fazê-lo degenerar em uma instituição desumana e alienante, com repercussões incontroláveis.

349 A doutrina social da Igreja, ainda que reconhecendo ao mercado a função de instrumento insubstituível de regulação no interior do sistema econômico, coloca em evidência a necessidade de ancorá-lo à finalidade moral, que assegurem e, ao mesmo tempo, circunscrevam adequadamente o espaço de sua autonomia[729]. A idéia de que se possa confiar tão-somente ao mercado o fornecimento de todas as categorias de bens não é admissível, porque baseada numa visão redutiva da pessoa e da sociedade[730]. Diante do concreto risco de uma « idolatria » do mercado, a doutrina social da Igreja lhe ressalta o limite, facilmente reveláveis em a sua constatada incapacidade de satisfazer as exigências humanas importantes, pelas quais há a necessidade de bens que, «por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias»[731], bens não negociáveis segundo a regra da «troca de equivalentes» e a lógica do contrato, típicas do mercado.

350 O mercado assume uma função social e relevante nas sociedades contemporâneas, por isso é importante individuar as potencialidades mais positivas e criar condições que permitam a sua concreta expansão. Os operadores devem ser efetivamente livres para confrontar, avaliar e escolher entre as várias opções, todavia a liberdade, no âmbito econômico, deve ser regulada por um apropriado quadro jurídico tal da colocá-la a serviço da liberdade humana integral: «a liberdade econômica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autônoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir»[732].

b) A ação do Estado

351 A ação do estado e dos outros poderes públicos deve conformar-se com o princípio da subsidiariedade para criar situações favoráveis ao livre exercício da atividade econômica; esta deve inspirar-se também no princípio de solidariedade e estabelecer os limites da autonomia das partes para defender a parte mais frágeis[733]. A solidariedade sem subsidiariedade pode, de fato, degenerar facilmente em assistencialismo, ao passo que a subsidiariedade sem a solidariedade se expõe ao risco de alimentar formas de localismo egoísta. Para respeitar estes dois fundamentais princípios, a intervenção do Estado em âmbito econômico não deve ser nem açambarcadora, nem remissiva, mas sim apropriada às reais exigências da sociedade: «O Estado tem o dever de secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise. O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais»[734].

352 A tarefa fundamental do Estado em âmbito econômico é o de definir um quadro jurídico apto a regular as relações econômicas, com a finalidade de «salvaguardar … as condições primárias de uma livre economia, que pressupõe uma certa igualdade entre as partes, de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão»[735]. A atividade econômica, sobretudo num contexto de livre mercado, não pode desenrolar-se num vazio institucional, jurídico e político: «Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes»[736]. Para cumprir a sua tarefa, o Estado deve elaborar uma legislação apropriada, mas também orientar cuidadosamente as políticas econômicas, de modo a não se tornar prevaricador nas várias atividades de mercado, cuja atuação deve permanecer livre de superestruturas e coerções autoritárias ou, pior, totalitárias.

353 É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras eqüitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário[737], nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo. Na realidade, em alguns âmbitos, o mercado, apoiando-se nos próprios mecanismos, não é capaz de garantir uma distribuição eqüitativa de alguns bens e serviços essenciais ao crescimento humano dos cidadãos: neste caso a complementaridade entre Estado e mercado é sobremaneira necessária.

354 O Estado pode concitar os cidadãos e as empresas na promoção do bem comum cuidando de atuar uma política econômica que favoreça a participação de todos os seus cidadãos nas atividades produtivas. O respeito do princípio de subsidiariedade deve mover as autoridades públicas a buscar condições favoráveis ao desenvolvimento das capacidades de iniciativa individuais, da autonomia e da responsabilidade pessoais dos cidadãos, abstendo-se de qualquer intervenção que possa constituir um condicionamento indébito das forças empresariais.

Em vista do bem comum, se deve sempre perseguir com constante determinação o objetivo de um justo equilíbrio entre liberdade privada e ação pública, entendida quer como intervenção direta na economia, quer como atividade de suporte ao desenvolvimento econômico. Em todo o caso, a intervenção pública deverá ater-se a critérios de eqüidade, racionalidade e eficiência, e não substituir a ação dos indivíduos, contra o seu direito à liberdade de iniciativa econômica. O Estado, neste caso, se torna deletério para a sociedade: uma intervenção direta excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparatos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas[738].

355 A coleta fiscal e a despesa pública assumem uma importância econômica crucial para qualquer comunidade civil e política: o objetivo para o qual tender é uma finança pública capaz de se propor como instrumento de desenvolvimento e de solidariedade. Uma finança pública eqüitativa, eficiente, eficaz, produz efeitos virtuosos sobre a economia, porque consegue favorecer o crescimento do emprego, amparar as atividades empresariais e as iniciativas sem fins lucrativos, e contribui a aumentar a credibilidade do Estado enquanto garante dos sistemas de previdência e de proteção social destinados em particular a proteger os mais fracos.

As finanças públicas se orientam para o bem comum quando se atêm a alguns princípios fundamentais: o pagamento dos impostos[739] como especificação do dever de solidariedade; racionalidade e eqüidade na imposição dos tributos[740]; rigor e integridade na administração e na destinação dos recursos públicos[741]. Ao redistribuir as riquezas, a finança pública deve seguir os princípios da solidariedade, da igualdade, da valorização dos talentos, e prestar grande atenção a amparar as famílias, destinando a tal fim uma adequada quantidade de recursos[742].

c) O papel dos corpos intermédios

356 O sistema econômico-social deve ser caracterizado pela compresença de ação pública e privada, incluída a ação privada sem finalidade de lucro. Configura-se de tal modo uma pluralidade de centros decisórios e de lógicas de ação. Há algumas categorias de bens, coletivos e de uso comum, cuja utilização não pode depender dos mecanismos do mercado[743] e não é nem mesmo de exclusiva competência do Estado. O dever do Estado, em relação a estes bens, é antes o de valorizar todas as iniciativas sociais e econômicas que têm efeitos públicos, promovidos pelas formações intermédias. A sociedade civil, organizada nos seus corpos intermédios, é capaz de contribuir para a consecução do bem comum pondo-se em uma relação de colaboração e de eficaz complementaridade em relação ao Estado e ao mercado, favorecendo assim o desenvolvimento de uma oportuna democracia econômica. Em um semelhante contexto, a intervenção do Estado deve ser caracterizada pelo exercício de uma verdadeira solidariedade, que como tal nunca deve ser separada da subsidiariedade.

357 As organizações privadas sem fins lucrativos têm um espaço específico em âmbito econômico: nos serviços sociais, na instrução, na saúde, na cultura. Caracteriza tais organizações a corajosa tentativa de unir harmoniosamente eficiência produtiva e solidariedade. Constituem-se, geralmente, em base a um pacto associativo e são expressão de uma tensão ideal comum aos sujeitos que livremente decidem aderir às mesmas. O Estado é chamado a respeitar a natureza destas organizações e a valorizar as características, dando concreta atuação ao princípio de subsidiariedade, que postula precisamente um respeito e uma promoção da dignidade e da autônoma responsabilidade do sujeito «subsidiado».

d) Poupança e consumo

358 Os consumidores, que em muitos casos dispõem de amplas margens de poder aquisitivo, bem além do limiar da subsistência, e podem influenciar consideravelmente a realidade econômica com a sua livre escolha entre consumo e poupança. A possibilidade de influir nas escolhas do sistema econômico está nas mãos de quem deve decidir sobre o destino dos próprios recursos financeiros. Hoje mais do que no passado, é possível avaliar as alternativas disponíveis não somente em base ao rendimento previsto ou ao seu grau de risco, mas também exprimindo um juízo de valor sobre os projetos de investimento que os recursos irão financiar, na consciência de que «a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural»[744].

359 O uso do próprio poder aquisitivo há de ser exercido no contexto das exigências morais da justiça e da solidariedade e de responsabilidades sociais precisas: é preciso não esquecer que «o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o “supérfluo”, e às vezes até com o “necessário” para garantir o indispensável à vida do pobre»[745]. Tal responsabilidade confere aos consumidores a possibilidade de dirigir, graças à maior circulação de informações, o comportamento dos produtores, mediante a decisão ?individual ou coletiva? de preferir os produtos de algumas empresas em lugar de outras, levando em conta não apenas os preços e a qualidadedos produtos, mas também a existência de corretas condições de trabalho nas empresas, bem como o grau de tutela assegurado para o ambiente natural que o circunda.

360 O fenômeno do consumismo mantém uma persistente orientação para o «ter» mais que para o «ser». Ele impede de «distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura»[746]. Para contrastar este fenômeno é necessário esforçar-se por construir «estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento»[747]. É inegável que as influências do contexto social sobre os estilos de vida são notáveis: por isso o desafio cultural que hoje o consumismo põe deve ser enfrentado com maior incisividade, sobretudo se se consideram as gerações futuras, as quais arriscam ter de viver num ambiente saqueado por causa de um consumo excessivo e desordenado[748].

V. AS «RES NOVAE» EM ECONOMIA

a) A globalização: as oportunidades e os riscos

361 O nosso tempo é marcado pelo complexo fenômeno da globalização econômico-financeira, isto é, um processo de crescente integração das economias nacionais, no plano do comércio de bens e serviços e das transações financeiras, no qual um número sempre maior de operadores assume um horizonte global pelas opções que deve efetuar em função das oportunidades de crescimento e de lucro. O novo horizonte da sociedade global não é dado simplesmente pela presença de liames econômicos e financeiros entre atores nacionais atuantes em países diversos, que, ademais, sempre existiram, quanto principalmente pelo caráter invasivo e pela natureza absolutamente inédita do sistema de relações que se está desenvolvendo. Torna-se cada vez mais decisivo e central o papel dos mercados financeiros, cujas dimensões, em seguida à liberalização das trocas e à circulação dos capitais, cresceram enormemente com uma velocidade impressionante, a ponto de consentir aos operadores transferir «em tempo real» de uma parte a outra do globo, capitais em grande quantidade. Trata-se de uma realidade multiforme e não simples de decifrar, dado que se desenrola em vários níveis e evolui constantemente, ao longo de trajetórias dificilmente previsíveis.

362. A globalização alimenta novas esperanças, mas também suscita interrogações inquietantes[749].

Ela pode produzir efeitos potencialmente benéficos para a humanidade inteira: entrelaçando-se com o impetuoso desenvolvimento das telecomunicações, o percurso de crescimento do sistema de relações econômicas e financeiras tem consentido simultaneamente uma notável redução nos custos das telecomunicações e das novas tecnologias, bem como uma aceleração no processo de extensão em escala planetária dos intercâmbios comerciais e das transações financeiras. Em outras palavras, aconteceu que os dois fenômenos, globalização econômico-financeira e progresso tecnológico têm se reforçado reciprocamente, tornando extremamente rápida a dinâmica completiva da atual fase econômica.

Analisando o contexto atual, além de divisar as oportunidades que se abrem na era da economia global, se percebem também os riscos ligados às novas dimensões das relações comerciais e financeiras. Não faltam, efetivamente, indícios reveladores de uma tendência ao aumento das desigualdades quer entre países avançados e países em via de desenvolvimento, quer no interior dos países industrializados. À crescente riqueza econômica possibilitada pelos processos descritos acompanha um crescimento da pobreza relativa.

363 O zelo pelo bem comum exige que se aproveitem as novas ocasiões de redistribuição de poder e riqueza entre as diversas áreas do planeta, em benefício das mais desfavorecidas e até agora excluídas ou à margem do progresso social e econômico[750]: «O desafio, em suma, é o de assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização»[751]. O próprio progresso tecnológico arrisca repartir iniquamente entre os países os próprios efeitos positivos. As inovações, com efeito, podem penetrar e difundir-se no interior de uma determinada coletividade, se os seus potenciais beneficiários atingem um patamar mínimo de saber e de recursos financeiros: é evidente que, em presença de fortes disparidades entre os países no acesso aos conhecimentos técnico-científicos e aos mais recentes produtos tecnológicos, o processo de globalização acaba por alargar, ao invés de reduzir, as distâncias entre os países em termos de desenvolvimento econômico e social. Dada a natureza das dinâmicas em curso, a livre circulação de capitais não é de per si suficiente para favorecer a aproximação dos países em via de desenvolvimento em relação aos mais avançados.

364 O comércio representa uma componente fundamental das relações econômicas internacionais, contribuindo de maneira determinante para a especialização produtiva e para o crescimento econômico dos diversos países. Hoje mais do que nunca o comércio internacional, se oportunamente orientado, promove o desenvolvimento e é capaz de criar novos empregos e de fornecer úteis recursos. A doutrina social tem muitas vezes posto em claro as distorções do sistema comercial internacional[752] que freqüentemente, por causa das políticas protecionistas adotadas pelos países desenvolvidos, discrimina os produtos provenientes dos países mais pobres e impede o crescimento de atividades industriais e a transferência de tecnologias para tais países[753]. A contínua deterioração nos termos do comércio de matérias primas e o agravar-se da diferença entre países ricos e pobres levou o Magistério chamar a atenção para a importância dos critérios éticos que deveriam orientar as relações econômicas internacionais: a busca do bem comum e a destinação universal dos bens; a equidade nas relações comerciais; a atenção aos direitos e às necessidades dos mais pobres nas políticas comerciais e de cooperação internacional. Diversamente, os «pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos»[754].

365 Uma solidariedade adequada à era da globalização requer a defesa dos direitos humanos. A este propósito o Magistério assinala que não só «a perspectiva duma autoridade pública internacional ao serviço dos direitos humanos, da liberdade e da paz, não só não se realizou ainda inteiramente, mas há que registrar, infelizmente, a hesitação bastante freqüente da comunidade internacional no seu dever de respeitar e aplicar os direitos humanos. Este dever engloba todos os direitos fundamentais, não permitindo escolhas arbitrárias que conduziriam a formas reais de discriminação e de injustiça. Ao mesmo tempo, somos testemunhas dum fosso preocupante que se vai alargando entre uma série de novos “direitos” promovidos nas sociedades tecnologicamente avançadas e os direitos humanos elementares que ainda não são respeitados sobretudo em situações de subdesenvolvimento; penso, por exemplo, no direito à alimentação, à água potável, à casa, à autodeterminação e à independência»[755].

366 A extensão da globalização deve ser acompanhada por uma tomada de consciência mais madura por parte das organizações da sociedade civil, das novas tarefas às quais são chamadas em âmbito mundial. Também graças a uma ação incisiva da parte destas organizações será possível manter o atual processo de crescimento da economia e das finanças em escala planetária num horizonte que garanta um efetivo respeito dos direitos do homem e dos povos, bem como uma distribuição eqüitativa das riquezas, no interior de cada país e entre diferentes países: «A liberdade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências da justiça social»[756].

Particular atenção deve ser reservada às especificidades locais e às diversidades culturais, que correm o risco de serem comprometidas pelos processos econômico-financeiros em curso: «A globalização não pode constituir um novo tipo de colonialismo. Pelo contrário, deve respeitar a diversidade das culturas que, no âmbito da harmonia universal dos povos, são as chaves interpretativas da vida. De forma especial, não deve privar os pobres daquilo que lhes resta de mais precioso, inclusivamente os credos e as práticas religiosas, porque as convicções religiosas genuínas constituem a manifestação mais clarividente da liberdade humana»[757].

367 Na época da globalização se deve ressaltar com força a solidariedade entre as gerações: «No passado, a solidariedade entre as gerações constituía, em muitos países, uma atitude natural por parte da família; hoje, tornou-se também um dever da comunidade»[758]. È conveniente que tal solidariedade continue a ser perseguida nas comunidades políticas nacionais, mas hoje o problema se põe também para a comunidade política global, para que a mundialização não se realize em detrimento dos mais necessitados e dos mais fracos. A solidariedade entre as gerações requer que, na planificação global se aja de acordo com o princípio da destinação universal dos bens, que torna moralmente ilícito e economicamente contraproducente descarregar os custos atuais nas gerações vindouras: moralmente ilícito porque significa não assumir as devidas responsabilidades, economicamente contrapro­ducente porque a correção dos danos é mais dispendiosa do que a sua prevenção. Este princípio deve ser aplicado sobretudo — ainda que não apenas — no campo dos recursos da terra e da salvaguarda da criação, hoje particularmente delicado em virtude da globalização, que diz respeito a todo o planeta, entendido como um único ecossistema[759].

b) O sistema financeiro internacional

368 Os mercados financeiros não são certamente uma novidade da nossa época: já desde há muito tempo, por várias formas, eles cuidaram de responder à exigência de financiar atividades produtivas. A experiência histórica atesta que, na ausência de sistemas financeiros adequados, não teria havido crescimento econômico. Os investimentos em larga escala, típicos das modernas economias de mercado, não teriam sido possíveis sem o papel fundamental de intermediação exercido pelos mercados financeiros, que permitiu, entre outras coisas, apreciar as funções positivas da poupança para o desenvolvimento integral do sistema econômico e social. Se, por um lado, a criação daquilo que se tem definido como o «mercado global dos capitais» produziu efeitos benéficos, graças ao fato de que a maior mobilidade dos capitais consentiu às atividades produtivas alcançar mais facilmente a disponibilidade de recursos, por outro lado a maior mobilidade também aumentou o risco de crises financeiras. O desenvolvimento da atividade financeira, cujas transações superaram sobejamente, em volume, as transações reais, corre o risco de seguir uma lógica voltada sobre si mesma, sem conexão com a base real da economia.

369 Uma economia financeira, cujo fim é ela própria, está destinada a contradizer as suas finalidades, pois que se priva das próprias raízes e da própria razão constitutiva, ou seja, do seu papel originário e essencial de serviço à economia real e, ao fim e ao cabo, de desenvolvimento das pessoas e das comunidades humanas. O quadro completo manifesta-se ainda mais preocupante à luz da configuração fortemente assimétrica que caracteriza o sistema financeiro internacional: os processos de inovação e de desregulamentação dos mercados financeiros tendem, de fato, a consolidar-se somente em algumas partes do globo. Isto é fonte de graves preocupações de natureza ética, porque os países excluídos dos processos descritos, mesmo não gozando dos benefícios destes produtos, não estão entretanto protegidos de eventuais conseqüências negativas da instabilidade financeira sobre os seus sistemas econômicos reais, sobretudo se frágeis e com atraso no desenvolvimento[760].

A improvisa aceleração dos processos quais o enorme incremento no valor das carteiras administradas pelas instituições financeiras e o rápido proliferar de novos e sofisticados instrumentos financeiros torna deveras urgente divisar soluções institucionais capazes de favorecer eficazmente a estabilidade do sistema, sem reduzir-lhe as potencialidades e a eficiência. É indispensável introduzir um quadro normativo que consinta tutelar tal estabilidade em todas as suas complexas articulações, promover a concorrência entre os intermediários e assegurar a máxima transparência em benefício dos investidores.

c) O papel da comunidade internacional na época da economia global

370 A perda de centralidade por parte dos atores estatais deve coincidir com um maior empenho da comunidade no exercício de um decidido papel de orientação econômica e financeira. Uma importante conseqüência do processo de globalização consiste, com efeito, na gradual perda de eficácia do Estado nação na condução das dinâmicas econômico-financeiras nacionais. Os Governos de cada País vêem a própria ação em campo econômico e social sempre mais fortemente condicionada pelas expectativas dos mercados internacionais dos capitais e pelos sempre mais prementes pedidos de credibilidade provenientes do mundo financeiro. Por causa dos novos liames entre os operadores globais, as tradicionais medidas defensivas dos Estados parecem condenadas insucesso e, em face das novas áreas da competição, passa ao segundo plano a própria noção de mercado nacional.

371 Quanto mais o sistema econômico-financeiro mundial alcança níveis elevados de complexidade organizativa e funcional, tanto mais se impõe como prioritária a tarefa de regular tais processos, orientando-os à consecução do bem comum da família humana. Vem à tona concretamente a exigência de que, além dos Estados nacionais, seja a comunidade internacional a assumir esta delicada função, com instrumentos políticos e jurídicos adequados e eficazes.

É portanto indispensável que as instituições econômicas e financeiras internacionais saibam individuar as soluções institucionais mais apropriadas e elaborem as estratégias de ação mais oportunas com o escopo de orientar uma mudança que, fosse sofrida passivamente e abandonada a si mesma, provocaria êxitos dramáticos sobretudo em detrimento dos estratos mais fracos e indefesos da população mundial.

Nos organismos internacionais devem ser eqüitativamente representados os interesses da grande família humana; é necessário que estas instituições, «ao avaliarem as conseqüências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e países que têm escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento»[761].

372 Também a política, a par da economia, deve saber estender o próprio raio de ação para além dos confins nacionais, adquirindo rapidamente aquela dimensão operativa mundial que lhe pode consentir orientar os processos em curso à luz de parâmetros não só econômicos, mas também morais. O objetivo de fundo será o de guiar tais processos assegurando o respeito da dignidade do homem e o desenvolvimento completo da sua personalidade, no horizonte do bem comum[762]. A assunção de uma tal tarefa comporta a responsabilidade de acelerar a consolidação das instituições existentes assim como a criação de novos órgãos aos quais confiar tais responsabilidades[763]. O desenvolvimento econômico, efetivamente, pode ser duradouro somente na medida em que se desdobra no interior de um quadro claro e definido de normas e de um amplo projeto de crescimento moral, civil e cultural de toda a família humana.

d) Um desenvolvimento integral e solidário

373 Uma das tarefas fundamentais dos atores da economia internacional é a obtenção de um desenvolvimento integral e solidário para a humanidade, vale dizer, «promover todos os homens e o homem todo»[764]. Tal tarefa exige uma concepção da economia que garanta, no plano internacional, a distribuição eqüitativa dos recursos e responda à consciência da interdependência ? econômica, política e cultural ? que de agora em diante une definitivamente os povos entre eles e faz com que se sintam ligados a um único destino[765]. Os problemas sociais assumem cada vez mais uma dimensão planetária: a paz, a ecologia, a alimentação, a droga, as doenças. Estado algum já os enfrentar e resolver sozinho. As gerações atuais tocam com as mãos a necessidade da solidariedade e advertem concretamente a necessidade de superar a cultura individualista[766]. Nota-se sempre mais difusamente a exigência de modelos de desenvolvimento que prevejam não apenas «elevar todos os povos ao nível que hoje gozam somente os países mais ricos, mas de construir no trabalho solidário uma vida mais digna, fazer crescer efetivamente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de corresponder à própria vocação e, portanto, ao apelo de Deus »[767].

374 Um desenvolvimento mais humano e solidário favorecerá também aos próprios países mais ricos. Tais países «advertem com freqüência uma espécie de desorientação existencial, uma incapacidade de viver e de gozar retamente o sentido da vida, embora na abundância de bens materiais, uma alienação e perda da própria humanidade em muitas pessoas, que se sentem reduzidas ao papel de engrenagens no mecanismo da produção e do consumo e não encontram o modo de afirmar a própria dignidade de homens, feitos à imagem e semelhança de Deus»[768]. Os países ricos mostraram ter a capacidade de criar bem-estar material, mas, não raro, às custas do homem e das faixas sociais mais débeis: «não se pode ignorar que as fronteiras da riqueza e da pobreza passam pelo interior das próprias sociedades, quer desenvolvidas, quer em vias de desenvolvimento. De fato, assim como existem desigualdades sociais até aos extremos da miséria em países ricos, assim, em contraposição, nos países menos desenvolvidos também se vêem, não raro, manifestações de egoísmo e de ostentação de riqueza, tão desconcertantes quanto escandalosas»[769].

e) A necessidade de uma grande obra educativa e cultural

375 Para a doutrina social, a economia «é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa atividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema econômico, quanto no fato de que todo o sistema sócio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços»[770]. A vida do homem, a par da vida social da coletividade, não pode ser reduzida a uma dimensão materialística, ainda que os bens materiais sejam extremamente necessários quer para a mera sobrevivência, quer para o melhoramento do teor de vida: «aumentar o senso de Deus e o conhecimento de si mesmo é a base de todo desenvolvimento completo da sociedade humana»[771].

376 Em face do rápido andamento do progresso técnico-econômico e da mutabilidade, igualmente rápida, dos processos de produção e de consumo, o Magistério adverte a exigência de propor uma grande obra educativa e cultural: «O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica é, em si mesmo, legítimo; mas devemos sublinhar as novas responsabilidades e os perigos conexos com esta fase histórica… Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais… O sistema econômico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas»[772].

CAPÍTULO VIII – A COMUNIDADE POLÍTICA

I. ASPECTOS BÍBLICOS

a) O senhorio de Deus

377 O povo de Israel, na fase inicial da sua história, não tem reis, como os demais povos, porque reconhece tão-somente o senhorio de Iahweh. É Deus que intervém na história através de homens carismáticos, conforme testemunha o Livro dos Juízes. Ao último destes homens, Samuel, o povo pedirá um rei semelhante (cf. 1 Sam 8, 5; 10, 18-19). Samuel põe os Israelitas de sobreaviso acerca das conseqüências de um exercício despótico da realeza (cf. 1 Sam 8, 11-18); contudo, o poder régio pode ser experimentado como dom de Iahweh que como dom de Iahweh que vem em socorro de seu povo (cfr 1 Sam 9, 16). Finalmente, Saul receberá a unção real (cf. 1 Sam 10, 1-12). O episódio evidencia as tensões que levaram Israel a uma concepção de realeza diferente da dos povos vizinhos: o rei, escolhido por Iahweh (cf. Dt 17, 15: 1 Sam 9, 16) e por Ele consagrado (cf. 1 Sam 16, 12-13) será visto como Seu filho (cf. Sal 2, 7) e deverá tornar visível o senhorio e o desígnio de salvação (cf. Sal 72). Deverá ainda fazer-se defensor dos fracos e assegurar ao povo a justiça: as denúncias dos profetas apontarão precisamente para as inadimplências dos reis (cfr 1 Re 21; Am 2, 6-8; Mi 3, 1-4).

378 O protótipo de rei escolhido por Iahweh é Davi, cuja condição humilde o relato bíblico ressalta com complacência (cf. 1 Sam 16, 1-13). Davi é o depositário da promessa (cf. 2 Sam 7, 13 ss; Sal 89, 2-38; 132, 11-18), que o coloca na origem de uma tradição real, precisamente a tradição «messiânica», a qual não obstante todos os pecados e as infidelidades do mesmo Davi e de seus sucessores, culmina em Jesus Cristo, o «ungido de Iahweh» (isto é, «consagrado do Senhor» cf. 1 Sam 2, 35; 24, 7.11; 26, 9.16; Ex. 30, 22-32) por excelência, filho de Davi (cf. as duas genealogias em Mt 1, 1-17 e Lc 3, 23-38; ver também Rm 1, 3).

O fracasso, no plano histórico, da realeza não ocasionará o desaparecimento do ideal de um rei que, em fidelidade a Iahweh, governe com sabedoria e exerça a justiça. Esta esperança reaparece repetidas vezes nos Salmos (cf. Sal 2; 18; 20; 21; 72). Nos oráculos messiânicos é esperado, para um tempo escatológico, a figura de um rei dotado do Espírito do Senhor, pleno de sapiência e em condição de trazer justiça aos pobres (cf. Is 11, 2-5; Jr 23, 5-6). Verdadeiro pastor do povo de Israel (cf. Ez 34, 23-24; 37, 24) levará a paz aos povos (cf. Zc 9, 9-10). Na literatura sapiencial, o rei é apresentado como aquele que emite justos juízos e aborrece a iniqüidade (cf. Pr 16, 12), julga os pobres com equidade (cf. Pr 29, 14) e é amigo do homem de coração puro (cf. Pr 22, 11). Torna mais explícito o anúncio de tudo quanto os Evangelhos e os demais autores do Novo Testamento vêem realizado em Jesus de Nazaré, encarnação definitiva da figura do rei descrita no Antigo Testamento.

b) Jesus e a autoridade política

379 Jesus rejeita o poder opressivo e despótico dos grandes sobre nações (cf. Mc 10, 42) e suas pretensões de fazerem-se chamar benfeitores (cf. Lc 21, 25), mas nunca contesta diretamente as autoridades de seu tempo. Na diatribe sobre o tributo a ser pago a César (cf. Mc 12, 13-17; Mt 22, 15-22; Lc 20, 20-26), Ele afirma que se deve dar a Deus o que é de Deus, condenando implicitamente toda tentativa de divinizar e de absolutizar o poder temporal: somente Deus pode exigir tudo do homem. Ao mesmo tempo o poder temporal tem o direito àquilo que lhe é devido: Jesus não considera injusto o tributo a César.

Jesus, o Messias prometido, combateu e desbaratou a tentação de um messianismo político, caracterizado pelo domínio sobre as nações (cf. Mt 4, 8-11; Lc 4, 5-8). Ele é o Filho do Homem que veio «para servir e entregar a própria vida» (Mc 10, 45; cf. Mt 20, 24-28; Lc 22, 24-27). Aos discípulos que discutem sobre qual é o maior, Jesus ensina a fazer-se último e a servir a todos (cf. Mc 9, 33-35), indicando aos filhos de Zebedeu, Tiago e João, que ambicionam sentar-se à Sua direita, o caminho da cruz (cf. Mc 10, 35-40; Mt 20, 20-23).

c) As primeiras comunidades cristãs

380 A submissão, não passiva, mas por razões de consciência(Rm 13, 5) ao poder constituído corresponde à ordem estabelecida por Deus. São Paulo define as relações e os deveres dos cristãos para com as autoridades (cf. Rm 13, 1-7). Insiste no dever cívico de pagar os tributos: «Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito» (Rm 13, 7). O Apóstolo certamente não pretende legitimar todo poder, pretende antes ajudar os cristãos a «fazer o bem diante de todos os homens» (Rm 12, 7), também nas relações com a autoridade, na medida em que esta está ao serviço de Deus para o bem da pessoa (cf. Rm 13, 4; 1 Tm 2, 1-1; Tt 3, 1) e «para fazer justiça e exercer a ira contra aquele que pratica o mal» (Rm 13, 4).

São Pedro exorta os cristãos a submeter-se «a toda autoridade humana por amor a Deus» (1 Pe 2, 13). O rei e os seus governadores têm a função de «punir os malfeitores e premiar os bons» (cf. 1 Pe 2, 14). A sua autoridade deve ser «honrada», isto é, reconhecida, porque Deus exige um comportamento reto, que «emudeça a ignorância dos insensatos» (1 Pe 2, 15). A liberdade não pode ser usada para cobrir a própria malícia, mas para servir a Deus (cf. ibidem). Trata-se portanto de uma obediência livre e responsável a uma autoridade que faz respeitar a justiça, assegurando o bem comum.

381 A oração pelos governantes, recomendada por São Paulo durante as perseguições, indica explicitamente o que a autoridade política deve garantir: uma vida calma e tranqüila a transcorrer com toda a piedade e dignidade (cf. 1 Tm 2, 1-2). Os cristãos devem estar «prontos para qualquer boa obra» (Tt 3, 1), sabendo «dar provas de toda mansidão para com todos os homens» (Tt 3, 2), conscientes de ter sido salvos não pelas suas obras, mas pela misericórdia de Deus. Sem «o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido em profusão, por meio de Cristo, nosso Salvador» (Tt 3, 5-6), todos os homens são «insensatos, rebeldes, transviados, escravos de paixões de toda a espécie, vivendo na malícia e na inveja, detestáveis, odiando-nos uns aos outros» (Tt 3, 3). Não se deve esquecer a miséria da condição humana, marcada pelo pecado e resgatada pelo amor de Deus.

382 Quando o poder humano sai dos limites da vontade de Deus, se autodiviniza e exige submissão absoluta, torna-se a Besta do Apocalipse, imagem do poder imperial perseguidor, ébrio «do sangue dos santos e dos mártires de Jesus» (Ap. 17, 6). A Besta tem a seu serviço o «falso profeta» (Ap. 19, 20), que impele os homens a adorá-la com portentos que seduzem. Esta visão indica profeticamente todas as insídias usadas por Satanás para governar os homens, insinuando-se no seu espírito com a mentira. Mas Cristo é o Cordeiro Vencedor de todo poder que se absolutiza no curso da história humana. Em face de tais poderes, São João recomenda a resistência dos mártires: dessa maneira, os fiéis testemunham que o poder corrupto e satânico é vencido, porque já não tem ascendência alguma sobre eles.

383 A Igreja proclama que Cristo, vencedor da morte, reina sobre o universo que Ele mesmo resgatou. O Seu reino se estende a todo o tempo presente e terá fim somente quando tudo for entregue ao Pai e a história humana se consumar com o juízo final(cf. 1 Cor 15, 20-28). Cristo revela à autoridade humana, sempre tentada ao domínio, o seu significado autêntico e completo de serviço. Deus é o único Pai e Cristo o único mestre para todos os homens, que são irmãos. A soberania pertence a Deus. O Senhor, todavia, «não quis reter para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que esta é capaz de exercer, segundo as capacidades da própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O comportamento de Deus no governo do mundo, que demonstra tão grande consideração pela liberdade humana, deveria inspirar a sabedoria dos que governam as comunidades humanas. Estes devem comportar-se como ministros da providência divina»[773].

A mensagem bíblica inspira incessantemente o pensamento cristão sobre o poder político, recordando que esse tem sua origem em Deus e, como tal, é parte integrante da ordem por Ele criada. Tal ordem é percebida pelas consciências e se realiza na vida social mediante a verdade, a justiça e a solidariedade, que conduzem à paz[774].

II. O FUNDAMENTO E O FIM DA COMUNIDADE POLÍTICA

a) Comunidade política, pessoa humana e povo

384 A pessoa humana é fundamento e fim da convivência política[775]. Dotada de racionalidade, é responsável pelas próprias escolhas e capaz de perseguir projetos que dão sentido à sua vida, tanto no plano individual como no plano social. A abertura para a Transcendência e para os outros é o traço que a caracteriza e distingue: somente em relação com a Transcendência e com os outros a pessoa humana alcança a plena e completa realização de si. Isto significa que para o homem, criatura naturalmente social e política, «a vida social … não é qualquer coisa de acidental»[776], mas uma dimensão essencial e incancelável.

A comunidade política procede, portanto, da natureza das pessoas, cuja consciência «manifesta e obriga peremptoriamente a observar»[777] a ordem esculpida por Deus em todas as Suas criaturas: «uma ordem moral e religiosa, que, mais do que todos e quaisquer valores materiais, influi na direção e nas soluções que deve dar aos problemas da vida individual e comunitária, dentro das comunidades nacionais e nas relações entre estas»[778]. Tal ordem deve ser gradualmente descoberta e desenvolvida pela humanidade. A comunidade política, realidade conatural aos homens, existe para obter um fim comum, inatingível de outra forma: o crescimento em plenitude de cada um de seus membros, chamados a colaborar de modo estável para a realização do bem comum[779], sob o impulso da sua tensão natural para a verdade e para o bem.

385 A comunidade política tem na referência ao povo a sua autêntica dimensão: ela «é, e deve ser na realidade, a unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo»[780]. O povo não é uma multidão amorfa, uma massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada, mas sim um conjunto de pessoas, cada uma das quais ? «do próprio lugar e a seu modo»[781] ? tem a possibilidade de formar a própria opinião a respeito da coisa pública e a liberdade de exprimir a própria sensibilidade política e de fazê-la valer em maneira consoante com o bem comum. O povo «vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais …. é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções»[782]. Os que pertencem a uma comunidade política, mesmo sendo organicamente unidos entre si, conservam, não obstante, uma insuprimível autonomia no âmbito da existência pessoal e dos fins a perseguir.

386 O que, em primeiro lugar, caracteriza um povo é a partilha de vida e de valores, que é fonte de comunhão no âmbito espiritual e moral: «É que acima de tudo, … há de considerar-se a convivência humana como realidade eminentemente espiritual: como intercomunicação de conhecimentos à luz da verdade, exercício de direitos e cumprimento de deveres, incentivo e apelo aos bens morais, gozo comum do belo em todas as suas legítimas expressões, permanente disposição de fundir em tesouro comum o que de melhor cada qual possua, anelo de assimilação pessoal de valores espirituais. Valores esses, nos quais se vivifica e orienta tudo o que diz respeito à cultura, ao desenvolvimento econômico, às instituições sociais, aos movimentos e regimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos, através dos quais se articula e se exprime a convivência humana em incessante evolução»[783].

387 A cada povo corresponde em geral uma nação, mas, por razões diversas, nem sempre as fronteiras nacionais coincidem com os confins étnicos[784]. Aparece destarte a questão das minorias, que historicamente tem originado não poucos conflitos. O Magistério afirma que as minorias constituem grupos com direitos e deveres específicos. Em primeiro lugar, um grupo minoritário tem direito à sua própria existência: «Este direito pode ser desatendido de diversas maneiras, até aos casos extremos em que é negado, mediante formas manifestas ou indiretas de genocídio»[785]. Ademais, as minorias têm o direito de manter a sua cultura, incluindo a língua, bem como as suas convicções religiosas, incluindo a celebração do culto. Ao reivindicar legitimamente os próprios direitos, as minorias podem ser levadas a procurar uma maior autonomia ou até mesmo a independência: em tais delicadas circunstâncias, diálogo e negociação constituem o caminho para alcançar a paz. Em todo caso, o recurso ao terrorismo é injustificável e prejudicaria a causa que se pretende defender. As minorias em também deveres a cumprir, entre eles, antes de mais, a cooperação para o bem comum do Estado em que estão inseridas. Em particular, « um grupo minoritário tem o dever de promover a liberdade e a dignidade de cada um dos seus membros, e de respeitar as opções de cada indivíduo seu, mesmo quando alguém decidisse passar à cultura majoritária»[786].

b) Tutelar e promover os direitos humanos

388 Considerar a pessoa humana como fundamento e fim da comunidade política significa esforçar-se, antes de mais, pelo reconhecimento e pelo respeito da sua dignidade mediante a tutela e a promoção dos direitos fundamentais e inalienáveis do homem: « No tempo moderno, a atuação do bem comum encontra a sua indicação de fundo nos direitos e nos deveres da pessoa»[787]. Nos direitos humanos estão condensadas as principais exigências morais e jurídicas que devem presidir à construção da comunidade política. Tais direitos constituem uma norma objetiva que está na base do direito positivo e que não pode ser ignorada pela comunidade política, porque a pessoa lhe é ontológica e teleologicamente anterior: o direito positivo deve garantir a satisfação das exigências humanas fundamentais.

389. A comunidade política persegue o bem comum atuando com vista à criação de um ambiente humano em que aos cidadãos seja oferecida a possibilidade de um real exercício dos direitos humanos e de um pleno cumprimento dos respectivos deveres: «Atesta a experiência que, faltando por parte dos poderes públicos uma atuação apropriada com “respeito à economia, à administração pública, a instrução”, sobretudo nos tempos atuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever»[788].

A plena realização do bem comum requer que a comunidade política desenvolva, no âmbito dos direitos humanos, uma ação dúplice e complementar, de defesa e de promoção: «Evite-se que, através de preferências outorgadas a indivíduos ou grupos, se criem situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue a coarctá-los»[789].

c) A convivência baseada na amizade civil

390 O significado profundo da convivência civil e política não emerge imediatamente do elenco dos direitos e deveres da pessoa. Tal convivência só adquire todo o seu significado se for baseada na amizade civil e na fraternidade[790]. De fato, o campo do direito é o do interesse tutelado e do respeito exterior, da proteção dos bens materiais e da sua repartição de acordo com regras estabelecidas; o campo da amizade é, pelo contrário, o do desinteresse, do desprendimento dos bens materiais, da sua doação, da disponibilidade interior às exigências do outro[791]. A amizade civil[792], assim entendida, é a atuação mais autêntica do princípio de fraternidade, que é inseparável do de liberdade e de igualdade[793]. Trata-se de um princípio que permaneceu em grande parte não realizado nas sociedades políticas modernas e contemporâneas, sobretudo por causa da influência exercida pelas ideologias individualistas e coletivistas.

391 Uma comunidade é solidamente fundada quando tende para a promoção integral da pessoa e do bem comum: neste caso, o direito é definido, respeitado e vivido também de acordo com as modalidades da solidariedade e da dedicação ao próximo. A justiça exige que cada um possa gozar dos próprios bens e dos próprios direitos e pode ser considerada como a medida mínima do amor[794]. A convivência torna-se tanto mais humana quanto mais é caracterizada pelo esforço em prol de uma consciência mais madura do ideal para o qual deve tender, a saber, a «civilização do Amor»[795].

O homem é uma pessoa, não só um indivíduo[796]. O termo «pessoa» indica uma «natureza dotada de inteligência e vontade livre»[797]: é portanto uma realidade bem superior à de um sujeito que se exprime nas necessidades produzidas pela mera dimensão material. Com efeito, a pessoa humana, mesmo participando ativamente na obra que tem por objetivo a satisfação das necessidades no seio da sociedade familiar, civil e política, não encontra a sua realização completa enquanto não supera a lógica da necessidade para projetar-se na lógica da gratuidade e do dom, a qual corresponde mais plenamente à sua essência e à sua vocação comunitária.

392 O preceito evangélico da caridade ilumina os cristãos sobre o significado mais profundo da convivência política. Para torná-la verdadeiramente humana, «nada existe de mais importante que desenvolver o sentimento íntimo da justiça, da bondade, a dedicação ao bem comum e tornar mais sólidas as convicções fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade política e também acerca do reto exercício e dos limites da autoridade pública»[798]. O objetivo que os fiéis se devem propor é o da realização de relações comunitárias entre as pessoas. A visão cristã da sociedade política confere o maior relevo ao valor da comunidade, seja como modelo organizativo da convivência, seja como estilo de vida quotidiana.

III. A AUTORIDADE POLÍTICA

a) O fundamento da autoridade política

393 A Igreja tem se confrontado com diversas concepções de autoridade, tendo sempre o cuidado de defender e propor um modelo fundado na natureza social das pessoas: «Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode “subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus”»[799]. A autoridade política é, portanto, necessária[800]em função das tarefas que lhe são atribuídas e deve ser uma componente positiva e insubstituível da convivência civil[801].

394 A autoridade política deve garantir a vida ordenada e reta da comunidade, sem tomar o lugar da livre atividade dos indivíduos e dos grupos, mas disciplinando-a e orientando-a, no respeito e na tutela da independência dos sujeitos individuais e sociais, para a realização do bem comum. A autoridade política é o instrumento de coordenação e direção mediante o qual os indivíduos e os corpos intermédios se devem orientar para uma ordem cujas relações, instituições e procedimentos estejam ao serviço do crescimento humano integral. O exercício da autoridade política, com efeito, «quer no interior da comunidade como tal, quer nos organismos que representam o Estado, deve desenrolar-se sempre dentro dos limites da ordem moral, em vistas do bem comum ? considerado dinamicamente ? segundo a ordem jurídica legitimamente instituída ou a instituir. Então, os cidadãos estão obrigados em consciência a obedecer»[802].

395 O sujeito da autoridade política é o povo considerado na sua totalidade como detentor da soberania. O povo, de modos diferentes, transfere o exercício da sua soberania para aqueles que elege livremente como seus representantes, mas conserva a faculdade de a fazer valer no controlo da atuação dos governantes e também na sua substituição, caso não cumpram de modo satisfatório as suas funções. Se bem que este seja um direito válido em qualquer Estado e em qualquer regime político, o sistema da democracia, graças aos seus procedimentos de controlo, consente e garante uma melhor realização do direito sobredito[803]. No entanto, o mero consenso popular não é suficiente para que as modalidades de exercício da autoridade política sejam consideradas justas.

b) A autoridade como força moral

396 A autoridade, pois, deve deixar-se guiar pela lei moral: toda a sua dignidade deriva do desenrolar-se no âmbito da ordem moral[804], «a qual tem a Deus como princípio e fim»[805]. Em razão da necessária referência à ordem moral, que a precede e funda, das suas finalidades e dos destinatários, a autoridade não pode ser entendida como uma força que encontra a sua norma em valores de caráter puramente sociológico e histórico: «Algumas, infelizmente, não reconhecem a existência da ordem moral: ordem transcendente, universal e absoluta, de igual valor para todos. Deste modo impossibilitam-se o contato e o entendimento pleno e confiado, à luz de uma mesma lei de justiça, por todos admitida e observada»[806]. Esta ordem «não pode existir sem Deus: separada dele, desintegra-se»[807]. É precisamente desta ordem que a autoridade obtém a virtude de obrigar[808] e a própria legitimidade moral[809]; não do arbítrio ou da vontade de poder[810], e está obrigada a traduzir tal ordem nas ações concretas para alcançar o bem comum[811].

397 A autoridade deve reconhecer, respeitar e promover os valores humanos e morais essenciais. Estes são inatos, «derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir»[812]. Estes não encontram fundamento nas «maiorias» de opinião provisórias e mutáveis, mas devem ser simplesmente reconhecidos, respeitados e promovidos como elementos de uma lei moral objetiva, lei natural inscrita no coração do homem (cf. Rm 2,15), e ponto de referência normativo da mesma lei civil[813]. Quando por um trágico obscurecimento da consciência coletiva, o ceticismo chegasse a por em dúvida os princípios fundamentais da lei moral[814], o próprio ordenamento estatal e contrapostos seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação pragmática dos diversos e contrapostos interesses[815].

398 A autoridade deve exarar leis justas, isto é, em conformidade com a dignidade da pessoa humana e com os ditames da reta razão: «A lei humana é tem valor de lei enquanto é conforme com a reta razão, e isso põe de manifesto que deriva da lei eterna. Quando, pelo contrário, uma lei se afasta da razão, se diz lei iníqua; neste caso, deixa de ser lei e se torna bem mais um ato de violência»[816]. A autoridade que comanda segundo razão coloca o cidadão em relação, não tanto de sujeição a um outro homem, mas antes de obediência à ordem moral e, portanto, a Deus mesmo que é a sua fonte última[817]. Quem nega obediência à autoridade que age segundo a ordem moral «opõe-se à ordem estabelecida por Deus» (Rm 13, 1-2)[818]. Analogamente a autoridade pública, que tem o seu fundamento na natureza humana e pertence à ordem preestabelecida por Deus[819], caso não se esforce por realizar o bem comum, desatende o seu fim próprio e por isso mesmo se deslegitima.

c) O direito à objeção de consciência

399 O cidadão não está obrigado em consciência a seguir as prescrições das autoridades civis se forem contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho[820]. As leis injustas põem os homens moralmente retos frente a dramáticos problemas de consciência: quanto são chamados a colaborar em ações moralmente más, têm a obrigação de recusar-se[821]. Além de ser um dever moral, esta recusa é também um direito humano basilar que, precisamente porque tal, a própria lei civil deve reconhecer e proteger: « Quem recorre à objeção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, econômico e profissional»[822].

É um grave dever de consciência não prestar colaboração, nem mesmo formal, àquelas práticas que, embora admitidas pela legislação civil, contrastam com a lei de Deus. Tal colaboração, com efeito, nunca pode ser justificada, nem invocando o respeito da liberdade alheia, nem se apoiando no fato de que a lei civil a prevê e exige. À responsabilidade moral pelos atos efetuados ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre esta responsabilidade cada qual será julgado pelo próprio Deus (Rm 2, 6; 14, 12).

d) O direito de resistir

400 Reconhecer que o direito natural funda e limita o direito positivo significa admitir que é legítimo resistir à autoridade caso esta viole grave e repetidamente os princípios do direito natural. Santo Tomás de Aquino escreve que «se deve obedecer (…) na medida em que a ordem da justiça assim o exija»[823]. Portanto, o fundamento do direito de resistência é direito de natureza.

Diversas podem ser as manifestações concretas que a realização de tal direito pode assumir. Vários podem ser também os fins perseguidos. A resistência à autoridade visa reafirmar a validade de uma diferente visão das coisas, quer quando se procura obter uma mudança parcial, modificando por exemplo algumas leis, quer quando se pugna por uma mudança radical da situação.

401 A doutrina social indica os critérios para o exercício da resistência: «A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, salvo quando se ocorrerem conjuntamente as seguintes condições: 1. em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; 2. depois de ter esgotado todos os outros recursos; 3. sem provocar desordens piores; 4. que haja uma esperança fundada de êxito; 5. se for impossível prever razoavelmente soluções melhores»[824]. A luta armada é contemplada como extremo remédio para pôr fim a uma «tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país»[825]. A gravidade dos perigos que o recurso à violência hoje comporta leva a considerar preferível o caminho da resistência passiva, «mais conforme aos princípios morais e não menos prometedor do êxito»[826].

e) Infligir as penas

402 Para tutelar o bem comum, a legítima autoridade pública deve exercitar o direito e o dever de infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos[827]. O Estado tem pois o dúplice dever de reprimir os comportamentos lesivos dos direitos do homem e das regras fundamentais de uma convivência civil, assim como de reparar, mediante o sistema das penas, a desordem causada pela ação delituosa. No Estado de direito, o poder de infligir as penas é corretamente confiado à Magistratura: «As Constituições dos Estados modernos, ao definirem as relações que devem existir entre o poder legislativo, o executivo e o judiciário, garantem a este último a necessaria independência no âmbito da lei»[828].

403 A pena não serve unicamente para o fim de defender a ordem pública e de garantir a segurança das pessoas; esta torna-se, outrossim, um instrumento de correção do culpado, um correção que assume também o valor moral de expiação quando o culpado aceita voluntariamente a sua pena[829]. A finalidade à qual tender, é dúplice: de um lado favorecer a reinserção das pessoas condenadas; de outro lado promover uma justiça reconciliadora, capaz de restaurar as relações de convivência harmoniosa quebrantadas pelo ato criminoso.

A este propósito, é importante a atividade que os capelães dos cárceres são chamados a desenvolver, não só sob o aspecto especificamente religioso, como também em defesa da dignidade das pessoas detidas. Lamentavelmente, as condições em que cumprem a pena não favorecem sempre o respeito pela sua dignidade; não raro as prisões se tornam até mesmo teatro de novos crimes. Contudo, o ambiente dos institutos penais oferece um terreno privilegiado onde testemunhar, uma vez mais, a solicitude cristã no campo social: «estava na prisão e viestes ver-me» (Mt 25, 35-36).

404 A atividade dos ofícios encarregados do acertamento da responsabilidade penal, que é sempre de caráter pessoal, deve tender à rigorosa busca da verdade e deve ser conduzida no pleno respeito dos direitos da pessoa humana: trata-se de assegurar os direitos do culpado como os do inocente. Sempre se deve ter presente o princípio jurídico geral pelo qual não se pode cominar uma pena sem que antes se tenha provado o delito.

No curso das investigações deve ser escrupulosamente observada a regra que interdita a prática da tortura: «O discípulo de Cristo rejeita todo recurso a tais meios, de modo algum justificável e no qual a dignidade do homem é aviltada tanto naquele que é espancado quanto no seu algoz»[830]. Os instrumentos jurídicos internacionais referentes asos direitos do homem indicam justamente a proibição da tortura como um princípio que em circunstância alguma se pode derrogar.

Há de ser, outrossim, excluído: « o recurso a uma detenção motivada apenas pela tentativa de obter notícias significativas para o processo»[831]. Ademais, deve ser assegurada «a rapidez dos processos: uma sua excessiva duração torna-se intolerável para os cidadãos e acaba por se traduzir em uma verdadeira e própria injustiça»[832].

Os magistrados estão obrigados à devida reserva no desenrolar das suas diligências para não violar o direito dos inquiridos e para não debilitar o princípio da presunção de inocência. Dado que um juiz também esta sujeito a errar, é oportuno que a legislação determine uma côngrua indenização para a vítima de um erro judiciário.

405 A Igreja vê como sinal de esperança «a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte — mesmo vista só como instrumento de “legítima defesa” social—, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir»[833]. Embora o ensiamento tradicional da Igreja não exclua ? uma vez comprovadas cabalmente a identidade e da responsabilidade do culpado ? a pena de morte «se esta for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto»[834], os métodos não cruentos de repressão e de punição são de preferir «porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana»[835]. O crescente número de países que adotam medidas para abolir a pena de morte ou para suspender sua aplicação é também uma prova do fato de que os casos em que os casos em que é absolutamente necessário suprimir o réu «são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes»[836]. A crescente aversão da opinião pública à pena de morte e às várias medidas em vista da sua abolição ou da suspensão da sua aplicação, constituem manifestações visíveis de uma maior sensibilidade moral.

IV. O SISTEMA DA BUROCRACIA

406 Um juízo explícito e articulado sobre a democracia se encontra na Encíclica «Centesimus annus»: «A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objetivos ideológicos. Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da “subjetividade” da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e co-responsabilidade»[837].

a) Os valores e a democracia

407 Uma autêntica democracia não é o somente o resultado de um respeito formal de regras, mas é o fruto da convicta aceitação dos valores que inspiram os procedimentos democráticos: a dignidade da pessoa humana, o respeito dos direitos do homem, do fato de assumir o « bem comum » como fim e critério regulador da vida política. Se não há um consenso geral sobre tais valores, se perde o significado da democracia e se compromete a sua estabilidade.

A doutrina social individua um dos riscos maiores para as atuais democracias no relativismo ético, que induz a considerar inexistente um critério objetivo e universal para estabelecer o fundamento e a correta hierarquia dos valores: «Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idôneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as idéias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra»[838]. A democracia é fundamentalmente «um “ordenamento” e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu caráter « moral » não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa»[839].

b) Instituições e democracia

408 O Magistério reconhece a validade do princípio concernente à divisão dos poderes em um Estado:«é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do “Estado de direito”, no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens»[840].

No sistema democrático, a autoridade política é responsável diante do povo. Os organismos representativos devem estar submetidos a um efetivo controle por parte do corpo social. Este controle é possível antes de tudo através de eleições livres, que permitem a escolha assim como a substituição dos representantes. A obrigação, por parte dos eleitos, de prestar contas acerca da sua atuação, garantida pelo respeito dos prazos do mandato eleitoral, é elemento constitutivo da representação democrática.

409 No seu campo específico (elaboração de leis, atividade de governo e controle sobre a mesma), os eleitos devem empenhar-se na busca e na realização de tudo aquilo que possa favorecer ao bom andamento da convivência civil no seu conjunto[841]. A obrigação que os governantes têm de responder aos governados não implica de modo algum que os representantes sejam simples agentes passivos dos eleitores. O controle exercido pelos cidadãos, de fato, não exclui a necessária liberdade de que devem gozar no cumprimento de seu mandato em relação aos objetivos a perseguir: estes não dependem exclusivamente de interesses de parte, mas em medida muito maior da função de síntese e de mediação em vista do bem comum, que constitui uma das finalidades essenciais e irrenunciáveis da autoridade política.

c) Os componentes morais da representação política

410 Aqueles que têm responsabilidades políticas não devem esquecer ou subestimar a dimensão moral da representação, que consiste no empenho de compartilhar a sorte do povo e em buscar a solução dos problemas sociais. Nesta perspectiva, autoridade responsável significa também autoridade exercida mediante o recurso às virtudes que favorecem o exercício do poder com espírito de serviço[842] (paciência, caridade, modestia, moderação, esforço de partilha); uma autoridade exercida por pessoas capazes de assumir autenticamente como finalidade do próprio agir o bem comum e não o prestígio ou a aquisição de vantagens pessoais.

411 Entre as deformações do sistema democrático, a corrupção política é uma das mais graves[843] porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social; compromete o correto funcionamento do Estado, influindo negativamente na relação entre governantes e governados; introduzindo uma crescente desconfiança em relação à política e aos seus representantes, com o conseqüente enfraquecimento das instituições. A corrupção política distorce na raiz a função das instituições representativas, porque as usa como terreno de barganha política entre solicitações clientelares e favores dos governantes. Deste modo, as opções políticas favorecem os objetivos restritos de quantos possuem os meios para influenciá-las e impedem a realização do bem comum de todos os cidadãos.

412 A administração pública, em qualquer nível — nacional, regional, municipal —, como instrumento do Estado, tem por finalidade servir os cidadãos: «Posto ao serviço dos cidadãos, o Estado é o gestor dos bens do povo, que deve administrar tendo em vista o bem comum»[844]. Contrasta com esta perspectiva o excesso de burocratização, que se verifica quando «as instituições, ao tornarem-se complexas na organização e pretendendo gerir todos os espaços disponíveis, acabam por se esvaziar devido ao funcionalismo impessoal, à burocracia exagerada, aos interesses privados injustos e ao desinteresse fácil e generalizado»[845]. O papel de quem trabalha na administração pública não se deve conceber como algo de impessoal e de burocrático, mas como uma ajuda pressurosa para os cidadãos, desempenhado com espírito de serviço.

d) Instrumentos de participação política

413 Os partidos políticos têm a função de favorecer uma participação difusa e o acesso de todos às responsabilidades públicas. Os partidos são chamados a interpretar as aspirações da sociedade civil orientando-as para o bem comum[846], oferecendo aos cidadãos a possibilidade efetiva de concorrer para a formação das opções políticas. Os partidos devem ser democráticos no seu interior, capazes de síntese política e de formulação de projetos.

Um outro instrumento de participação política é o referendum, em que se realiza uma forma direta de acesso às escolhas políticas. O instituto da representação, de fato, não exclui que os cidadãos possam ser interpelados diretamente em vista das escolhas de maior relevo da vida social.

e) Informação e democracia

414 A Informação está entre os principais instrumentos de participação democrática. Não é pensável participação alguma sem o conhecimento dos problemas da comunidade política, dos dados de fato e das várias propostas de solução dos problemas. É necessário assegurar um real pluralismo neste delicado âmbito da vida social, garantindo uma multiplicidade de formas e de instrumentos no campo da informação e da comunicação, facilitando também condições de igualdade na posse e no uso de tais instrumentos mediante leis apropriadas. Entre os obstáculos que se opõem à realização plena do direito à objetividade da informação[847], merece especial atenção o fenômeno das concentrações editoriais e televisivas, com perigosos efeitos para o inteiro sistema democrático quando a tal fenômeno correspondem liames cada vez mais estreitos entre a atividade governativa, os poderes financeiros e a informação.

415 Os meios de comunicação social devem ser utilizados para edificar e apoiar a comunidade humana, nos vários setores, economico, politico, cultural, educativo, religioso[848]: «A informação dos meios de comunicação social está a serviço do bem comum. A sociedade tem direito a uma informação fundada sobre a verdade, a liberdade, a justiça e a solidariedade»[849].

A questão essencial concernente ao atual sistema informativo é se ele contribui a tornar a pessoa humana verdadeiramente melhor, isto é, espiritualmente mais madura, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberta aos outros, sobretudo aos mais necessitados e aos mais pobres. Um outro aspecto de grande importância é a necessidade de que as novas tecnologias respeitem as legítimas diferenças culturais.

416 No mondo dos meios de comunicação social as dificuldades intrínsecas da comunicação não raro são agigantadas pela ideologia, pelo desejo de lucro e de controle político, por rivalidades e conflitos entre grupos, e por outros males sociais. Os valores e os princípios morais valem também para o setor das comunicações sociais: «A dimensão ética está relacionada não só ao conteúdo da comunicação (a mensagem) e o processo de comunicação (o modo de comunicar), mas nas questões fundamentais das estruturas e sistemas, que com freqüência incluem grandes problemas de política que dependem da distribuição de tecnologia e produtos sofisticados (quem serão os ricos de informação e os pobres de informação?) »[850].

Em todas as três áreas ?da mensagem, do processo, das questões estruturais ?é sempre válido um princípio moral fundamental: a pessoa e a comunidade humana são o fim e a medida do uso dos meios de comunicação social. Um segundo princípio é complementar ao primeiro: o bem das pessoas não pode realizar-se independentemente do bem comum das comunidades a que pertencem[851]. É necessária uma participação no processo decisório referente à política das comunicações. Tal participação, de forma pública, deve ser autenticamente representativa e não voltada a favorecer grupos particulares, quando os meios de comunicação perseguem fins lucrativos[852].

V. A COMUNIDADE POLÍTICA A SERVIÇO DA COMUNIDADE CIVIL

a) O valor da comunidade civil

417 A comunidade política é constituída para estar ao serviço da sociedade civil, da qual deriva. Para a distinção entre comunidade política e sociedade civil, a Igreja contribuiu sobretudo com sua visão do homem, entendido como ser autônomo, relacional, aberto à Transcendência, contrastada quer pelas ideologias políticas de caráter individualista, quer pelas ideologias totalitárias tendentes a absorver a sociedade civil na esfera do Estado. O empenho da Igreja em favor do pluralismo social visa a conseguir uma realização mais adequada do bem comum e da própria democracia, segundo os princípios da solidariedade, da subsidiariedade e da justiça.

A sociedade civil é um conjunto de realizações e de recursos culturais e associativos, relativamente autônomos em relação ao âmbito tanto político como econômico: «O fim da sociedade civil é universal, porque é aquele que diz respeito ao bem comum, al qual todos e cada um dos cidadãos têm direita na devida proporção»[853]. Esta caracteriza-se pela própria capacidade de projeto, orientada a favorecer uma convivência social mais livre e mais justa, em que vários grupos de cidadãos, mobilizando-se para elaborar e exprimir as próprias orientações, para fazer frente às suas necessidades fundamentais, para defender legítimos interesses.

b) O primado da comunidade civil

418 A comunidade política e a sociedade civil, embora reciprocamente coligadas e interdependentes, não são iguais na hierarquia dos fins. A comunidade política está essencialmente ao serviço da sociedade civil e, em última análise, das pessoas e dos grupos que a compõem[854]. A sociedade civil, portanto, não pode ser considerada um apêndice ou uma variável da comunidade política: antes, ela tem a preeminência, porque justifica radicalmente a existência da comunidade política.

O Estado deve fornecer um quadro jurídico adequado ao livre exercício das atividades dos sujeitos sociais e estar pronto a intervir, sempre que for necessário, e respeitando o princípio de subsidiariedade, para orientar para o bem comum a dialética entre as livres associações ativas na vida democrática. A sociedade civil é heterogênea e articulada, não desprovida de ambigüidades e de contradições: é também lugar de embate entre interesses diversos, com o risco de que o mais forte prevaleça sobre o mais indefeso.

c) A aplicação do princípio de subsidiariedade

419 A comunidade política está obrigada regular as próprias relações com comunidade civil de acordo com o princípio de subsidiariedade[855]: é essencial que o crescimento da vida democrática tenha início no tecido social. As atividades da sociedade civil ? sobretudo voluntariado e cooperação no âmbito do privado-social, sinteticamente definido como «setor terciário » para distingui-lo dos âmbitos do Estado e do mercado ? constituem as modalidades mais adequadas para desenvolver a dimensão social da pessoa, que em tais atividades pode encontrar espaço para exprimir-se plenamente. A progressiva expansão das iniciativas sociais fora da esfera estatal cria novos espaços para a presença ativa e para a ação direta dos cidadãos, integrando as funções atuadas pelo Estado. Tal importante fenômeno tem sido freqüentemente atuado por caminhos e com instrumentos largamente informais, dando vida a modalidades novas e positivas de exercício dos direitos da pessoa, que enriquecem qualitativamente a vida democrática.

420 A cooperação, mesmo nas suas formas menos estruturadas, delineia-se como uma das respostas mais fortes à lógica do conflito e da concorrência sem limites, que hoje se revela prevalente. As relações que se instauram num clima cooperativo e solidário superam as divisões ideológicas, estimulando a busca daquilo que une para além daquilo que divide.

Muitas experiências de voluntariado constituem um ulterior exemplo de grande valor, que leva a considerar a sociedade civil como lugar onde é sempre possível a recomposição de uma ética pública centrada na solidariedade, na colaboração concreta, no diálogo fraterno. Em face das potencialidades que assim se manifestam, os católicos são chamados a olhar com confiança e a oferecer própria obra pessoal para o bem da comunidade em geral e, em particular, para o bem dos mais fracos e dos mais necessitados. É também dessa forma que se afirma o princípio da «subjetividade da sociedade»[856].

VI. O ESTADO E AS COMUNIDADES RELIGIOSAS

A) A LIBERDADE RELIGIOSA, UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

421 O Concílio Vaticano II empenhou da Igreja Católica na promoção da liberdade religiosa. A Declaração «Dignitatis humanae» precisa, no subtítulo, que entende proclamar «o direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil, em matéria religiosa». Para que tal liberdade querida por Deus e inscrita na natureza humana possa ser exercitada, não deve ser obstaculizada, dado que «a verdade não se impõe de outro modo senão pela força dessa mesma verdade»[857]. A dignidade da pessoa e a mesma natureza da busca de Deus exigem que todos os homens gozem de imunidade de toda coação no campo religioso[858]. A sociedade e o Estado não devem forçar uma pessoa a agir contra a sua consciência, nem impedi-la de proceder de acordo com ela[859]. A liberdade religiosa, porém, não é licença moral de aderir ao erro, nem um implícito direito ao erro[860].

422 A liberdade de consciência e de religião «diz respeito ao homem individual e socialmente»[861]: o direito à liberdade religiosa deve ser reconhecido no ordenamento jurídico e sancionado como direito civil[862], todavia, não é em si um direito ilimitado. Os justos limites ao exercício da liberdade religiosa devem ser determinados para cada situação social com a prudência política, segundo as exigências do bem comum, e ratificados pela autoridade civil mediante normas jurídicas conformes à ordem moral objetiva: tais normas são exigidas «pela tutela eficaz e pacífica harmonia dos direitos de todos os cidadãos; pelo suficiente zelo pela honesta paz pública, que é a ordenada convivência na verdadeira justiça; e pela devida salvaguarda da moralidade pública»[863].

423 Em consideração dos seus liames históricos e culturais com uma nação, uma comunidade religiosa pode receber um especial reconhecimento por parte do estado: mas um tal reconhecimento jurídico não deve, de modo algum, gerar uma discriminação de ordem civil ou social para outros grupos religiosos[864]. A visão das relações entre os Estados e as organizações religiosas, promovida pelo Concílio Vaticano II, corresponde às exigências do Estado de direito e às normas do direito internacional[865]. A Igreja é bem consciente de que tal visão não é aceite por todos: o direito à liberdade religiosa, infelizmente, «é violado por numerosos Estados, até ao ponto que dar, ou fazer dar, ou receber a catequese passa a ser um delito passível de sanção»[866].

B) IGREJA CATÓLICA E COMUNIDADE POLÍTICA

a) Autonomia e independência

424 A Igreja e a comunidade política, embora exprimindo-se ambas com estruturas organizativas visíveis, são de natureza diversa quer pela sua configuração, quer pela finalidade que perseguem. O Concílio Vaticano II reafirmou solenemente: «No terreno que lhe é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas»[867]. A Igreja organiza-se com formas aptas a satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis, ao passo que as diversas comunidades políticas geram relações e instituições ao serviço de tudo o que se compreende no bem comum temporal. A autonomia e a independência das duas realidades mostram-se claramente, sobretudo na ordem dos fins.

O dever de respeitar a liberdade religiosa impõe à comunidade política garantir à Igreja o espaço de ação necessário. A Igreja, por outro lado, não tem um campo de competência específica no que respeita à estrutura da comunidade política: «A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional»[868] e tampouco é tarefa da Igreja entrar no mérito dos programas políticos, a não ser por eventuais conseqüências religiosas ou morais.

b) Colaboração

425 A autonomia recíproca da Igreja e da comunidade política não comporta uma separação tal que exclua a colaboração entre elas: ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. A Igreja e a comunidade política, com efeito, se exprimem em formas organizativas que não estão serviço delas próprias, mas ao serviço do homem, para consentir-lhe o pleno exercício dos seus direitos, inerentes à sua identidade de cidadão e de cristão, e um correto cumprimento dos correspondentes deveres. A Igreja e a comunidade política podem desempenhar «tanto mais eficazmente este serviço para o bem de todos quanto mais cultivarem entre si uma sã colaboração, tendo em conta as circunstâncias de lugar e de tempo»[869].

426 A Igreja tem o direito ao reconhecimento jurídico da própria identidade. Precisamente porque a sua missão abraça toda a realidade humana, a Igreja, sentindo-se «real e intimamente solidária do gênero humano e da sua história»[870], reivindica a liberdade de exprimir o seu juízo moral sobre tal realidade, todas as vezes que a defesa dos direitos fundamentais da pessoa ou da salvação das almas assim o exigirem[871].

A Igreja, portanto, pede: liberdade de expressão, de ensino, de evangelização; liberdade de manifestar o culto em público; liberdade de organizar-se e ter regulamentos internos próprios; liberdade de escolha, de educação, de nomeação e transferência dos próprios ministros; liberdade de construir edifícios religiosos; liberdade de adquirir e de possuir bens adequados à própria atividade; liberdade de associar-se para fins não só religiosos, mas também educativos, culturais, sanitários e caritativos[872].

427 Para prevenir ou apaziguar os possíveis conflitos entre a Igreja e a comunidade política, a experiência jurídica da Igreja e do Estado tem delineado formas estáveis de acordos e instrumentos aptos a garantir relações harmoniosas. Tal experiência é um ponto de referência essencial para todos os casos em que o Estado tenha a pretensão de invadir o campo de ação da Igreja, criando obstáculos para a sua livre atividade até mesmo perseguindo-a abertamente ou, vice-versa, nos casos em que organizações eclesiais não ajam corretamente em relação ao Estado.

CAPÍTULO IX – A COMUNIDADE INTERNACIONAL

I. ASPECTOS BÍBLICOS

a) A unidade da família humana

428 Os relatos bíblicos sobre as origens demonstram a unidade do gênero humano e ensinam que o Deus de Israel é o Senhor da história e do cosmos: a Sua ação abraça todo o mundo e a família humana inteira, à qual é destinada a obra da criação. A decisão de Deus de fazer o homem à Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27) confere à criatura humana uma dignidade única, que se estende a todas as gerações (cf. Gn 5) e sobre toda a terra (cf. Gn 10). O Livro do Gênesis mostra, além disso, que o ser humano não foi criado isolado, mas no seio de um contexto do qual fazem parte integral, o espaço vital que lhe assegura a liberdade (o jardim), a disponibilidade de alimentos (as árvores do jardim), o trabalho (o mandato para cultivar) e sobretudo a comunidade (o dom de um colaborador semelhante a ele) (cf. Gn 2,8-24). As condições que asseguram plenitude à vida humana são, em todo o Antigo Testamento, objeto da bênção divina. Deus quer garantir ao homem os bens necessários para o seu crescimento, a possibilidade de expressar-se livremente, o resultado positivo do trabalho, a riqueza de relações entre seres semelhantes.

429 A aliança de Deus com Noé (cf. Gn 9,1-17), e nele com toda a humanidade, após a destruição causada pelo dilúvio, manifesta que Deus quer manter para a comunidade humana a bênção de fecundidade, a tarefa de dominar a criação e a absoluta dignidade e intangibilidade da vida humana que caracterizaram a primeira criação, não obstante nela se tenha introduzido, com o pecado, a degeneração da violência e da injustiça, punida com o dilúvio. O Livro do Gênesis apresenta com admiração a variedade dos povos, obra da ação criadora de Deus (cf. Gn 10,1-32) e, simultaneamente, estigmatiza a não aceitação por parte do homem da sua condição de criatura, com o episódio da torre de Babel (cf. Gn 11,1-9). Todos os povos, no plano divino, tinham «uma só língua e … as mesmas palavras» (Gn 11,1), mas os homens se dividem, voltando as costas ao Criador (cf. Gn 11,4).

430 A aliança estabelecida por Deus com Abraão, eleito «pai de uma multidão de povos» (Gn 17,4), abre o caminho para reunião da família humana ao seu Criador. A história salvífica induz o povo de Israel a pensar que a ação divina seja restrita à sua terra, todavia se consolida pouco a pouco a convicção de que Deus opera também entre outras nações (cf. Is 19,18-25). Os Profetas anunciarão para um tempo escatológico a peregrinação de todos os povos ao templo do Senhor e uma era de paz entre as nações (cf. Is 2,2-5; 66,18-23). Israel, disperso no exílio, tomará definitivamente consciência de seu papel de testemunha do único Deus (cf. Is 44,6-8), Senhor do mundo e da história dos povos (cf. Is 44,24-28).

b) Jesus Cristo protótipo e fundamento da nova humanidade

431 O Senhor Jesus é o protótipo e o fundamento da nova humanidade. N´Ele, verdadeira «imagem de Deus» (2 Cor 4,4), o homem, criado por Deus a Sua imagem e a Sua semelhança, encontra sua realização. No testemunho definitivo de amor que Deus manifestou na cruz de Cristo, todas as barreiras de inimizade já foram derrubadas (cf. Ef 2,12-18) e para quantos vivem a vida nova em Cristo as diferenças raciais e culturais não são mais motivo de divisão (cf. Rm 10,12; Gal 3,26-28; Col 3,11).

Graças ao Espírito, a Igreja conhece o desígnio divino que abrange todo o gênero humano (cf. At 17,26) e que tem por fim reunir, no mistério de uma salvação realizada sob o senhorio de Cristo (cf. Ef 1,8-10), toda a realidade criatural fragmentada e dispersa. Desde o dia de Pentecostes, quando a Ressurreição é anunciada aos diversos povos e entendida por cada qual na sua própria língua (cf. At 2,6), a Igreja dedica-se à própria tarefa de restaurar e testemunhar a unidade perdida em Babel: graças a este mistério eclesial, a família humana é chamada a recuperar a própria unidade e a reconhecer a riqueza de suas diferenças, para alcançar a «unidade total em Cristo»[873] .

c) A vocação universal do cristianismo

432 A mensagem cristã oferece uma visão universal da vida dos homens e dos povos sobre a terra[874], que leva a compreender a unidade da família humana[875]. Tal unidade não se deve construir com a força das armas, do terror ou da opressão, mas é antes o êxito daquele «supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra “comunhão”»[876] e uma conquista da força moral e cultural da liberdade[877]. A mensagem cristã foi decisiva para fazer a humanidade compreender que os povos tendem a unirem-se não apenas em razão das formas de organização, de vicissitudes políticas, de projetos econômicos ou em nome de uma internacionalismo abstrato e ideológico, mas porque livremente se orientam em direção a cooperação, cônscios «de serem membros vivos de uma comunidade mundial»[878], que se deve propor sempre mais e sempre melhor como figura concreta da unidade querida pelo Criador: « A unidade universal do convívio humano é um fato perene. É que o convívio humano tem por membros seres humanos que são todos iguais por dignidade natural. Por conseguinte, é também perene a exigência natural de realização, em grau suficiente, do bem comum universal, isto é, do bem comum de toda a família humana»[879].

II. AS REGRAS FUNDAMENTAIS DA COMUNIDADE INTERNACIONAL

a) Comunidade internacional e valores

433 A centralidade da pessoa humana e da aptidão natural das pessoas e dos povos a estreitar relações entre si são elementos fundamentais para construir uma verdadeira Comunidade internacional, cuja organização deve tender ao efetivo bem comum universal[880]. Não obstante seja amplamente difusa a aspiração por uma autêntica comunidade internacional, a unidade da família humana não encontra ainda realização, porque é obstaculizada por ideologias materialistas e nacionalistas que contradizem os valores de que é portadora a pessoa considerada integralmente, em todas as suas dimensões, materiais e espirituais, individuais e comunitários. De modo particular, é moralmente inaceitável qualquer teoria ou comportamento caracterizado pelo racismo ou pela discriminação racial[881].

A convivência entre as nações funda-se nos mesmos valores que devem orientar aquele entre os seres humanos: a verdade, a justiça, a solidariedade e a liberdade[882]. O ensinamento da Igreja, acerca dos princípios constitutivos da Comunidade Internacional, exige que as relações entre os povos e as comunidades políticas encontrem a sua justa regulamentação na razão, na eqüidade, no direito, no acordo , enquanto que exclui o recurso à violência e à guerra, a formas de discriminação, de intimidação e de engano[883].

434 O direito se coloca como instrumento de garantia da ordem internacional[884],a saber, da convivência entre as comunidades políticas que singularmente perseguem o bem comum dos próprios cidadãos e que coletivamente devem tender ao bem comum de todos os povos[885], na convicção de que o bem comum de uma nação é inseparável do bem da família humana inteira[886].

A Comunidade Internacional é uma comunidade jurídica fundada sobre a soberania de cada Estado membro, sem vínculos de subordinação que lhes neguem ou limitem a sua independência[887]. Conceber deste modo a comunidade internacional não significa de maneira alguma relativizar e esvaecer as diferentes e peculiares características de um povo, mas favorecer-lhes a expressão[888]. A valorização das diferentes identidades ajuda a superar as várias formas de divisão que tendem a separar os povos e a torná-los portadores de um egoismo com efeitos desestabilizadores.

435 O Magistério reconhece a importância da soberania nacional, concebida antes de tudo como expressão da liberdade que deve regular as relações entre os Estados[889].A soberania representa a subjetividade[890] de uma nação sob o aspecto político, econômico e também cultural. A dimensão cultural adquire um valor particular como ponto de força para a resistência aos atos de agressão ou às formas de domínio que condicionam a liberdade de um País: a cultura constitui a garantia de conservação da identidade de um povo, exprime e promove a sua soberania espiritual[891].

A soberania nacional não é porém um absoluto. As nações podem renunciar livremente ao exercício de alguns de seus direitos, em vista de um objetivo comum, com a consciência de formar uma única «família»[892], na qual devem reinar a confiança recíproca, o apoio e o respeito mútuo. Nessa perspectiva, merece uma consideração atenta a falta de um acordo internacional que enfrente de modo adequado «os direitos das nações»[893], cuja preparação poderia enfrentar oportunamente questões acerca da justiça e da liberdade no mundo contemporâneo.

b) Relações fundadas na harmonia entre ordem jurídica e ordem moral

436 Para realizar e consolidar uma ordem internacional que garanta eficazmente a convivência pacífica entre os povos, a mesma lei moral, que rege a vida dos homens, deve regular também as relações entre os Estados: «lei moral cuja observância deve ser inculcada e promovida pela opinião pública de todas as nações e de todos os Estados com tal unanimidade de voz e de força, que ninguém se possa atrever a pô-la em dúvida ou atenuar-lhe o vínculo obrigatório»[894]. É necessário que a lei moral universal, inscrita no coração do homem seja considerada efetiva e inderrogável como viva expressão da consciência que a humanidade tem em comum, uma «gramática»[895] capaz de orientar o diálogo sobre o futuro do mundo.

437 O respeito universal dos princípios que inspiram um «ordinamento giuridico in armonia con l’ordine morale»[896]é uma condição necessária para a estabilidade da vida internacional. A busca de uma tal estabilidade favoreceu a elaboração gradual de um direito das nações[897](«ius gentium»), que pode ser considerado como o «antepassado do direito internacional»[898]. A reflexão jurídica e teológica, ancorada no direito natural, formulou «princípios universais que são anteriores e superiores ao direito interno dos Estados»[899], como a unidade do gênero humano, a igualdade em dignidade de todos os povos, a recusa da guerra para superar as controvérsias, a obrigação de cooperar para o bem comum, a exigência de manter fé aos compromissos subscritos («pacta sunt servanda»). Este último princípio deve ser particularmente ressaltado para evitar «a tentação de apelar para o direito da força antes que para a força do direito»[900].

438 Para resolver os conflitos que insurgem entre as diversas comunidades políticas e que comprometem a estabilidade das nações e a segurança internacional, é indispensável referir-se a regras comuns confiadas à negociação, renunciando definitivamente à idéia de buscar a justiça mediante o recurso à guerra[901]: «a guerra pode terminar sem vencedores nem vencidos num suicídio da humanidade, e então é necessário rejeitar a lógica que a ela conduz, ou seja, a idéia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são fatores de progresso e avanço da história»[902].

A Carta das Nações Unidas interditou não somente o recurso à força, como também a simples ameaça de usá-la[903]: tal disposição nasceu da trágica experiência da Segunda Guerra Mundial. O Magistério, durante aquele conflito, não deixou de individuar alguns fatores indispensáveis para edificar uma renovada ordem internacional: a liberdade e a integridade territorial de cada nação; a tutela dos direitos das minorias; uma divisão eqüitativa dos recursos da terra; a rejeição da guerra e a atuação do desarme; a observância dos pactos concordados; a cessação da perseguição religiosa[904].

439 Para consolidar o primado do direito, vale acima de tudo o princípio da confiança recíproca[905]. Nesta perspectiva, os instrumentos normativos para a solução pacífica das controvérsias devem ser repensadas de tal modo que lhe sejam reforçadas o alcance e a obrigatoriedade. Os institutos da negociação, da mediação, da conciliação, da arbitragem, que são expressões da legalidade internacional devem ser apoiadas pela criação de «uma autoridade jurídica plenamente eficiente em um mundo pacificado»[906]. Um avanço nesta direção consentirá à Comunidade Internacional propor-se não mais como simples momento de agregação da vida dos Estados, mas como uma estrutura em que os conflitos possam ser pacificamente resolvidos: «Como dentro dos Estados (…) o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei, do mesmo modo é agora urgente que um progresso semelhante tenha lugar na Comunidade internacional»[907]. Finalmente, o direito internacional «deve evitar que prevaleça a lei do mais forte»[908].

III. A ORGANIZAÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL

a) O valor das Organizações Internacionais

440 O caminho rumo a uma autêntica «comunidade» internacional, que assumiu uma precisa direção com a instituição da Organização das Nações Unidas em 1945, é acompanhado pela Igreja: tal Organização «contribuiu notavelmente para promover o respeito da dignidade humana, a liberdade dos povos e a exigência do desenvolvimento, preparando o terreno cultural e institucional sobre o qual construir a paz»[909]. A doutrina social, em geral, considera positivamente o papel das Organizações intergovernamentais, em particular daquelas operantes em setores específicos[910], ainda que experimentando reservas quando estas enfrentam de modo incorreto os problemas[911]. O Magistério recomenda que a ação dos Organismos Internacionais responda às necessidades humanas na vida social e nos âmbitos relevantes para a pacífica e ordenada convivência das nações e dos povos[912].

441 A solicitude por uma convivência ordenada e pacífica da família humana leva o Magistério a ressaltar a exigência de instituir «uma autoridade pública universal, reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, a observância da justiça e o respeito dos direitos»[913]. No curso da história, não obstante as mudanças de perspectiva das diversas épocas, advertiu-se constantemente a necessidade de uma semelhante autoridade para responder aos problemas de dimensão mundial postos pela busca do bem comum: é essencial que tal autoridade seja o fruto de um acordo e não de uma imposição, e que não seja tomado como um «super-estado global»[914].

Uma autoridade política exercida no quadro da Comunidade Internacional deve ser regida pelo direito, ordenada ao bem comum e respeitar o princípio da subsidiariedade:«Os poderes públicos da comunidade mundial não têm como fim limitar a esfera de ação dos poderes públicos de cada comunidade política e nem sequer de substituir-se a eles. Ao invés, devem procurar contribuir para a criação, em plano mundial, de um ambiente em que tanto os poderes públicos de cada comunidade política, como os respectivos cidadãos e grupos intermédios, com maior segurança, possam desempenhar as próprias funções, cumprir os seus deveres e fazer valer os seus direitos»[915].

442 Uma política internacional voltada para o objetivo da paz e do desenvolvimento mediante a adoção de medidas coordenadas[916]mais do que nunca tornou-se é necessária em virtude da globalização dos problemas. O Magistério destaca que a interdependência entre os homens e as nações adquire uma dimensão moral e determina as relações no mundo atual sob o aspecto econômico, cultural, político e religioso. Nesse contexto, seria de desejar uma revisão, que «pressupõe a superação das rivalidades políticas e a renúncia a toda a pretensão de instrumentalizar as mesmas Organizações, que têm como única razão de ser o bem comum»[917], com o objetivo de conseguir «grau superior de ordenação a nível internacional»[918].

Em particular, as estruturas intergovernamentais devem exercitar eficazmente as suas funções de controle e de guia no campo da economia, pois que alcançar o bem comum torna-se uma meta inatingível aos Estados individualmente tomados, ainda que dominantes em termos de potência, riqueza e força política[919]. Os Organismos Internacionais devem ademais garantir aquela igualdade, que é o fundamento do direito de todos à participação no processo do pleno desenvolvimento, no respeito às legítimas diferenças[920].

443 O Magistério avalia positivamente o papel dos agrupamentos que se formaram na sociedade civil para exercer uma importante função de sensibilização da opinião pública para com os diversos aspectos da vida internacional, com uma atenção especial para o respeito dos direitos do homem, como revela o «o número das associações privadas, recentemente instituídas, algumas de alcance mundial, e quase todas empenhadas em seguir, com grande cuidado e louvável objetividade, os acontecimentos internacionais num campo tão delicado»[921].

Os Governos deveriam sentir-se encorajados por um semelhante empenho, que visa traduzir em prática os ideais que inspiram a comunidade internacional, « sobretudo através dos gestos concretos de solidariedade e de paz das numerosas pessoas que trabalham nomeadamente nas Organizações Não-Governamentais e nos Movimentos a favor dos direitos do homem »[922].

b) A personalidade jurídica da Santa Sé

444 A Santa Sé? ou Sé Apostólica[923]? goza de plena subjetividade internacional enquanto autoridade soberana que realiza atos juridicamente próprios. Ela exerce uma soberania externa, reconhecida no quadro da Comunidade internacional, que reflete a soberania exercida no seio da Igreja e que se caracteriza pela unidade organizativa e pela independência. A Igreja vale-se das modalidades jurídicas que se mostrarem necessárias ou úteis para o cumprimento da sua missão.

A atividade internacional da Santa Sé manifesta-se objetivamente sob diversos aspectos, entre os quais: o direito ativo e passivo de legação; o exercício do «ius contrahendi», com a estipulação de tratados; a participação em organizações intergovernamentais, como por exemplo as pertencentes ao sistema das Nações Unidas; as iniciativas de mediação em caso de conflitos.Tal atividade entende oferecer um serviço desinteressado à Comunidade internacional, pois que não busca vantagens de parte, mas tem como fim o bem comum da família humana toda. Nesse contexto, a Santa Sé vale-se do próprio pessoal diplomático.

445 O serviço diplomático da Santa Sé, fruto de uma antiga e consolidada praxe, é um instrumento que atua não só pela «libertas Ecclesiae», mas também pela defesa e promoção da dignidade humana, bem como por uma ordem social baseada nos valores da justiça, da liberdade e do amore: «Por um direito nativo inerente à nossa missão espiritual, favorecido por uma secular sucessão de acontecimentos históricos, nós enviamos também os nossos legados às autoridades supremas dos estados nos quais está radicada ou de algum modo é presente a Igreja Católica. É bem verdade que as finalidades da Igreja e do Estado são de ordem diferente, e que ambas são sociedades perfeitas, dotadas, portanto, de meios próprios, e são independentes na respectiva esfera de atuação, mas é também verdade que uma e outro agem em benefício de um sujeito comum, o homem, chamado por Deus à salvação eterna e posto na terra para permitir-lhe, com o auxílio da graça, consegui-la com uma vida de trabalho, que lhe proporcione bem-estar, na convivência pacífica »[924]. O bem das pessoas e das comunidades humanas é favorecido por um diálogo estruturado entre a Igreja e as autoridades civis, que se exprime também através da estipulação de acordos mútuos. Tal diálogo tende a estabelecer ou reforçar relações de recíproca compreensão e colaboração, assim como a prevenir ou sanar eventuais desavenças, com o objetivo de contribuir para o progresso de cada povo e de toda a humanidade na justiça e na paz.

IV. A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO

a) Colaboração para garantir o direito ao desenvolvimento

446 A solução do problema do desenvolvimento requer a cooperação entre as comunidades políticas: «as comunidades políticas (…) se condicionam mutuamente e pode, mesmo, afirmar-se que cada uma atinge o próprio desenvolvimento, contribuindo para o desenvolvimento das outras. Por isso é que se impõem o entendimento e a colaboração mútuos»[925]. O subdesenvolvimento parece uma situação impossível de eliminar, quase uma condenação fatal, se se considera o fato que este não é apenas o fruto de opções humanas erradas, mas também o resultado de «mecanismos econômicos, financeiros e sociais»[926] e de «estruturas de pecado»[927] que impedem o pleno desenvolvimento dos homens e dos povos.

Estas dificuldades, todavia, devem ser enfrentadas com determinação firme e perseverante, porque o desenvolvimento não é apenas uma aspiração, mas um direito[928] que, como todo direito, implica uma obrigação: «A colaboração para o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens é, efetivamente, um dever de todos para com todos e, ao mesmo tempo, há de ser comum às quatro partes do mundo: Este e Oeste, Norte e Sul»[929]. Na visão do Magistério, o direito ao desenvolvimento se funda nos seguintes princípios: unidade de origem e comunhão de destino da família humana; igualdade entre todas as pessoas e todas as comunidades baseada na dignidade humana; destinação universal dos bens da terra; integralidade da noção de desenvolvimento; centralidade da pessoa humana; solidariedade.

447 A doutrina social encoraja formas de cooperação capazes de incentivar o acesso ao mercado internacional dos países marcados pela pobreza e subdesenvolvimento: «Há relativamente poucos anos, afirmou-se que o desenvolvimento dos países mais pobres dependeria do seu isolamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os países que foram excluídos registraram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das atividades econômicas a nível internacional. O maior problema, portanto, parece ser a obtenção de um acesso eqüitativo ao mercado internacional, não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos humanos»[930]. Entre as causas que predominantemente concorrem em determinar o desenvolvimento e a pobreza, além da impossibilidade de ascender ao mercado internacional[931], devem ser enumerados o analfabetismo, a insegurança alimentar, a ausência de estruturas e serviços, a carência de medidas para garantir o saneamento básico, a falta de água potável, a corrupção, a precariedade das instituições e da própria vida política. Existe uma conexão entre a pobreza e a falta, em muitos países, de liberdade, de possibilidade de iniciativa econômica, de administração estatal capaz de predispor um sistema adequado de educação e de informação.

448 O espírito da cooperação internacional exige que acima da estrita lógica do mercado esteja a consciência de um dever de solidariedade, de justiça social e de caridade universal[932]; efetivamente existe «algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua eminente dignidade»[933]. A cooperação é a via que a Comunidade Internacional no seu conjunto deve empenhar-se a percorrer «segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família humana»[934]. Dela derivarão efeitos muito positivos: um aumento da confiança nas potencialidades das pessoas pobres e, conseqüentemente, dos países pobres e uma distribuição dos bens eqüitativa.

b) Luta contra a pobreza

449 No início do novo milênio, a pobreza de milhões de homens e mulheres é «é a questão que, em absoluto, mais interpela a nossa consciência humana e cristã»[935]. A pobreza põe um dramático problema de justiça: a pobreza, nas suas diferentes formas e conseqüências, caracteriza-se por um crescimento desigual e não reconhece a cada povo «igual direito a »sentar-se à mesa do banquete comum»»[936]. Tal pobreza torna impossível a realização daquele humanismo plenário que a Igreja almeja e persegue, para que as pessoas e os povos possam «ser mais»[937] e viver em «condições mais humanas»[938].

A luta contra a pobreza encontra uma forte motivação na opção, ou amor preferencial, da Igreja pelos pobres[939].Em todo o seu ensinamento social a Igreja não se cansa de reafirmar também outros princípios fundamentais seus: dentre todos prima o da destinação universal dos bens[940]. Com a constante reafirmação do princípio da solidariedade, a doutrina social estimula a passar à ação para promover o «bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos»[941]. O princípio da solidariedade, também na luta contra a pobreza, deve ser sempre oportunamente ladeado pelo da subsidiariedade, graças ao qual é possível estimular o espírito de iniciativa, base fundamental de todo desenvolvimento socioeconômico, nos países pobres[942]: aos pobres se deve olhar «não como um problema, mas como possíveis sujeitos e protagonistas dum futuro novo e mais humano para todo o mundo»[943].

c) A dívida externa

450 Deve-se ter presente o direito fundamental dos povos ao desenvolvimento nas questões ligadas à crise dos débitos de muitos países pobres[944].Tais crises têm, na sua origem, causas complexas e de vário gênero, seja de caráter internacional ? flutuações de câmbios, especulações financeiras, neocolonialismo econômico ? seja no interior de cada um dos países endividados ? corrupção, má gestão do dinheiro público, uso indevido dos empréstimos recebidos. Os sofrimentos maiores, atribuíveis à questões estruturais, mas também a comportamentos pessoais, atingem as populações dos países endividados e pobres, as quais não têm responsabilidade alguma. A comunidade internacional não pode ignorar uma semelhante situação: mesmo reafirmando o princípio que o débito contraído deve ser honrado, é preciso encontrar os caminhos para não comprometer o «fundamental direito dos povos à subsistência e ao progresso»[945].

CAPÍTULO X – SALVAGUARDAR O AMBIENTE

I. ASPECTOS BÍBLICOS

451 A experiência viva da presença divina na história é o fundamento da fé do povo de Deus: «Éramos escravos do Faraó no Egito, e o Senhor nos tirou do Egito com mão forte» (Dt 6,21). A reflexão sobre a história permite reassumir o passado e descobrir a obra de Deus nas próprias raízes: «Meu pai era um Arameu errante» (Dt 26,5); de Deus que pode dizer ao Seu povo: «Eu tirei Abraão vosso pai, do outro lado do rio» (Js 24,3). É uma reflexão que permite olhar com confiança para o futuro, graças à promessa e à aliança que Deus renova continuamente: «sereis para mim a porção escolhida entre todos os povos» (Ex 19,5).

A fé de Israel vive no tempo e no espaço deste mundo, visto não como um ambiente hostil ou um mal da qual libertar-se, mas freqüentemente como o próprio dom de Deus, o lugar e o projeto que Ele confia à responsável direção e operosidade do homem. A natureza, obra da criação divina, não é uma perigosa concorrente. Deus, que fez todas as coisas, viu que cada uma delas «… era coisa boa» (Gn 1,4.10.12.18.21.25). No vértice da Sua criação, como «coisa muito boa» (Gn 1,31), o Criador coloca o homem. Só o homem e a mulher, entre todas as criaturas, foram queridos por Deus «a sua imagem» (Gn 1,27): a eles o Senhor confia a responsabilidade sobre toda a criação, a tarefa de tutelar a harmonia e o desenvolvimento (cf. Gn 1,26-30). O liame especial com Deus explica a privilegiada posição do casal humano na ordem da criação.

452 A relação do homem com o mundo é um elemento constitutivo da identidade humana. Trata-se de uma relação que nasce como fruto da relação, ainda mais profunda, do homem com Deus. O Senhor quis o ser humano como Seu interlocutor: somente no diálogo com Deus a criatura humana encontra a própria verdade, da qual extrai inspiração e normas para projetar a história no mundo, um jardim que Deus lhe deu para que seja cultivado e guardado (cf. Gn 2,15). Nem o pecado elimina tal tarefa, mesmo agravando com dor e sofrimento a nobreza do trabalho (cf. Gn 3,17-19).

A criação é sempre objeto do louvor na oração de Israel: «Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tudo fizeste com sabedoria» (Sl 104,24). A salvação é entendida como uma nova criação, que restabelece aquela harmonia e aquela potencialidade de crescimento que o pecado comprometeu: «Vou criar novo céu e nova terra» (Is 65, 17) — diz o Senhor ?« então, o deserto se mudará em vergel … e a justiça reinará no vergel … o meu poso habitará em mansão serena»(Is 32, 15-18).

453 A salvação definitiva, que Deus oferece a toda a humanidade mediante o Seu próprio Filho, não se atua fora deste mundo. Mesmo ferido pelo pecado, este é destinado a conhecer uma purificação radical (cf. 2 Pe 3,10) da qual saíra renovado (cf. Is 65, 17; 66, 22; Ap 21, 1), transformado finalmente no lugar onde «habitará a justiça» (cf. 2 Pe 3, 13).

No Seu ministério público Jesus valoriza os elementos naturais. Da natureza Ele é não só sábio interprete nas imagens que dela costuma oferecer e nas parábolas, mas também Senhor (cf. o episódio da tempestade sedada acalmada em Mt 14, 22-33; Mc 6, 45-52; Lc 8, 22-25; Jo 6, 16-21): o Senhor a coloca ao serviço de Seu desígnio redentor. Ele chama os Seus discípulos contemplar as coisas, as estações e os homens com a confiança dos filhos que sabem não poder ser abandonados por um Pai providente (cf. Lc 11, 11-13). Longe de se tornar escravo das coisas, o discípulo de Cristo deve saber servir-se delas para criar partilha e fraternidade (cf. Lc 16, 9-13).

454 O ingresso de Jesus Cristo na história do mundo culmina na Páscoa, onde a mesma natureza participa do drama do Filho de Deus rejeitado e da vitória da Ressurreição (cf. Mt 27, 45.51; 28, 2). Atravessando a morte e nela inserindo a novidade resplendente da Ressurreição, Jesus inaugura um mundo novo no qual tudo é submetido a Ele (cf 1 Cor 15,20-28) e restabelece aquela relação de ordem e harmonia que o pecado havia destruído. A consciência dos desequilíbrios entre o homem e a natureza de ser acompanhada pelo conhecimento de que, em Jesus, se realizou a reconciliação do homem e do mundo com Deus, de sorte que cada ser humano consciente do Amor divino, pode reencontrar a paz perdida: «Todo aquele que está em Cristo é uma criatura nova. Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo» (2 Cor 5,17). A natureza, que fora criada no Verbo, por meio do mesmo Verbo, feito carne, foi reconciliada com Deus e pacificada (Cf. Col 1,15-20).

455 Não apenas a interioridade do homem é sanada, mas toda a sua corporeidade é tocada pela força redentora de Cristo; a criação inteira toma parte na renovação que brota da Páscoa do Senhor, mesmo entre gemidos das dores do parto (cf. Rm 8, 19-23), à espera de dar à luz «um novo céu e uma nova terra» (Ap 21, 1) que são o dom do fim dos tempos, da salvação acabada. Nesse meio tempo, nada é estranho a tal salvação: em qualquer condição de vida, o cristão é chamado a servir a Cristo, a viver segundo o seu Espírito, deixando-se guiar pelo amor, princípio de uma vida nova, que restitui o mundo e o homem ao projeto das suas origens: «… o mundo, a vida, a morte, o presente, o futuro. Tudo é vosso! Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus» (1 Cor 3, 22-23).

II. O HOMEM E O UNIVERSO DAS COISAS

456 A visão bíblica inspira as atitudes dos cristãos em relação ao uso da terra, assim como ao desenvolvimento da ciência e da técnica. O Concílio Vaticano II afirma que o homem «tem razão o homem, participante da luz da inteligência divina, quando afirma que, pela inteligência é superior ao universo material»[946]; os Padres Conciliares reconhecem os progressos feitos graças à aplicação incansável do engenho humano ao longo dos séculos, nas ciências empíricas, nas artes técnicas e nas disciplinas liberais[947]. O homem hoje, «graças sobretudo à ciência e à técnica, estendeu e continuamente estende o seu domínio sobre quase toda a natureza»[948].

Porque o homem, «criado à imagem de Deus, recebeu a missão de submeter a terra e todas as coisas que nela existem, de governar o mundo na justiça e na santidade, e de, reconhecendo a Deus como Criador de todas as coisas, orientar para Ele o seu ser, bem como o universo inteiro, de tal maneira que, sujeitas todas as coisas ao homem, o nome de Deus seja glorificado em toda a terra», o Concílio ensina que a «a atividade humana, individual e coletiva, ou aquele esforço gigantesco, com que os homens se atarefam ao longo dos séculos para melhorar as condições de vida, considerado em si mesmo, corresponde à vontade de Deus»[949].

457 Os resultados da ciência e da técnica são, em si mesmos, positivos: os cristãos «longe de oporem as conquistas do engenho e do esforço humano ao poder de Deus, e de considerarem a criatura racional como uma espécie de rival do Criador, (…) estão, ao contrário, bem persuadidos de que as vitórias do gênero humano são um sinal da grandeza divina e uma conseqüência dos Seus desígnios inefáveis»[950]. Os Padres conciliares ressaltam também o fato de que «quanto mais cresce o poder do homem, tanto mais se alarga o campo das suas responsabilidades, tanto individuais como coletivas»[951], e que toda atividade humana deve corresponder, segundo o desígnio de Deus e a Sua vontade, ao verdadeiro bem da humanidade[952]. Nesta perspectiva, o Magistério tem repetidas vezes sublinhado que a Igreja católica não se opõe de modo algum ao progresso[953], antes considera «a ciência e a tecnologia … um produto maravilhoso da criatividade humana, que é dom de Deus, uma vez que nos forneceram possibilidades maravilhosas, de que beneficiamos com ânimo agradecido»[954]. Por esta razão, «como crentes em Deus, que julgou “boa” a natureza por Ele criada, nós gozamos dos progressos técnicos e econômicos, que o homem, com a sua inteligência, consegue realizar»[955].

458 As considerações do Magistério sobre a ciência e sobre a tecnologia em geral valem também para a sua aplicação ao ambiente natural e à agricultura. A Igreja aprecia «as vantagens advêm ? e que podem advir ainda ? do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria»[956]. Efetivamente «a técnica poderia constituir, com uma reta aplicação, um precioso instrumento útil para resolver graves problemas, a começar pelos da fome e da enfermidade, mediante a produção de variedades de plantas mais progredidas e resistentes e de preciosos medicamentos»[957]. Contudo é importante reafirmar o conceito de «reta aplicação», porque «nós sabemos que este potencial não é neutro: pode ser usado tanto para o progresso do homem como para a sua degradação»[958]. Por esta razão, «é necessário … manter uma atitude de prudência e examinar com olhos atentos a natureza, a finalidade e os modos das várias formas de tecnologia aplicada»[959]. Os cientistas, portanto, devem usar «verdadeiramente as suas pesquisas e as suas capacidades técnicas em serviço da humanidade»[960], sabendo subordiná-las «aos princípios e valores morais que respeitam e realizam na sua plenitude a dignidade do homem»[961].

459 Ponto de referência central para toda aplicação científica e técnica é o respeito ao homem, que deve acompanhar uma indispensável atitude de respeito para com as demais criaturas viventes. Também quando se pensa a uma alteração delas, « é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado »[962]. Neste sentido, as formidáveis possibilidades da pesquisa biológica suscitam profunda inquietude, porquanto «ainda não se esteja em condições de avaliar as perturbações provocadas na natureza por uma indiscriminada manipulação genética e pelo imprudente desenvolvimento de novas plantas e de novas formas de vida animal, para não falar já de inaceitáveis intervenções sobre as origens da própria vida humana»[963]. Efetivamente, «já se verificou, porém, que a aplicação de algumas dessas descobertas no campo industrial e agrícola, a longo prazo produzem efeitos negativos. Isto pôs cruamente em evidência que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da considerarão das suas conseqüências noutras áreas e, em geral, das conseqüências no bem-estar das futuras gerações»[964].

460 O homem não deve, portanto, esquecer que «a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho … se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus »[965]. Ele não deve «dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair»[966]. Quando se comporta deste modo, « em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele»[967].

Se o homem intervém na natureza sem abusar e sem danificá-la, se pode dizer que «intervém não para modificar a natureza mas para a ajudar a desenvolver-se segundo a sua essência, aquela da criação, a mesma querida por Deus. Trabalhando neste campo, evidentemente delicado, o investigador adere ao desígnio de Deus. Aprouve a Deus que o homem fosse o rei da criação»[968]. No fundo é o próprio Deus que oferece ao homem a honra de cooperar com todas as forças da inteligência na obra da criação.

III. A CRISE NA RELAÇÃO HOMEM-AMBIENTE

461 A mensagem bíblica e o Magistério eclesial constituem os pontos de referência parâmetro para avaliar os problemas que se põem nas relações entre o homem e o ambiente[969]. Na origem de tais problemas pode identificar-se a pretensão de exercitar um domínio incondicional sobre as coisas por parte do homem, um homem desatento àquelas considerações de ordem moral que devem caracterizar cada atividade humana.

A tendência à «exploração inconsiderada»[970]dos recursos da criação é o resultado de um longo processo histórico e cultural: «A época moderna registrou uma capacidade crescente de intervenção transformadora por parte do homem. O aspecto de conquista e de exploração dos recursos tornou-se predominante e invasivo, e hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como “recurso” corre o perigo de ameaçar o ambiente como “casa”. Por causa dos poderosos meios de transformação, oferecidos pela civilização tecnológica, parece às vezes que o equilíbrio homem-ambiente tenha alcançado um ponto crítico»[971].

462 A natureza aparece assim como um instrumento nas mãos do homem, uma realidade que ele deve constantemente manipular, especialmente mediante a tecnologia. A partir do pressuposto, que se revelou errado, de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração seja possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos, se difundiu uma concepção redutiva que lê o mundo natural em chave mecanicista e o desenvolvimento em chave consumista; o primado atribuído ao fazer e ao ter mais do que ao ser causa graves formas de alienação humana[972] .

Uma semelhante postura não deriva da pesquisa científica e tecnológica, mas de uma ideologia cientificista e tecnocrática que tende a condicioná-la. A ciência e a técnica, com o seu progresso, não eliminam a necessidade de transcendência e não são de per si causa da secularização exasperada que conduz ao niilismo: enquanto avançam em seu caminho, suscitam interrogações sobre o seu sentido e fazem crescer a necessidade de respeitar a dimensão transcendente da pessoa humana e da própria criação.

463 Uma correta concepção do ambiente, se de um lado não pode reduzir de forma utilitarista a natureza mero objeto de manipulação e desfrute, por outro lado não pode absolutizar a natureza e sobrepô-la em dignidade à própria pessoa humana. Neste último caso, chega-se ao ponto de divinizar a natureza ou a terra, como se pode facilmente divisar em alguns movimentos ecologistas que querem que se dê um perfil institucional internacionalmente garantido às suas concepções[973].

O Magistério tem motivado a sua contrariedade a uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, porque «se propõe eliminar a diferença ontológica e axiológica entre o homem e os outros seres vivos, considerando a biosfera como uma unidade biótica de valor indiferenciado. Chega-se assim a eliminar a superior responsabilidade do homem, em favor de uma consideração igualitária da “dignidade” de todos os seres vivos»[974].

464 Uma visão do homem e das coisas desligadas de qualquer referência à transcendência conduziu a negação do conceito de criação e a atribuir ao homem e à natureza uma existência completamente autônoma. O liame que une o mundo a Deus foi assim quebrado: tal ruptura terminou por desancorar do mundo também do homem e, mais radicalmente, empobreceu sua mesma identidade. O ser humano viu-se a considerar-se alheio ao contexto ambiental em que vive. É bem clara a conseqüência que daí decorre: «a relação que o homem tem com Deus é que determina a relação do homem com os seus semelhantes e com o seu ambiente. Eis por que a cultura cristã sempre reconheceu nas criaturas, que circundam o homem, outros tantos dons de Deus que devem ser cultivados e conservados, com sentido de gratidão para com o Criador. Em particular, as espiritualidades beneditina e franciscana têm testemunhado esta espécie de parentesco do homem com o ambiente da criação, alimentando nele uma atitude de respeito para com toda a realidade do mundo circunstante»[975]. Há que se ressaltar principalmente a profunda conexão existente entre ecologia ambiental e «ecologia humana»[976].

465 O Magistério enfatiza a responsabilidade humana de preservar um ambiente íntegro e saudável para todos[977]: «A humanidade de hoje, se conseguir conjugar as novas capacidades científicas com uma forte dimensão ética, será certamente capaz de promover o ambiente como casa e como recurso, em favor do homem e de todos os homens; será capaz de eliminar os fatores de poluição, de assegurar condições de higiene e de saúde adequadas, tanto para pequenos grupos como para vastos aglomerados humanos. A tecnologia que polui pode também despoluir, a produção que acumula pode distribuir de modo eqüitativo, com a condição de que prevaleça a ética do respeito pela vida e a dignidade do homem, pelos direitos das gerações humanas presentes e daquelas vindouras»[978].

IV. UMA RESPONSABILIDADE COMUM

a) O ambiente, um bem coletivo

466 A tutela do ambiente constitui um desafio para toda a humanidade: trata-se do dever, comum e universal, de respeitar um bem coletivo[979], destinado a todos, impedindo que se possa fazer «impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados — animais, plantas e elementos naturais — como se quiser, em função das próprias exigências»[980]. É uma responsabilidade que deve amadurecer com base na globalidade da presente crise ecológica e à conseqüente necessidade de enfrentá-la globalmente, enquanto todos os seres dependem uns dos outros na ordem universal estabelecida pelo Criador: «é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, qual é exatamente o cosmos»[981].

Esta perspectiva reveste uma particular importância quando se considera, no contexto dos estreitos liames que unem vários ecossistemas entre si, o valor da biodiversidade, que deve ser tratada com sentido de responsabilidade e adequadamente protegida, porque constitui uma extraordinária riqueza para a humanidade toda. A tal propósito, cada um pode facilmente advertir, por exemplo, a importância da região amazônica, «um dos espaços mais apreciados do mundo pela sua diversidade biológica, que o torna vital para o equilíbrio ambiental de todo o planeta»[982]. As florestas contribuem para manter equilíbrios naturais essenciais indispensáveis para a vida[983]. A sua destruição, também através de inconsiderados incêndios dolosos acelera o os processos de desertificação com perigosas conseqüências para as reservas de água e compromete a vida de muitos povos indígenas e o bem-estar das gerações futuras. Todos, indivíduos e sujeitos institucionais, devem sentir-se comprometidos a proteger o patrimônio florestal e, onde necessário, promover adeguados programas de reflorestamento.

467 A responsabilidade em relação o ao ambiente, patrimônio comum do gênero humano, se estende não apenas às exigências do presente, mas também às do futuro: «Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um fato e um beneficio, mas também um dever»[984]. Trata-se de uma responsabilidade que as gerações presentes têm em relação às futuras[985], uma responsabilidade que pertence também a cada um dos Estados e à Comunidade Internacional.

468 A responsabilidade em relação ao ambiente deve encontrar uma tradução adequada em campo jurídico. É importante que a Comunidade Internacional elabore regras uniformes para que tal regulamentação consinta aos Estados controlar com maior eficácia as várias atividades que determinam efeitos negativos no ambiente e preservar os ecossistemas prevendo possíveis acidentes: «Compete a cada Estado, no âmbito do próprio território, a tarefa de prevenir a degradação da atmosfera e da biosfera, exercendo um controlo atento, além do mais, sobre os efeitos das novas descobertas tecnológicas e científicas; e ainda, dando aos próprios cidadãos a garantia de não estarem expostos a agentes inquinantes e a emanações tóxicas»[986].

O conteúdo jurídico do «direito a um ambiente são e seguro»[987] é fruto de uma elaboração gradual, requerida pela preocupação da opinião pública em disciplinar o uso dos bens da criação segundo as exigências do bem comum e em uma vontade comum de introduzir sanções para aqueles que poluem. As normas jurídicas, todavia, por si sós não bastam[988]; a par destas, devem amadurecer um forte senso de responsabilidade, bem como uma efetiva mudança nas mentalidades e nos estilos de vida.

469 As autoridades chamadas a tomar decisões para afrontar riscos sanitários e ambientais, às vezes, se encontram diante de situações nas quais os dados científicos disponíveis são contraditórios ou quantitativamente escassos: em tal caso pode ser oportuna uma avaliação inspirada pelo «princípio de precaução», que não comporta a aplicação de uma regra, mas uma orientação ordenada a administrar situações de incerteza. Esta manifesta a exigência de uma decisão provisória e modificável com base em novos conhecimentos que eventualmente se venham a alcançar. A decisão deve ser proporcional às providências já tomadas em vista de outros riscos. As políticas cautelatórias, baseadas no princípio de precaução, requerem que as decisões sejam baseadas em um confronto entre riscos e benefícios previsíveis para cada possível opção alternativa, inclusive a decisão de não atuar. À abordagem baseada no princípio de precaução liga-se a exigência de promover todo o esforço para adquirir conhecimentos mais aprofundados, mesmo sabendo que a ciência não pode chegar rapidamente a conclusões acerca da ausência de riscos. As circunstâncias de incerteza e a provisoriedade tornam particularmente importante a transparência no processo decisório.

470 A programação do desenvolvimento econômico deve considerar atentamente a «necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza»[989], já que os recursos naturais são limitados e alguns não são renováveis. O atual ritmo de exploração compromete seriamente a disponibilidade de alguns recursos naturais para o tempo presente e para o futuro[990]. A solução do problema ecológico exige que a atividade econômica respeite mais o ambiente, conciliando as exigências do desenvolvimento econômico com as da proteção ambiental. Toda atividade econômica que se valer dos recursos naturais deve também preocupar-se com a salvaguarda do ambiente e prever-lhe os custos, que devem ser considerados como «um item essencial dos custos da atividade econômica»[991]. Neste contexto hão de ser consideradas as relações entre a atividade humana e as mudanças climáticas que, vista a sua complexidade, devem ser oportuna e constantemente em nível científico, político e jurídico, nacional e internacional. O clima é um bem a ser protegido e exige que, no seu comportamento, os consumidores e os que exercem atividade industrial desenvolvam um maior senso de responsabilidade[992].

Uma economia respeitosa do ambiente não perseguirá unicamente o objetivo da maximização do lucro, porque a proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não são aptos a defender ou a promover adequadamente[993]. Todos os países, sobretudo os desenvolvidos, devem perceber como urgente a obrigação de reconsiderar as modalidades do uso dos bens naturais. A busca de inovações capazes de reduzir o impacto sobre o ambiente provocado pela produção e pelo consumo deve ser eficazmente incentivada.

Uma atenção particular deverá ser reservada às complexas problemáticas concernentes aos recursos energéticos[994]. As não renováveis, exploradas pelos países altamente industrializados e por aqueles que de recente industrialização, devem ser postas ao serviço de toda a humanidade. Em uma perspectiva moral caracterizada pela eqüidade e pela solidariedade entre as gerações, se deverá, outrossim, continuamente, mediante o contributo da comunidade científica, a identificar novas fontes energéticas, a desenvolver as alternativas e a elevar o nível de segurança da energia nuclear[995]. A utilização da energia, pela conexão que tem com as questões do desenvolvimento e do ambiente, chama em causa a responsabilidade política dos estados, da comunidade internacional e dos operadores econômicos; tais responsabilidades deverão ser iluminadas e guiadas pela busca contínua do bem comum universal.

471 Uma atenção especial merece a relação que os povos indígenas mantêm com a sua terra e os seus recursos: trata-se de uma expressão fundamental da sua identidade[996].Muitos povos já perderam ou correm o risco de perder, em vantagem de potentes interesses agro-industriais ou em força dos processos de assimilação e de urbanização, as terras em que vivem[997], as quais está vinculado o próprio sentido de suas existências[998]. Os direitos dos povos indígenas devem ser oportunamente tutelados[999]. Estes povos oferecem um exemplo de vida em harmonia com o ambiente que eles aprenderam a conhecer e preservar[1000]: a sua extraordinária experiência, que é uma riqueza insubstituível para toda a humanidade, corre o risco de se perder juntamente com o ambiente do qual se origina.

b) O uso das biotecnologias

472 Nos últimos anos, se impôs com força a questão do uso das novas biotecnologias para fins ligados à agricultura, à zootecnia, à medicina e à proteção do ambiente. As novas possibilidades oferecidas pelas atuais técnicas biológicas e biogenéticas suscitam, de um lado, esperanças e entusiasmos e, de outro lado, alarme e hostilidade. As aplicações das biotecnologias, a sua liceidade do ponto de vista moral, as suas conseqüências para a saúde do homem, o seu impacto sobre o ambiente e sobre a economia, constituem objeto de estudo aprofundado e de vívido debate. Trata-se de questões controversas que envolvem cientistas e pesquisadores, políticos e legisladores, economistas e ambientalistas, produtores e consumidores. Os cristãos não ficam indiferentes a estas problemáticas, cônscios da importância dos valores em jogo[1001].

473. A visão cristã da criação comporta um juízo positivo sobre a liceidade das intervenções do homem na natureza, inclusive os outros seres vivos, e, ao mesmo tempo, uma forte chamada ao senso de responsabilidade[1002]. De fato, a natureza não é uma realidade sacra ou divina, subtraída à ação humana. É, antes, um dom oferecido pelo Criador à comunidade humana, confiado à inteligência e à responsabilidade moral do homem. Por isso ele não comete um ato ilícito quando, respeitando a ordem, a beleza e a utilidade de cada ser vivente e da sua função no ecossistema, intervém modificando-lhe algumas características e propriedades. São deploráveis as intervenções do homem quando danificam os seres viventes ou o ambiente natural, ao passo que são louváveis quando se traduzem no seu melhoramento. A liceidade do uso das técnicas biológicas e biogenéticas não esgotam toda a problemática ética: como no que concerne qualquer comportamento humano, é necessário avaliar cuidadosamente a sua real utilidade, bem como as possíveis conseqüências também em termos de riscos. No âmbito das intervenções técnico-científicas de forte e ampla incidência sobre os organismos viventes, com a possibilidade de notáveis repercussões a longo prazo, não é lícito agir com ligeireza e irresponsabilidade.

474 As modernas biotecnologias têm um forte impacto social, econômico e político, no plano local, nacional e internacional: hão de ser avaliadas de acordo com os critérios éticos que devem sempre orientar as atividades e as relações humanas no âmbito sócio-econômico e político[1003]. É necessário ter na devida conta sobretudo os critérios de justiça e solidariedade, aos quais se devem ater antes de tudo os indivíduos e os grupos que atuam na pesquisa e comercialização no campo das biotecnologias. Todavia, não se deve cair no erro de crer que a mera difusão dos benefícios ligados às novas tecnologias possa resolver todos os urgentes problemas de pobreza e de subdesenvolvimento que ainda insidiam tantos países do planeta.

475 Em um espírito de solidariedade internacional, várias medidas podem ser atuadas em relação ao uso de novas biotecnologias. Deve ser facilitado, em primeiro lugar, o intercâmbio comercial eqüitativo, livre de vínculos injustos. A promoção do desenvolvimento dos povos mais desfavorecidos não será porém autêntica e eficaz se se reduz ao intercâmbio de produtos. É indispensável favorecer também a maturação de uma necessária autonomia científica e tecnológica por parte daqueles mesmos povos, promovendo também os intercâmbios de conhecimentos científicos e as tecnologias bem como a transferência de tecnologias para os países em via de desenvolvimento.

476 A solidariedade comporta também uma chamada à responsabilidade que têm os países em via de desenvolvimento e em particular, os seus responsáveis políticos, em promover uma política comercial favorável aos seus povos e o intercâmbio de tecnologias capazes de melhorar as condições alimentares e sanitárias. Em tais países deve crescer o investimento na pesquisa, com especial atenção às características e às necessidades particulares do próprio território e da própria população, sobretudo levando em conta que algumas pesquisas no campo das biotecnologias, potencialmente benéficas, requerem investimentos relativamente modestos. Para este fim seria útil a criação de Organismos nacionais dedicados à proteção do bem comum mediante uma atenta gestão dos riscos.

477 Os cientistas e técnicos empenhados no setor das biotecnologias são chamados a trabalhar com inteligência e perseverança na busca de melhores soluções para os graves e urgentes problemas da alimentação e da saúde. Eles não se devem esquecer de que as suas atividades dizem respeito a materiais, viventes e não, pertencentes à humanidade como um patrimônio, destinado também às gerações futuras; para os crentes se trata de um dom recebido do Criador, confiado à inteligência e à liberdade humanas, também estas dons do Altíssimo. Saibam os cientistas empenhar as suas energias e as suas capacidades em uma busca apaixonada, guiada por uma consciência límpida e honesta[1004].

478 Os empresários e responsáveis pelas entidades públicas que se ocupam da pesquisa, da produção e do comércio dos produtos derivados das novas biotecnologias devem ter em conta não só o legítimo lucro, mas também o bem comum. Este princípio, válido para todo tipo de atividade econômica, torna-se particularmente importante quando se trata de atividades que se relacionam com a alimentação, a medicina, a proteção da saúde e do ambiente. Com as suas decisões, empresários e responsáveis pelas entidades públicas interessadas podem orientar os progressos no setor das biotecnologias para metas muito promissoras pelo que respeita a luta contra a fome, especialmente nos países mais pobres, a luta contra as doenças e a luta pela salvaguarda do ecossistema, patrimônio de todos.

479 Os políticos, os legisladores e os administradores públicos têm a responsabilidade de avaliar as potencialidades, as vantagens e os eventuais riscos conexos com o uso das biotecnologias. Não é de desejar que as suas decisões, em plano nacional ou internacional, sejam ditadas por pressões provenientes de interesses de parte. As autoridades públicas devem favorecer também uma correta informação da opinião pública e saber, em todo caso, tomar as decisões convenientes para o bem comum.

480 Também os responsáveis pela informação têm uma tarefa importante, a desempenhar com prudência e objetividade. A sociedade espera da parte deles uma informação completa e objetiva, que ajude os cidadãos a formar uma opinião correta acerca dos produtos biotecnológicos, sobretudo porque se trata de algo que lhes diz respeito diretamente enquanto possíveis consumidores. Deve-se, portanto, evitar cair na tentação de uma informação superficial, alimentada por entusiasmos fáceis ou por alarmismos injustificados.

c) Ambiente e partilha dos bens

481 Também no campo da ecologia a doutrina social convida a ter presente que os bens da terra foram criados por Deus para ser sabiamente usados por todos: tais bens devem ser divididos com equidade, segundo a justiça e a caridade. Trata-se essencialmente de impedir a injustiça de um açambarcamento dos recursos: a avidez, seja esta individual ou coletiva, é contrária à ordem da criação[1005].Os atuais problemas ecológicos, de caráter planetário, podem ser eficazmente enfrentados somente através de uma cooperação internacional capaz de garantir uma maior coordenação do uso dos recursos da terra.

482 O princípio da destinação universal dos bens oferece uma fundamental orientação, moral e cultural, para desatar o complexo e dramático nó que liga crises ambientais e pobreza. A atual crise ambiental atinge particularmente os mais pobres, seja porque vivem naquelas terras sujeitas à erosão e à desertificação, ou porque envolvidos em conflitos armados ou ainda constrangidos a migrações forçadas, seja porque não dispõem dos meios econômicos e tecnológicos para proteger-se das calamidades.

Muitíssimos destes pobres vivem nos subúrbios poluídos das cidades em alojamentos casuais ou em aglomerados de casas decadentes e perigosas. (slums, bidonvilles, Barrios, favelas).

Ademais, tenha-se sempre presente, a situação dos países penalizados pelas regras de comércio internacional não eqüitativo, nos quais prevalece uma escassez de capitais freqüentemente agravada pelo ônus da dívida externa: nestes casos a fome e a pobreza tornam quase inevitável uma exploração intensiva e excessiva do ambiente.

483 O estreito liame que existe entre desenvolvimento dos países mais pobres, crescimento demográfico e uso razoável do ambiente, não é utilizado como pretexto para escolas políticas e econômicas pouco conformes à dignidade da pessoa humana. No Norte do planeta se assiste a uma «a quebra do índice de natalidade, com repercussões sobre o envelhecimento da população, que se torna incapaz mesmo de se renovar biologicamente»[1006], ao passo que no Sul a situação é diferente. Se é verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário[1007]: «Existe uma opinião vastamente difundida, segundo a qual a política demográfica é apenas uma parte da estratégia global sobre o desenvolvimento. Por conseguinte, é importante que qualquer debate acerca de políticas demográficas tenha em consideração o desenvolvimento presente e futuro, tanto das nações como das regiões. Ao mesmo tempo, é impossível pôr de parte a natureza mesma daquilo que a palavra “desenvolvimento” significa. Qualquer desenvolvimento digno deste nome deve ser integral, ou seja, deve orientar-se para o verdadeiro bem de cada pessoa e de toda a pessoa»[1008].

484 O princípio da destinação universal dos bens se aplica naturalmente também à água, considerada nas Sagradas Escrituras como símbolo de purificação (cf. Sal 51, 4, Jo 13, 8) e de vida (cf. Jo 3,5; Gal 3,27): «Como dom de Deus, a água é instrumento vital, imprescindível para a sobrevivência e, portanto, um direito de todos»[1009]. A utilização da água e dos serviços conexos deve ser orientada à satisfação das necessidades e sobretudo das pessoas que vivem em pobreza. Um acesso limitado à água potável incide no bem-estar de um número enorme de pessoas e é freqüentemente causa de doenças, sofrimentos, conflitos, pobreza e até mesmo de morte: para ser adequadamente resolvida, tal questão «necessita … ser enquadrada de forma a estabelecer critérios morais baseados precisamente no valor da vida e no respeito pelos direitos e pela dignidade de todos os seres humanos»[1010].

485. A água, pela sua própria natureza, não pode ser tratada como uma mera mercadoria entre outras e o seu uso deve ser racional e solidário. A sua distribuição se enumera, tradicionalmente entre as responsabilidades dos órgãos públicos, porque a água sempre foi considerada como um bem público, característica que deve ser mantida caso a gestão venha a ser confiada ao setor privado. O direito à água[1011], como todos os direitos do homem, se baseia na dignidade humana, e não em considerações de tipo meramente quantitativo, que consideram a água tão somente como um bem econômico. Sem água a vida é ameaçada. Portanto, o direito à água é um direito universal e inalienável.

d) Novos estilos de vida

486 Os graves problemas ecológicos exigem uma efetiva mudança de mentalidade que induza a adotar novos estilos de vida[1012], «nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento»[1013]. Tais estilos de vida devem ser inspirados na sobriedade, na temperança, na autodisciplina, no plano pessoal e social. É necessário sair da lógica do mero consumo e promover formas de produção agrícola e industrial que respeitem a ordem da criação e satisfaçam as necessidades primárias de todos. Uma semelhante atitude, favorecida por uma renovada consciência da interdependência que une todos os habitantes da terra, concorre para eliminar diversas causas de desastres ecológicos e garante uma tempestiva capacidade de resposta quando tais desastres atingem povos e territórios[1014]. A questão ecológica não deve ser abordada somente pelas aterrorizantes perspectivas que o degrado ambiental perfila: esta deve traduzir-se, sobretudo, em uma forte motivação para uma autêntica solidariedade de dimensão universal.

487 A atitude que deve caracterizar o homem perante a criação é essencialmente a da gratidão e do reconhecimento: de fato, o mundo nos reconduz ao mistério de Deus que o criou e o sustém. Se se coloca entre parentes a relação com Deus, esvazia-se a natureza do seu significado profundo, depauperando-a. Se, ao contrário, se chega a descobrir a natureza na sua dimensão de criatura, é possível estabelecer com ela uma relação comunicativa, colher o seu significado evocativo e simbólico, penetrar assim no horizonte do mistério, franqueando ao homem a abertura para Deus, Criador dos céus e da terra. O mundo se oferece ao olhar do homem como rastro de Deus, lugar no qual se desvela a Sua força criadora, providente e redentora.

CAPÍTULO XI – A PROMOÇÃO DA PAZ

I. ASPECTOS BÍBLICOS

488 Antes de ser um dom de Deus ao homem e um projeto humano conforme o desígnio divino, a paz é antes de tudo, um atributo especial essencial de Deus: «Senhor – Paz» (Jz 6,24). A criação, que é um reflexo da glória divina, almeja a paz. Deus cria todas as coisas e toda a criação forma um conjunto harmônico, bom em todas as suas partes (cf. Gên 1,4.10.12.18.21.25.31).

A paz funda-se na relação primária entre cada ser humano e Deus mesmo, uma relação caracterizada pela retidão (cf. Gên 17,1). Em seguida ao ato voluntário com que o homem altera a ordem divina, o mundo conhece espargimento de sangue e divisão: a violência se manifesta nas relações interpessoais (cf. Gn 4,1-16) e sociais (cf. Gn 11,1-9). A paz e a violência não podem habitar na mesma morada, onde há violência aí Deus não pode estar (cf. 1 Cr 22,8-9).

489 Na Revelação bíblica, a paz é muito mais do que a simples ausência de guerra: ela representa a plenitude da vida (cf. Mt 2,5); longe de ser uma construção humana, é um sumo dom divino oferto a todos os homens, que comporta a obediência ao plano de Deus. A paz é o efeito da bênção de Deus sobre o Seu povo: «O senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz» (Num 6,26). Tal paz gera fecundidade (cf. Is 48,19), bem-estar (cf. Is 48,18), ausência de medo (cf. Lv 54,6) e alegria profunda (cf. Pr 12,20).

490 A paz é a meta da convivência social, como aparece de modo extraordinário na visão messiânica da paz: quando todos os povos forem para a casa do Senhor e Ele indicará a eles os seus caminhos, estes poderão caminhar ao longo das veredas da paz (cf. Is 2,2-5). Um mundo novo de paz, que abraça toda a natureza, é prometido para a era messiânica (cf. Is 11,6-9) e o próprio messias é definido «Príncipe da Paz» (Is 9,5). Lá onde reina a Sua paz, lá onde essa vem parcialmente antecipada, «ninguém poderá mais lançar o povo de Deus no medo (cf. Sof 3,13). A paz será então duradoura, pois quando o rei governa segundo a justiça de Deus, a retidão germina e a paz abunda «até que cesse a lua de brilhar» (Sal 71,7). Deus aspira dar a paz ao Seu povo: «ele diz palavras de paz ao seu povo, para seus fiéis, e àqueles cujos corações se voltam para ele» (Sl 84,9). O Salmista, escutando aquilo que Deus tem a dizer ao seu povo sobre a paz, ouve estas palavras: «A bondade e a fidelidade outra vez se irão unir, a justiça e a paz de novo se darão as mãos» (Sl 84,11).

491 A promessa de paz, que percorre todo o Antigo Testamento, encontra o seu cumprimento na Pessoa mesma de Jesus. A paz, de fato, é o bem messiânico por excelência, no qual estão compreendidos todos os outros bens salvíficos. A palavra hebraica «shalom», no sentido etimológico de «plenitude», exprime o conceito de «paz» na plenitude do seu significado (cf. Is 9,5 s; Mi 5,1-4). O reino do Messias é precisamente o reino da paz (cf. Jó 25,2; Sl 29,11; 37,11; 71,3.7; 84, 9.11; 118,165; 124,5; 127,6; 147,3; Ct 8,10; Is 26,3.12; 32,17 s; 52,7; 54,10; 57,19; 60,17; 66,12; Ag 2,9; Zc 9,10 et alibi). Jesus «é a nossa paz» (Ef 2,14), Ele que abateu o muro divisório da inimizade entre os homens, reconciliando-os com Deus (cf. Ef 2,14): assim São Paulo, com simplicidade, indica a razão radical que motiva os cristãos a uma vida e a uma missão de paz.

Na vigília de Sua morte, Jesus fala de Sua relação de amor com o Pai e da força unificante que este amor irradia sobre os discípulos; é um discurso de despedida que mostra o sentido profundo da Sua vida e que pode ser considerado uma síntese de todo o Seu ensinamento. Sigila o Seu testamento espiritual o dom da paz: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14,27). As palavras do Ressuscitado não ressoarão diversamente; toda vez que Ele encontrar os Seus, estes receberão d’Ele a saudação e o dom da paz: «Paz a vós» (Lc 24,36; Jo 20,19.21.26).

492 A paz de Cristo é antes de tudo a reconciliação com o Pai, que se atua mediante o missão apostólica confiada por Jesus aos Seus discípulos; esta tem início com um anúncio de paz: «Em toda a casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz a esta casa!» (Lc 10,5; cf. Rm 1, 7). A paz é pois reconciliação com os irmãos, porque Jesus, na oração que nos ensinou, o «Pai Nosso», associa o perdão pedido à Deus ao oferecido aos irmãos: «perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam» (Mt 6,12). Com esta dupla reconciliação o cristão pode tornar-se artífice da paz e, portanto, partícipe do reino de Deus, segundo quanto o mesmo Jesus proclama: «Bem-aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9).

493 A ação pela paz nunca é dissociada do anúncio do Evangelho, que é precisamente «a boa nova da paz» (At 10,36; cf. Ef 6,15), dirigida a todos os homens. No centro do «Evangelho da paz» (Ef 6,15), está o mistério da Cruz, porque a paz está inserida no sacrifício de Cristo (cf. Is 53,5: «O castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas»): Jesus crucificado cancelou a divisão, instaurando a paz e a reconciliação precisamente «pela virtude da cruz, aniquilando nela a inimizade» (Ef 2,16) e dando aos homens a salvação da Ressurreição.

II. A PAZ: FRUTO DA JUSTIÇA E DA CARIDADE

494 A paz é um valor[1015]e um dever universal[1016]e encontra o seu fundamento na ordem racional e moral da sociedade que tem as suas raízes no próprio Deus, «fonte primária do ser, verdade essencial e bem supremo»[1017]. A paz não é simplesmente ausência de guerra e tampouco um equilíbrio estável entre forças adversárias[1018], mas se funda sobre uma correta concepção de pessoa humana[1019] e exige a edificação de uma ordem segundo a justiça e a caridade.

A paz é fruto da justiça (cf. Is 32,17)[1020], entendida em sentido amplo como o respeito ao equilíbrio de todas as dimensões da pessoa humana. A paz é um perigo quando ao homem não é reconhecido aquilo que lhe é devido enquanto homem, quando não é respeitada a sua dignidade e quando a convivência não é orientada em direção para o bem comum. Para a construção de uma sociedade pacífica e para o desenvolvimento integral de indivíduos, povos e nações, resulta essencial a defesa e a promoção dos direitos humanos[1021].

A paz é fruto também do amor: «a verdadeira paz é mais matéria de caridade que de justiça, pois a função da justiça é somente remover os obstáculos para a paz, como por exemplo, a injuria e o dano caudados; mas a paz mesma é ato próprio e específico da caridade»[1022].

495 A paz se constrói dia a dia na busca da ordem querida por Deus[1023]e pode florescer somente quando todos reconhecem as próprias responsabilidades na sua promoção[1024]. Para prevenir conflitos e violências, é absolutamente necessário que a paz comece a ser vivida como valor profundo no íntimo de cada pessoa: assim pode estender-se nas famílias e nas diversas formas de agregação social, até envolver toda a comunidade política[1025]. Em um clima difuso de concórdia e de respeito à justiça, pode amadurecer uma autêntica cultura de paz[1026], capaz de difundir-se também na Comunidade Internacional. A paz é, portanto, «fruto de uma ordem inscrita na sociedade humana pelo seu Divino Fundador e que os homens, sempre desejosos de uma justiça mais perfeita, hão de fazer amadurecer»[1027]. Tal ideal de paz «não pode conseguir-se na terra se não se salvaguardar o bem dos indivíduos e os homens não comunicarem entre si com confiança as riquezas do seu espírito e das suas faculdades criadoras»[1028].

496 A violência nunca constitui uma resposta justa. A Igreja proclama, com a convicção da sua fé em Cristo e com a consciência de sua missão, «que a violência é um mal, que a violência é inaceitável como solução para os problemas, que a violência não é digna do homem. A violência é mentira, pois que se opõe à verdade da nossa fé, à verdade da nossa humanidade. A violência destrói o que ambiciona defender: a dignidade, a vida, a liberdade dos seres humanos»[1029].

Também o mundo atual necessita do testemunho dos profetas não armados, infelizmente objeto de escárnio em toda época[1030]: «Aqueles que renunciam à ação violenta e sangrenta e, para proteger os direitos do homem, recorrem a meios de defesa ao alcance dos mais fracos testemunham a caridade evangélica, contanto que isso seja feito sem lesar os direitos e as obrigações de outros homens e das sociedades. Atestam legitimamente a gravidade dos riscos físicos e morais do recurso à violência, com seu cortejo de mortes e ruínas»[1031].

III. O FALIMENTO DA PAZ: GUERRA

497 O Magistério condena «a crueldade da guerra»[1032] e pede que seja considerada com uma abordagem completamente nova[1033]: de fato, «não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados»[1034]. A Guerra é um «flagelo»[1035] e não representa nunca um meio idôneo para resolver os problemas que surgem entre as nações: «Nunca foi e jamais o será»[1036], porque gera conflitos novos e mais complexos[1037]. Quando deflagra, a guerra torna-se uma «carnificina inútil»[1038], uma «aventura sem retorno»[1039], que compromete o presente e coloca em risco o futuro da humanidade: «Nada se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra»[1040]. Os danos causados por um conflito armado, de fato, não são apenas materiais, mas também morais[1041]: a guerra é, ao fim e ao cabo, «a falência de todo o autêntico humanismo»[1042], «é sempre uma derrota da humanidade»[1043]: «nunca mais uns contra os outros, nunca mais, nunca!… nunca mais a guerra, nunca mais a guerra! »[1044].

498 A busca de soluções alternativas à guerra para resolver os conflitos internacionais assumiu atualmente um caráter de dramática urgência, porque «a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as conseqüências de um conflito»[1045]. É portanto essencial a busca das causas que originam um conflito bélico, em primeiro lugar as que se ligam a situações estruturais de injustiça, de miséria, de exploração, sobre as quais é necessário intervir com o objetivo de removê-las: «Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade coletiva de promover o desenvolvimento»[1046].

499 Os Estados nem sempre dispõem dos instrumentos adequados para promover eficazmente a própria defesa: disso resulta a necessidade e a importância das Organizações Internacionais e Regionais, que devem ser capazes de colaborar para fazer frente aos conflitos e de favorecer a paz, instaurando relações de confiança recíproca aptas a tornar impensável o recurso da guerra[1047]: «É lícito esperar que os homens, por meio de encontros e negociações, venham a conhecer melhor os laços comuns da natureza que os unem e assim possam compreender a beleza de uma das mais profundas exigências da natureza humana, a de que reine entre eles e seus respectivos povos não o temor, mas o amor, um amor que antes de tudo leve os homens a uma colaboração leal, multiforme, portadora de inúmeros bens»[1048].

a) A legítima defesa

500 Uma guerra de agressão é intrinsecamente imoral. No trágico caso em que esta se desencadeie, os responsáveis por um Estado agredido têm o direito e o dever de organizar a defesa inclusive recorrendo à força das armas[1049].O uso da força, para ser lícito, deve responder a algumas rigorosas condições: «que: ? o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade das nações seja durável, grave e certo; ? todos os outros meios de pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes; ? estejam reunidas as condições sérias de êxito; ? o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves que o mal a eliminar. O poderio dos meios modernos de destruição pesa muito na avaliação desta condição. Estes são os elementos tradicionais enumerados na chamada doutrina da “guerra justa”. A avaliação dessas condições de legitimidade moral cabe ao juízo prudencial daqueles que estão encarregados do bem comum»[1050].

Se tal responsabilidade justifica a posse de meios suficientes para exercer o direito à defesa, permanece para os Estados a obrigação de fazer todo o possível para «garantir as condições de paz não apenas sobre o próprio território, mas em todo o mundo»[1051]. Não se deve esquecer que «uma coisa é utilizar as forças militares para justa defesa dos povos, outra coisa é querer subjugar outras nações. O poderio bélico não legitima qualquer uso militar ou político dele mesmo. E depois de lamentavelmente começada a guerra, nem por isso tudo se torna lícito entre as partes inimigas»[1052].

501 A Carta das Nações Unidas, nascida da tragédia da Segunda Guerra Mundial e voltada a preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, se baseia na interdição generalizada do recurso à força para resolver as controvérsias entre os Estados, exceto em dois casos: a legítima defesa e as medidastomadas pelo Conselho de Segurança no âmbito das suas responsabilidades para manter a paz. Em todo caso, o exercício do direito a defender-se deve respeitar «os limites tradicionais de necessidade e de proporcionalidade»[1053].

Quando, ademais, a uma ação bélica preventiva, lançada sem provas evidentes de que uma agressão está para ser desferida, essa não pode deixar de levantar graves questões sob o aspecto moral e jurídico. Portanto, somente uma decisão dos organismos competentes, com base em rigorosas averiguações e motivações fundadas, pode dar legitimação internacional ao uso da força armada, identificando determinadas situações como uma ameaça à paz e autorizando uma ingerência na esfera do domínio reservado de um Estado.

b) Defender a paz

502 As exigências da legítima defesa justificam a existência, nos Estados, das forças armadas, cuja ação deve ser posta ao serviço da paz: os que com tal espírito tutelam a segurança e a liberdade de um País, dão um autêntico contributo à paz[1054]. Toda a pessoa que presta serviço nas forças armadas é concretamente chamada a defender o bem, a verdade e a justiça no mundo; não poucos são aqueles que nas forças armadas sacrificaram a própria vida por tais valores e para defender vidas inocentes. O crescente número de militares que atuam no seio de forças multinacionais, no âmbito das «missões humanitárias e de paz», promovidas pelas Nações Unidas, é um fato significativo[1055].

503 Todo membro das forças amadas está moralmente obrigado a opor-se às ordens que incitam a cumprir crimes contra o direito das nações e os seus princípios universais[1056].Os militares permanecem plenamente responsáveis pelas ações que cometem em violação dos direitos das pessoas e dos povos ou das normas do direito internacional humanitário. Tais atos não podem ser justificadas com o motivo da obediência a ordens superiores.

Os objetores de consciência, os quais se recusam por principio a efetuar o serviço militar nos casos em que este seja obrigatório, porque a sua consciência os leva a rejeitar qualquer forma de uso da força, ou mesmo a participação em um determinado conflito, devem estar disponíveis a desempenhar outros tipos de serviços: «Parece justo que as leis prevejam o caso dos que, por imperativos de consciência, recusam tomar as armas, desde que entretanto aceitem servir, de outra forma, a comunidade humana»[1057].

c) O dever de proteger os inocentes

504 O direito ao uso da força com o objetivo de legítima defesa é associado ao dever de proteger e ajudar as vítimas inocentes que não podem defender-se das agressões. Nos conflitos da era moderna, freqüentemente no seio do próprio Estado, as disposições do direito internacional humanitário devem ser plenamente respeitados. Em muitas circunstâncias a população civil é atingida, por vezes também como objetivo bélico. Em alguns casos, é brutalmente massacrada ou desenraizada das próprias casas e das próprias terras com transferências forçadas, sob o pretexto de uma «purificação étnica»[1058] inaceitável. Em tais trágicas circunstâncias, é necessário que as ajudas humanitárias cheguem à população civil e que não sejam jamais utilizadas para condicionar os beneficiados: o bem da pessoa humana deve ter precedência sobre os interesses das partes em conflito.

505 O princípio de humanidade, inscrito na consciência de cada pessoa e povo, comporta a obrigação de manter as populações civis ao abrigo dos efeitos da guerra: «Aquele mínimo de proteção à dignidade de todo o ser humano, garantido pelo direito internacional humanitário, é com muita freqüência violado em nome de exigências militares ou políticas, que jamais deveriam prevalecer sobre o valor da pessoa humana. Sente-se hoje a necessidade de encontrar um novo consenso sobre os princípios humanitários e de consolidar os fundamentos, a fim de impedir o repetir-se de atrocidades e abusos»[1059].

Uma categoria particular de vítimas da guerra é a dos refugiados, constrangidos pelos combates a fugir dos lugares em que vivem habitualmente, até mesmo a encontrar abrigo em países diferentes daqueles em que nasceram. A Igreja está do lado deles, não só com a presença pastoral e com o socorro material, mas também com o empenho de defender a sua dignidade humana: «A solicitude pelos refugiados deve esforçar-se por reafirmar e sublinhar os direitos humanos, universalmente reconhecidos, e a pedir que para eles sejam efetivamente realizados»[1060].

506 As tentativas de eliminação de inteiros grupos nacionais, étnicos, religiosos ou lingüísticos são delitos contra Deus e contra a própria humanidade e os responsáveis de tais crimes devem ser chamados a responder diante da justiça[1061]. O século XX caracterizou-se tragicamente por vários genocídios: daquele dos armênios ao dos ucranianos, do dos cambojanos àqueles ocorridos na África e nos Bálcãs. Dentre eles se destaca o holocausto do povo hebraico, a Shoah: «os dias da Shoah assinalaram uma verdadeira noite na história, registrando crimes inauditos contra Deus e contra o homem»[1062].

A Comunidade Internacional no seu conjunto tem a obrigação moral de intervir em favor destes grupos, cuja própria sobrevivência é ameaçada ou daqueles que os direitos fundamentais são maciçamente violados. Os estados, enquanto parte de uma comunidade internacional, não podem ficar indiferentes: ao contrário, se todos os outros meios à disposição se revelarem ineficazes, é «legítimo e até forçoso empreender iniciativas concretas para desarmar o agressor»[1063].O princípio da soberania nacional não pode ser aduzido como motivo para impedir a intervenção em defesa das vítimas[1064].As medidas adotadas devem ser realizadas no pleno respeito do direito internacional e do princípio fundamental da igualdade entre os Estados.

A Comunidade internacional dotou-se também de uma Corte Penal Internacional para punir os responsáveis por atos particularmente graves: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão. O Magistério não deixou de encorajar repetidamente tal iniciativa[1065].

d) Medidas contra quem ameaça a paz

507 As sanções, nas formas previstas do ordenamento internacional contemporâneo, miram a corrigir o comportamento do governo de um País que viola as regras da convivência internacional pacífica e ordenada ou que põe em prática formas graves de opressão sobre a população. As finalidades das sanções devem ser precisadas de modo inequívoco e as medidas adotadas devem ser periodicamente verificadas pelos organismos competentes da Comunidade Internacional, para uma objetiva avaliação da sua eficácia e do seu real impacto sobre a população civil. O verdadeiro objetivo de tais medidas é abrir o caminho para as tratativas e o diálogo. As sanções não devem jamais constituir um instrumento de punição direta contra toda uma população: não é lícito que devido às sanções venham sofrer inteiras populações e especialmente os seus membros mais vulneráveis. As sanções econômicas, em particular, são um instrumento a ser utilizado com grande ponderação e a ser submetidos a rígidos critérios jurídicos e éticos[1066]. O embargo econômico deve ser limitado no tempo e não pode ser justificado quando os efeitos que produzem se revelam indiscriminados.

e) O desarmamento

508 A doutrina social propõe a meta de um «desarmamento geral, equilibrado e controlado»[1067]. O enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz. O princípio de suficiência, em virtude do qual um Estado pode possuir unicamente os meios necessários para a sua legítima defesa, deve ser aplicado seja pelos Estados que compram armas, seja por aqueles que as produzem e as fornecem[1068]. Todo e qualquer acúmulo excessivo de armas ou o seu comércio generalizado não podem ser justificados moralmente; tais fenômenos devem ser avaliados também à luz da normativa internacional em matéria de não-proliferação, produção, comércio e uso dos diferentes tipos de armamentos. As armas não devem jamais ser consideradas à guisa dos outros bens intercambiados em plano mundial ou nos mercados internos[1069].

O Magistério, ademais, expressou uma avaliação moral do fenômeno da dissuasão: «A acumulação de armas parece a muitos uma maneira paradoxal de dissuadir da guerra os eventuais adversários. Vêem nisso o mais eficaz dos meios suscetíveis de garantir a paz entre as nações. Este procedimento de dissuasão impõe severas reservas morais. A corrida aos armamentos não garante a paz. Longe de eliminar as causas da guerra, corre o risco de agravá-las»[1070]. As políticas de dissuasão nuclear, típicas do período da chamada Guerra Fria, devem ser substituídos por medidas concretas de desarmamento, baseadas no diálogo e na negociação multilateral.

509 As armas de destruição de massa – biológicas, químicas e nucleares – representam uma ameaça particularmente grave; aqueles que as possuem têm uma responsabilidade enorme diante de Deus e de toda a humanidade[1071].O princípio da não proliferação das armas nucleares juntamente com as medidas de desarmamento nuclear, assim como a proibição dos testes nucleares, são objetivos estritamente ligados entre si, que devem ser atingidos o mais rápido possível mediante controles eficazes no plano internacional[1072].A proibição de desenvolvimento, de aumento de produção, de acúmulo e de emprego das armas químicas e biológicas, assim como as decisões que impõem a sua destruição, completam o quadro normativo internacional para o abandono de tais armas nefastas[1073], cujo uso é explicitamente reprovado pelo Magistério: «Toda a ação bélica, que tende indistintamente para a destruição de cidades inteiras e de extensas regiões com os seus habitantes, é um crime contra Deus e contra o próprio homem, e como tal deve ser condenada firmemente e sem hesitação»[1074].

510 O desarmamento deve estender-se à interdição das armas que infligem efeitos traumáticos excessivos ou cujo efeito é indiscriminado, assim como as minas anti-homem, um tipo de pequenos dispositivos, desumanamente insidiosos, pois que continuam a provocar vítimas mesmo muito tempo depois do fim das hostilidades: os Estados que as produzem, as comercializam ou as usam ainda são responsáveis por retardar gravemente a definitiva interdição de tais instrumentos mortíferos[1075]. A comunidade internacional deve continuar a empenhar-se na atividade de desativação das minas, promovendo uma cooperação eficaz, inclusive a formação técnica, com os países que não dispõem de meios próprios adequados para efetuar a urgentíssima depuração de seus territórios e que não são capazes fornecer uma assistência adequada às vítimas das minas.

511 Medidas apropriadas são necessárias para o controle da produção, da venda, da importação e da exportação de armas leves e individuais, que facilitam muitas manifestações de violência. A venda e o tráfico de tais armas constituem uma séria ameaça para a paz: estas são as armas mais utilizadas nos conflitos internacionais e a sua disponibilidade faz aumentar o risco de novos conflitos e a intensidade daqueles em curso. A postura dos Estados que aplicam severos controles sobre a transferência internacional de armamentos pesados, mas não prevêem nunca, ou tão-somente em raras ocasiões, restrições sobre o comércio das armas leves e individuais, é uma contradição inaceitável. É indispensável e urgente que os governos adotem regras adequadas para controlar a produção, o acúmulo, a venda e o tráfico de tais armas[1076],de modo a fazer frente à crescente difusão, em larga parte entre grupos de combatentes que não pertencem às forças militares de um Estado.

512 A utilização de crianças e adolescentes como soldados em conflitos armados ? não obstante o fato de que a sua jovem idade não deva permitir o se recrutamento ? deve ser denunciada. Eles são coagidas com a força a participar dos conflitos, ou ainda o fazem por iniciativa própria sem ser plenamente cônscios das conseqüências. São crianças privadas não apenas da instrução que deveriam receber e de uma infância normal, mas também adestradas a matar: tudo isto constitui um crime intolerável. O seu emprego nas forças combatentes de qualquer tipo deve ser impedido; contemporaneamente, é preciso fornecer toda a ajuda possível para a cura, a educação e a reabilitação daqueles que foram envolvidos nos combates.[1077]

f) A condenação ao terrorismo

513 O terrorismo é uma das formas mais brutais de violência que atualmente atribula a Comunidade Internacional: semeia ódio, morte, desejo de vingança e de represália[1078]. De estratégia subversiva típica somente de algumas organizações extremistas, ordenada à destruição das coisas e à morte de pessoas, o terrorismo se transformou em uma rede obscura de cumplicidades políticas, utiliza também meios técnicos sofisticados, vale-se freqüentemente de enormes recursos financeiros e elabora estratégias de vasta escala, atingindo pessoas totalmente inocentes, vítimas casuais das ações terroristas[1079]. Alvos dos ataques terroristas são, em geral, os lugares da vida cotidiana e não objetivos militares no contexto de uma guerra declarada. O terrorismo atua e ataca no escuro, fora das regras com que os homens procuraram disciplinar, por exemplo, mediante o direito internacional humanitário, os seus conflitos: «Em muitos casos, o uso dos métodos do terrorismo tem-se como novo sistema de guerra»[1080]. Não se devem descurar as causas que podem motivar tal inaceitável forma de reivindicação. A luta contra o terrorismo pressupõe o dever moral de contribuir para criar as condições a fim de que esse não nasça ou se desenvolva.

514 O terrorismo deve ser condenado do modo mais absoluto. Este manifesta o desprezo total da vida humana e nenhuma motivação pode justificá-lo, pois que o homem é sempre fim e nunca meio. Os atos de terrorismo atentam contra a dignidade do homem e constituem uma ofensa para a humanidade inteira: «Existe por isso um direito a defender-se do terrorismo»[1081]. Tal direito não pode, todavia ser exercido no vácuo de regras morais e jurídicas, pois que a luta contra o terrorismo deve ser conduzida no respeito dos direitos do homem e dos princípios de um Estado de direito[1082]. A identificação dos culpados deve ser devidamente provada, pois a responsabilidade penal é sempre pessoal e, portanto, não pode ser estendida às religiões, às nações, às etnias, às quais os terroristas pertencem. A colaboração internacional contra a atividade terrorista «não pode exaurir-se meramente em operações repressivas e punitivas. É essencial que o recurso necessário à força seja acompanhado por uma análise corajosa e lúcida das motivações subjacentes aos ataques terroristas»[1083]. É necessário também um particular empenho no plano «político e pedagógico»[1084] para revolver, com coragem e determinação, os problemas que, em algumas dramáticas situações, possam alimentar o terrorismo: «O recrutamento dos terroristas, de fato, é mais fácil em contextos sociais onde os direitos são espezinhados e as injustiças longamente toleradas»[1085].

515 É profanação e blasfêmia proclamar-se terrorista em nome de Deus[1086].Neste caso se instrumentaliza também a Deus e não apenas o homem, enquanto se presume possuir totalmente a Sua verdade ao invés de procurar ser possuído por ela. Definir «mártires» aqueles que morrem executando atos terroristas é distorcer o conceito de martírio, que é testemunho de quem se deixa matar por não renunciar a Deus e não de quem mata em nome de Deus.

Nenhuma religião pode tolerar o terrorismo e, menos ainda, pregá-lo[1087]. As religiões estão antes empenhadas em colaborar para remover as causas do terrorismo e para promover a amizade entre os povos[1088].

IV. O CONTRIBUTO DA IGREJA PARA A PAZ

516 A promoção da paz no mundo é parte integrante da missão com que a Igreja continua a obra redentora de Cristo sobre a terra. A Igreja, de fato, é, «em Cristo, “sacramento”, ou seja, sinal e instrumento de paz no mundo e para o mundo»[1089]. A promoção da verdadeira paz é uma expressão da fé cristã no amor que Deus nutre por cada ser humano. Da fé libertadora no amor de Deus derivam uma nova visão do mundo e um novo modo de aproximar-se do outro, seja esse outro um indivíduo ou um povo inteiro: é uma fé que muda e renova a vida, inspirada pela paz que Cristo deixou aos Seus discípulos (cf. Jo 14,27).Movida unicamente por tal fé, a Igreja entende promover a unidade dos cristãos e uma fecunda colaboração com os crentes de outras religiões. As diferenças religiosas não podem e não devem constituir uma causa de conflito: a busca comum da paz por parte de todos os crentes é antes um forte fator de unidade entre os povos[1090]. A Igreja exorta pessoas, povos, Estados e nações a se tornarem participantes da sua preocupação com o restabelecimento e a consolidação da paz, ressaltando em particular a importante função do direito internacional[1091].

517 A Igreja ensina que uma verdadeira paz só é possível através do perdão e da reconciliação[1092]. Não é fácil perdoar diante das conseqüências da guerra e dos conflitos, porque a violência, especialmente quando conduz «até aos abismos da desumanidade e da desolação»[1093], deixa sempre como herança um pesado fardo de dor, que pode ser aliviado somente por uma reflexão profunda, leal e corajosa, comum aos contendores, capaz de enfrentar as dificuldades do presente com uma atitude purificada pelo arrependimento. O peso do passado, que não pode ser esquecido, pode ser aceito somente na presença de um perdão reciprocamente oferecido e recebido: trata-se de um percurso longo e difícil, mas não impossível[1094].

518 O perdão recíproco não deve anular as exigências da justiça e nem, tão pouco, bloquear o caminho que leva à verdade: justiça e verdade representam, pelo contrário, os requisitos concretos da reconciliação. São oportunas as iniciativas que tendem a instituir Organismos judiciários internacionais. Semelhantes Organismos, valendo-se do princípio da jurisdição universal e apoiados em procedimentos adequados, respeitosos dos direitos dos imputados e das vítimas, podem acertar a verdade sobre crimes perpetrados durante os conflitos armados[1095]. É necessário, todavia, ir além das determinações dos comportamentos delituosos, tanto ativos como omissivos, e além das decisões referentes aos procedimentos de reparação, para chegar ao restabelecimento de relações de recíproco acolhimento entre os povos divididos, sob o signo da reconciliação[1096]. Ademais, é necessário promover o respeito do direito à paz: tal direito «favorece a construção duma sociedade no interior da qual as relações de força são substituídas por relações de colaboração em ordem ao bem comum»[1097].

519 A Igreja luta pela paz com a oração. A oração abre o coração não só a uma profunda relação com Deus, como também ao encontro com o próximo sob o signo do respeito, da confiança, da compreensão, da estima e do amor[1098]. A oração infunde coragem e dá apoio a todos «os verdadeiros amigos da paz»[1099], os quais procuram promovê-la nas várias circunstâncias em que se encontram a viver. A oração litúrgica é «simultaneamente cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e a fonte da qual promana toda a sua força»[1100]; em particular a celebração eucarística, «fonte e convergência de toda a vida cristã»[1101],é nascente inesgotável de todo autêntico compromisso cristão pela paz[1102].

520 Os Dias Mundiais da Paz são celebrações de particular intensidade para a oração de invocação da paz e para o compromisso de construir um mundo de paz. O Papa Paulo VI as instituiu com o objetivo de «que se dedique aos pensamentos e aos propósitos da Paz uma celebração especial, no primeiro dia do ano civil»[1103]. As Mensagens pontifícias por ocasião de celebração anual constituem uma rica fonte de atualização e de desenvolvimento da doutrina social e mostram o constante esforço da ação pastoral da Igreja em favor da paz: «A Paz impõe-se somente com a paz, com aquela paz nunca disjunta dos deveres da justiça, mas alimentada pelo sacrifico de si próprio, pela clemência, pela misericórdia e pela caridade»[1104].

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