Pecado original

– “Eis que fui criado em iniquidade; em pecado minha mãe me concebeu” (Salmo 51,5).

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Muitas pessoas hoje negam a realidade do pecado original. Os pensadores modernos afirmam que a Evolução refuta [tal realidade]. Alguns se opõem à ideia de herdar o pecado dos nossos pais, enquanto outros simplesmente negam o próprio pecado. Alguns cristãos afirmam que a Bíblia nunca o ensina e assim por diante. No entanto, G. K. Chesterton, enquanto ainda era anglicano, escreveu em seu livro “Ortodoxia”, que o pecado original é a mais óbvia de todas as doutrinas cristãs.

De acordo com o Catecismo da Igreja Católica (CIC), a doutrina do pecado original é, em certo sentido, o lado oposto da doutrina da Redenção (cf. CIC 389). Em Gênesis 2-3, Deus criou o homem à Sua imagem e estabeleceu nossos primeiros pais – Adão e Eva – em Sua amizade. Essa amizade incluía a graça santificadora: o dom da santidade e da vida eterna. Adão, no entanto, escolheu livremente viver separado de Deus, confiando no conhecimento do bem e do mal, querendo ser como Deus. Adão rejeitou Deus por desobediência e perdeu essa amizade para si e para nós. Essa perda é o pecado original (cf. Gênesis 3,22-24; CIC 396-399).

O conceito de pecado original não é exclusivamente católico. Apesar de alguns protestantes evangélicos poderem fechar a porta ao termo, eles prontamente reconhecem a queda da humanidade e aceitam Jesus Cristo como seu Salvador. Pois bem: sem o pecado original não haveria necessidade de um Salvador. A história de Adão e Eva, encontrada no livro do Gênesis, foi recebida da nossa herança hebraica (cf. Gênesis 3). Até os pagãos da Grécia antiga possuíam uma ideia minuciosa do pecado original e o expressavam imperfeitamente no conto da “Caixa de Pandora”.

A doutrina do pecado original não pode ser provada pela razão natural, mas é facilmente testemunhada pelos seus sintomas: a necessidade de policiamento, o colapso das grandes civilizações, suicídio, sofrimento e assim por diante. Outro sintoma é a guerra. As pessoas sempre matam e sempre se matam em maciça quantidade. As culturas civilizadas mais avançadas somente executam a guerra com mais eficiência. A guerra não é reservada exclusivamente para as nações: gangues de rua, famílias [mafiosas] ou um único terrorista podem travar uma guerra. A guerra é exclusivamente um empreendimento humano. Os macacos, embora sejam ágeis com as mãos, não fabricam bombas, armas ou facas. Por outro lado, o homem fabricou as armas mais primitivas antes que a História o pudesse registrar. Nos últimos anos, o homem enviou com sucesso robôs para explorar planetas distantes, mas ainda vive sob a ameaça de um holocausto nuclear. Embora o homem seja inteligente e capaz de realizar grandes obras, a guerra rapidamente nos recorda o nosso estado decaído: um estado que às vezes parece estar abaixo dos animais. Sem a doutrina do pecado original, esse paradoxo da humanidade seria um mistério ainda mais profundo.

Pensadores modernos podem afirmar que a Evolução refuta o pecado original, ainda que a Evolução seja somente uma Teoria. Mesmo que a Evolução fosse comprovada como fato, os fósseis poderiam nos dizer algo sobre os nossos primeiros pais e suas almas espirituais. Também pesquisas recentes em DNA mitocondrial humano[*] tendem a indicar que a raça humana descende de uma única mulher (talvez uma evidência científica de Eva). Pois bem: a Evolução não desmente o pecado original, mas, pelo contrário, o pecado parece desmentir a Evolução. A Evolução não explica o revés pecaminoso do homem. Se o homem evoluiu dos animais, o homem também compartilha uma digressão comum ausente nos animais.

Alguns podem se opor à ideia de herdar o pecado; no entanto, essas pessoas se esquecem da solidariedade humana: a raça humana como uma grande família. Embora sejamos responsáveis ​​pelas nossas ações devido ao livre arbítrio humano, as nossas ações ainda afetam outras pessoas e vice-versa. Se eu dirijo bêbado, esta minha ação pode privar outra pessoa da vida. Se meus filhos me virem roubando, eles provavelmente preferirão roubar como resultado do meu [mau] exemplo; e assim por diante. Pois bem: o pecado original não é devido à nossa ação, portanto não é culpa nossa (cf. CIC 405). No entanto, como resultado da solidariedade humana e de Adão como pai da raça humana, ainda herdamos o estado do pecado de Adão: “uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais” (cf. CIC 404). Essa desarmonia entre o livre arbítrio e a solidariedade humana é consequência do pecado original.

Outros podem não só negar o pecado original, mas também qualquer pecado. Por exemplo: os socialistas tentam substituir a responsabilidade pessoal pelo comportamento humano por forças impessoais, como a distribuição desigual da riqueza; os humanistas reduzem os pecados pessoais a problemas sociais e acreditam que o homem pode eventualmente resolver todos os problemas, não enxergando a necessidade de um Salvador divino. Outros pensadores podem não querer reconhecer seus próprios pecados pessoais, ainda que o reconheçam prontamente quando outros os violam. Esses pensadores negam arrogantemente a fraqueza fundamental do homem e a dependência [que temos] de Deus, nosso Criador.

Pois bem: o termo “pecado original” não é encontrado na Bíblia; no entanto, a doutrina está aí presente. O rei Davi se refere a ele no Salmo 51,5 (em epígrafe). Jó o declara de maneira poética:

  • “O homem, nascido da mulher, é de poucos dias e farto de inquietação (…) Quem do imundo tirará o puro? Ninguém!” (Jó 14,1.4)

Ambas as passagens implicam que nossa pecaminosidade é herdada dos nossos pais, ainda que não haja menção ao pecado de Adão.

A revelação mais clara sobre o pecado original encontra-se nas Epístolas de São Paulo, especialmente em Romanos 5,12-20. São Paulo escreve:

  • “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação da vida. Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos” (Romanos 5,18-19).

A desobediência original de Adão nos tornou todos pecadores, enquanto a obediência de Cristo na cruz nos salva dos nossos pecados. São Paulo também escreve:

  • “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens; por isso que todos pecaram” (Romanos 5,12).

O pecado de Adão também trouxe morte; no entanto, a morte aqui não deve ser meramente imaginada em termos de morte corporal, como aquela que todos os animais experimentam, mas no sentido espiritual, como perda da vida eterna (cf. CIC 403). Essa passagem também implica que, embora Adão tenha trazido a morte ao mundo, também somos responsáveis, pois todos nós pecamos. Em outros lugares, São Paulo escreve:

  • “Porque assim como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um homem. Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo” (1Coríntios 15,21-22).
  • “Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também” (Efésios 2,3).

Esta situação não deve ser considerada totalmente sem esperança. O pecado de Adão nos rendeu um Redentor do pecado e da morte (cf. Gênesis 3,15). Na Missa do Sábado Santo, dizemos: “Ó feliz culpa, ó pecado necessário de Adão, que nos conquistou tão grande Redentor!” Como resultado do pecado original, necessitamos de Jesus Cristo. Esse pecado deu a Deus a oportunidade de compartilhar conosco o Seu Filho Único. A vitória de Cristo sobre o pecado ganhou mais bênçãos do que aquelas perdidas pelo pecado de Adão (cf. CIC 420). Nas palavras de São Paulo, “onde o pecado abundou, a graça abundou ainda mais” (Romanos 5,20). Deus operou através do pecado de Adão para nosso bem maior e Sua glória.

Através da ressurreição de Cristo, o Batismo restabelece a amizade de Deus conosco por lavar para longe esse pecado da nossa alma (cf. 1Pedro 3,21). No Batismo, recebemos a graça santificadora e nascemos novamente para a vida eterna (cf. João 3,5). A graça santificante nos torna agradáveis ​​a Deus (cf. CIC 2024). O Batismo não cancela todos os efeitos do pecado de Adão, como a concupiscência (a inclinação ao mal, cf. CIC 405); mas ele e os demais Sacramentos nos dão a graça necessária para “trabalharmos (nossa) própria salvação com temor e tremor” (cf. Filipenses 2,12).

Em suma: os sintomas do pecado original demonstram a nossa necessidade de Deus. O pecado original é a perda da santidade e justiça originais, devido ao pecado de Adão. Como resultado, o homem se afasta de Deus e também dos outros homens. O homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal. A negação desse fato só pode levar a graves erros na educação, política, ação social e moral (cf. CIC 407). A revelação do pecado original não pode ser comprometida sem também comprometer a revelação da nossa salvação.

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Nota:
[*] O DNA mitocondrial é um material genético herdado apenas da mãe e não do pai, diferentemente do DNA nucléico.

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