Pequeno tratado teológico em versos

DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO

Ó que pão, ó que comida,

ó que divino manjar

se nos dá no santo altar

cada dia!

 

Filho da Virgem Maria,

que Deus-Padre cá mandou

e por nós na cruz passou

crua morte,

 

e para que nos conforte

se deixou no sacramento

para dar-nos, com aumento,

sua graça,

 

esta divina fogaça

é manjar de lutadores,

galardão de vencedores

esforçados,

 

deleite de namorados,

que co?o gosto desse pão,

deixam a deleição

transitória.

 

Quem quiser haver vitória

Do falso contentamento,

Goste deste sacramento

divinal.

 

Este dá vida imortal,

este mata toda fome,

porque nele Deus e homem

se contém.

 

É fonte de todo o bem,

da qual quem bem se embebeda

não tenha medo da queda

do pecado.

 

Ó que divino bocado,

que tem todos os sabores!

Vinde, pobres pecadores,

a comer!

 

Não tendes de que temer,

senão de vossos pecados.

Se forem bem confessados,

isto basta,

 

qu?este manjar tudo gasta,

porque é fogo gastador,

que com seu divino ardor

tudo abrasa.

 

É pão dos filhos da casa,

Com que sempre se sustentam

E virtudes acrescentam

de contino.

 

Todo al é desatino,

se não comer tal vianda

com que a alma sempre anda

satisfeita.

 

Este manjar aproveita

para vícios arrancar

e virtudes arraigar

nas entranhas.

 

Suas graças são tamanhas

que não se podem contar,

mas bem que se podem gostar

de quem ama(1).

 

Sua graça se derrama

nos devotos corações

e os enche de benções

copiosas.

 

Ó entranhas piedosas

do vosso divino amor!

Ó meu Deus e meu Senhor

humanado!

 

Quem vos fez tão namorado

de quem tanto vos ofende?

Quem vos ata? Quem vos prende

com tais nós?

 

Por caber dentro de nós

vos fazeis tão pequenino,

sem o vosso ser divino

se mudar!

 

Para vosso amor plantar

dentro em nosso coração,

achastes tal invenção

de manjar,

 

em o qual nosso padar(2)

acha gostos diferentes

debaixo dos acidentes

escondidos.

 

Uns são todos incendidos

do fogo do vosso amor;

outros, cheios de temor

filial;

 

outros, co?o celestial

lume deste sacramento,

alcançam conhecimento

de quem são;

 

outros sentem compaixão

de seu Deus, que tantas dores,

por nos dar estes sabores,

quis sofrer,

 

e desejam de morrer

por amor de seu amado,

vivendo sem ter cuidado

desta vida.

 

Quem viu nunca tal comida,

Que é sumo e todo bem?

Ai de nós! Que nos detém?

Que buscamos?

 

Como não nos enfrascamos

nos deleites deste pão,

com que nosso coração

tem fartura?

 

Se buscamos formosura,

nele está toda medida;

se queremos achar vida,

esta é.

 

Aqui se refina a fé,

pois debaixo do que vemos,

estar Deus e homem cremos,

sem mudança.

 

Acrescenta-se a esperança,

pois na terra nos é dado

quanto nos céus guardado

nos está.

 

A caridade, que lá

há de ser aperfeiçoada,

deste pão é confirmada

em pureza.

 

Dele nasce a fortaleza,

ele dá perseverança,

pão de bem-aventurança,

pão de glória,

 

deixado na memória

da morte do Redentor,

testemunho de seu amor

verdadeiro.

 

Ó mansíssimo cordeiro,

ó menino de Belém,

ó Iesu, todo o meu bem,

meu amor,

 

meu esposo, meu senhor,

meu amigo, meu irmão,

centro de meu coração,

Deus e pai!

 

Pois com entranhas de mãe

quereis de mim ser comido,

roubai todo o meu sentido

para vós!

 

Prendei-me com fortes nós,

Iesu, filho de Deus vivo,

pois que sou seu cativo,

que comprastes

 

coó sengue, que derramastes,

com vida, que perdestes,

com morte, que quisestes

padecer!

 

Morra eu, por que viver

vós possais dentro de mi.

Ganhai-me, pois me perdi

em amai-me.

 

Pois que para incorporar-me

e mudar-me em vós de todo,

com um tão divino modo

me mudais,

 

quando na minh?almaentrais

e dela fazeis sacrário

de vós mesmo, e relicário

que vos guarda,

 

enquanto a presença tarda

do vosso divino rosto,

sab?roso e doce gosto

deste pão

 

seja minha refeição

e todo meu apetite,

seja gracioso convite

de minha alma,

 

ar fresco de minha calma,

fogo de minha frieza,

fonte viva de limpeza,

doce beijo

 

mitigador do desejo

com que a vós suspiro e gemo,

esperança do que temo

de perder.

 

Pois não vivo sem comer,

Coma-vos, em vós vivendo,

Viva a vós, a vós comendo,

doce amor!

 

Comendo de tal penhor,

nele tenha minha parte

e depois, de vós me farte

com vos ver!

 

Amém.

 

  1. Entenda-se: bem podem ser apreciadas por aquele que ama.
  2. Padar ? paadar, apóc. (= paladar).

 

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