Por que ser fiel à Igreja?

Em síntese: A Igreja é mais do que a soma de seus membros: é, como diz São Paulo, o Corpo de Cristo prolongado (cf. Cl 1,24: 1Cor 12,12-30) Cristo fundou-a e prometeu-lhe sua infalível assistência (cf. Mt 16,16-19; 28,18-20) para que transmita incólume o depósito da fé e da Moral reveladas. Se não fosse a Igreja assim constituída, os artigos da fé e da Moral estariam entregues à arbitrariedade dos homens e se diluiriam ou perderiam. Se na Igreja existem falhas, estas se devem ao pesso-al da Igreja, ou seja, aos filhos da Igreja, que procedem à revelia dos preceitos de sua Mãe ou da Pessoa da Igreja. A própria Igreja tira do seu bojo o remédio para atender às deficiências dos seus membros enfer-mos. – Eis porque “não pode ter Deus por Pai no céu quem não tem a Igreja por Mãe na terra” (S. Cipriano).

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Há quem diga: “Sou fiel a Jesus Cristo, mas não à Igreja”; em consequência, muitos fazem seu Cristianismo particular, crêem no que lhes parece merecer crédito e praticam o que julgam acertado.

Esta atitude fere o Evangelho e a Tradição cristã. O Evangelho relata que Jesus quis fundar sua Igreja (“minha Igreja”, Mt 16,18) e a confiou a Pedro como Rocha visível (cf. Mt 16,6-19(1), como Mestre destinado a confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,31s) e como Pastor do rebanho (cf. Jo 21,15-17). Além disto, o Senhor prometeu não somente sua assistência infalível (“Eis que estarei convosco até a consumação dos séculos, Mt 28,20), mas também a do Espírito Santo como Consolador e Iluminador dos fiéis (cf. Jo 14,26; 16,13-15).

E por que Jesus quis fundar a Igreja assim constituída?

Para que fosse guardada incólume a mensagem do Evangelho. Esta não podia ficar ao léu, entregue aos pareceres e aos caprichos hu-manos. O sacrifício de Cristo na Cruz teria sido inútil se não houvesse uma instância divinamente capacitada para garantir a transmissão fiel da Boa-Nova; ao cabo de certo tempo não haveria mais o Evangelho de Jesus, mas os evangelhos de homens tidos corno carismáticos e inspira-dos, mas na verdade deturpadores da autêntica mensagem. Aliás, é isto que se dá no protestantismo, que relativiza a Igreja e toma a Bíblia como única fonte de fé, interpretada segundo o livre exame ou a intuição subjetiva de cada crente; daí procedem centenas e centenas de denominações cristãs, umas observando o sábado, outras observando o domingo, umas batizando crianças, outras somente adultos, umas conservando a hierarquia (bispos, presbíteros, diáconos), outras sem hierarquia. O esfacelamento chega a tal ponto que algumas correntes derivadas do protestantismo já não aceitam a Divindade de Jesus, como as Testemunhas de Jeová, ou têm uma nova Bíblia, como é o Livro dos Mórmons.

Assim estabelecida por Cristo, a Igreja é mais do que a soma de seus membros ou mais do que uma assembléia de pessoas que lêem o Evangelho e procuram edificar-se mutuamente. Ela é uma realidade divino-humana, ilustrada por São Paulo mediante a imagem do Corpo cuja Cabeça é Cristo (cf. 1Cor 12,12-27); entre Cabeça e membros há  um fluxo e refluxo de vida, ha uma comunhão de vida, como acontece com o tronco e os ramos da videira (cf. Jo 15,1-5).

Estas verdades nos levam a distinguir entre Pessoa pessoal da Igreja. Pessoa é o que há de divino na Igreja: é o seu aspecto indefectível que se exerce quando se trata de artigos de fé e de Moral a ser professado por todos os fiéis. Pessoal da Igreja é o aspecto humano da mesma; somos nós, sujeitos a falhas. Ocorre, porém, que as falhas do “pessoal”. não impedem a ação divina e santificadora da Pessoa da Igreja. O ouro de Deus pode passar por mãos sujas, mas chega incontaminado aos seus destinatários; assim foi e será até o fim dos tempos. Por isto a Igreja é inseparável de Cristo e do Pai; foi Jesus quem disse aos Apóstolos:

“Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita; e, quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Lc 10, 16).

Quando o Papa pede perdão pelo passado, ele o pede pelas falhas de filhos da Igreja, que se desviaram das normas do Evangelho. Esses desvios, porém, não comprometem o magistério da Igreja, que goza de especial assistência do Espírito Santo quando ensina verdades de fé e  de Moral, orientando os fiéis pelos caminhos da VIDA.

A Tradição cristã é muito enfática ao falar do amor à Igreja. Ouçamos São João Crisóstomo (+ 407):

“Não te afastes da Igreja. Nada é mais forte do que ela. Ela é a tua esperança, o teu refúgio. Ela é mais alta do que o céu e mais vasta do  que a terra. Ela nunca envelhece.”

São Cipriano de Cartago (+ 258), por sua vez, escreve:

A esposa de Cristo não pode ser adulterada, ela é incorrupta e pura, não conhece mais que  uma só casa, guarda com casto pudor a santidade do único tálamo. Ela nos conserva para Deus, entrega ao Reino os filhos que gerou. Quem se afasta da Igreja e se junta a uma adúltera, separa-se das promessas da Igreja. Quem deixa a Igreja de Cristo, não alcançará os prêmios de Cristo. É um estranho, um profano, um inimigo. Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja como mãe. Se alguém se pôde salvar, dos que ficaram fora da arca de Noé, também se salvará o que estiver fora da Igreja…Torna-se adversário de Cristo quem rompe a paz e a concórdia de cristo… O senhor diz: ´Eu e o Pai somos um (Jo 10,30); está ainda escrito do Pai, do Filho e do Espírito Santo: ´E são três em um´ (1Jo 5,7). Quem crê nesta verdade fundada na certeza divina e adere aos mistérios celestiais, não abandona a Igreja nem dela se afasta, por causa da diversidade das vontades que se entrechocam. Quem não mantém esta unidade também não mantém a lei de Deus, a fé no Pai e no Filho; não conserva a vida nem a salvação.” (S. Cipriano, Sobre a Unidade da Igreja, cap. 4).

Quem tem consciência destas verdades, sente com a Igreja, sofre e luta com a Igreja e regozija-se com ela.

SANTIDADE E PECADO NA IGREJA

As ponderações anteriores nos levam a refletir mais detidamente o tema “santidade e pecado na Igreja”.

Os membros da Igreja devem levar um vida moralmente santa ou isenta de pecado: “Sede santos, porque eu sou santo” é norma do Antigo Testamento, que ressoa no Novo:

“Como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também santos em todo o vosso comportamento, porque está escrito: ´Sede santos, porque eu sou Santo´ (Lv 17,1)” (1Pd 1,15s).

O cristão é chamado a ser, por todo o seu teor de vida, uma hóstia santa e agradável a Deus; a vida do cristão é um culto, cuja lei é a pureza:

“Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus; este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1)

Assim a Igreja é a comunidade dos santos, ou seja, de pessoas consagradas e pertencentes a Deus pelo batismo e que se esforçam por viver fielmente a sua consagração batismal e a sua qualidade de membros do Corpo de Cristo.

A Igreja nascente era muito exigente no tocante ao teor de vida dos seus fiéis. Todavia desde os tempos dos Apóstolos se registravam desvios dessa vocação sublime: tal foi o caso do incestuoso de Corinto (1 Cor 5,1),o do homem que injuriou Paulo (2Cor 2,5-11), o dos apóstatas (Hb 6,4-8; 10,26-31). O Apóstolo aplicava sanções, até mesmo a excomunhão, aos delinqüentes, a fim de os trazer de volta ao bom caminho (cf. 1Cor 5,3-5; 2Cor 2,6-8).

Quem percorre os escritos do Novo Testamento, verifica que já no tempo dos Apóstolos havia graves falhas morais nas respectivas comu-nidades (cf. Gl 1,6; 3,1; 5,4); o Apocalipse, cc. 2 e 3, censura severamen-te o esfriamento do fervor inicial. Isto se compreende bem, se se levar em conta a pregação do próprio Cristo: a parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-40), a da rede que capta peixes bons e maus (Mt 13,47-50); só no fim dos tempos será feita a definitiva separação de bons e maus.

Apesar de tudo, houve nos primeiros séculos tendências rigoristas, que não admitiam o perdão dos graves pecados da apostasia, do homicídio e do adultério; assim pensavam Tertuliano (+220 aproximadamente), Novaciano (+225 aproximadamente), os donatistas nos séculos IV e V. S. Agostinho (+430) disse a respeito a palavra final, lembrando a parábola do joio e do trigo; a Igreja não consta apenas de Santos; ela inclui também os pecadores entre os seus membros, como o joio existe ao lado do trigo no mesmo campo.

Estes fatos iniciais da história da Igreja tiveram significado definiti-vo. A Igreja reconhece ser indefectivelmente santa, porque é o Corpo de Cristo prolongado, mas ela tem filhos pecadores, que ela carrega em seu bojo e para os quais ela traz os meios de reconciliação, entre os quais o sacramento da Penitência.

Aprofundando estas verdades, pode-se ainda dizer:

A Igreja e santa, porque indissoluvelmente unida a Cristo, que nela habita e por ela age. Todavia essa santidade não atinge igualmente to-dos os membros da Igreja, que, mesmo depois do Batismo, trazem em si resquícios do velho homem ou do paganismo. O fato de que Cristo habita na Igreja distingue do povo de Deus do Antigo Testamento o novo povo de Deus; com efeito, a Igreja não é apenas a soma de seus membros humanos; ela é o Cristo prolongado, revestido da face humana do seus membros.

A dialética entre santidade e pecado na Igreja se exprime por di-versas fórmulas:

“A Igreja não existe sem pecadores, mas ela mesma é sem peca-do” (Charles Journet, L’EgIise du Verbe incarné, II, Paris 1954, p. 904).

Jacques Maritain distingue na Igreja a pessoa e o pessoal. A pessoa é o sujeito-Igreja unida a Custo como Corpo Místico ou Esposa indefectível; o pessoal seriam os membros da Igreja, sujeitos à fragilidade humana. (2) O pensamento é assim desenvolvido, com outras palavras. por Maritain:

“Os católicos não são o Catolicismo. As faltas, as lerdezas. as ca-rências e as sonolências do católico não comprometem o Catolicismo… A melhor apologética não consiste em justificar os católicos quando er-ram, mas, ao contrário, em caracterizar esses erros e dizer que não afe-tam a substância do Catolicismo e só contribuem para melhor trazer à tona a força de uma religião sempre viva apesar deles… Não nos considereis a nós, pecadores. Vede, antes, como a Igreja sana as nos-sas chagas e nos leva trôpegos para a vida eterna… A grande glória da Igreja é ser Santa com membros pecadores” (Religton et Culture. Paris 1930, p. 60).

Em conseqüência, afirma-se, com razão, que as fronteiras da Igre-ja não passam em torno dos países pagãos, mas passam no intimo de cada cristão, onde há uma porção já cristianizada e uma faixa ainda pagã, que se exprime no pecado.

Aprofundando um pouco mais, diremos: é certo que não se pode atribuir à Igreja como tal o pecado, como se ela cometesse pecado: sujei-to do pecado só pode ser uma pessoa individual. Ela consta de seres humanos na sua realidade histórica, que são pecadores: são membros da Igreja, mas o pecado que eles cometem não brota do bojo da Igreja nem é ensinado pela Igreja, que, ao contrário, o combate. Por isto na Igreja existe a Penitência como remédio para o pecado. É o que diz a Constituição Lumen Gentium nº8:

“Enquanto Cristo santo, inocento, imaculado (Hb 7,20), não conhe-ce o pecado (2Cor 5,21), mas veio para expiar os pecados do povo (Hb 2, 1-7) a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovção”.

A expressão “casta meretriz” é aplicada à Igreja por alguns autores desejosos de indicar os dois aspectos da Igreja, santa e portadora do pecado de seus filhos. Todavia é imprópria, pois, no caso, meretriz é substantivo e casta é adjetivo; prevalece assim a nota má ou pecamino-sa como sendo a substância da Igreja; a santidade seria um adjetivo ou um acidente. Devem-se inverter as posições: a santidade constitui a substância (a Pessoa) da Igreja, à qual sobrevém o pecado por obra do pes-soal da Igreja. A precisão ou exatidão da linguagem é de importância capital.

(1) É de notar que estes versículos se encontram em todos os manuscritos bíblicos antigos. Não há sinal de interpolação tardia.

(2) Ver Jacques Maritain, A Igreja de Cristo. A Pessoa da Igreja e seu Pessoal. Ed. Agir. Rio de Janeiro, 1972.

Fonte: Revista “Pergunte & Responderemos” – agosto de 1998.

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