Sobre a Obra


Por Roque Frangiotti

Data de Composição

A data da composição desta obra pode ser deduzida de alguns dados internos. O primeiro está emana própria dedicatória: ela é dirigida “Ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto, ao seu filho Veríssimo, filósofo, a Lúcio, filho natural do César Augusto, ao seu filho adotivo de Pio, amante do saber, ao sacro Senado e a todo o povo romano”. Ora, estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161. A Apologia deve ter sido escrita ao longo destes 15 anos. Segundo, no capítulo 46,1, Justino menciona que uma das objeções contra a doutrina cristã era a de “dizermos que Cristo nasceu somente há cento e cinqüenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio Pilotos”. Embora se deva tomar o ano cento e cinqüenta como um arredondamento, pode-se pensar que a redação da I Apologia não se deu antes desta data. Finalmente, no capítulo 29,2-3, Justino menciona o caso de um jovem cristão que recorreu ao prefeito Félix de Alexandria, suplicando-lhe interceder junto ao governador da província uma licença para se castrar. Ora, os especialistas identificam o prefeito Félix como Minúcio Félix, o qual reinou em Alexandria do ano 148 a 154. A I Apologia, portanto, deve ter sido escrita por volta de 155.

Estrutura e conteúdo da obra

A I Ap. está assentada numa estrutura ternária. Os caps. 1-3 formam uma introdução. Nela Justino dirige-se ao imperador Antonino Pio e a seus filhos para pleitear a defesa dos cristãos. Roga ao imperador que assuma pessoalmente a análise das acusações que se fazem com freqüência contra os cristãos e julgue imparcialmente, sem preconceitos, isto é, não se deixe levar pelo vozerio da plebe.

Os caps. 4-12 formam uma parte substancial da 1 Ap. Nela Justino condena a atitude oficial a respeito dos cristãos. Critica o procedimento judicial seguido regularmente pelo governo contra os cristãos e as falsas acusações lançadas contra eles. Protesta contra a absurda atuação das autoridades que castigam pelo simples fato de alguém reconhecer-se cristão. Para Justino, o nome “cristão” é igual ao de “filósofo”. Não prova nem culpa nem inocência de alguém. Estranha maneira esta de condenar alguém somente pelo fato de se chamar “cristão”. Geralmente é por um crime cometido que se condena alguém, não por causa do nome. Aqui, o nome é crime. Mas porque, se este nome não está unido a nenhum ato desleal? Ao contrário, Justino demonstra que as esperanças escatológicas, o medo da condenação eterna fazem com que os cristãos sejam leais, respeitosos, cidadãos exemplares, exceto no culto aos ídolos. Castiga-se, assim, condenasse só pelo nome, pois basta alguém negar ser cristão para ser libertado, basta confessá-lo para ser condenado. Os crimes dos quais se acusam os cristãos são, portanto, calúnias. Estes, de fato, não são ateus. Negam adoração aos deuses do império porque julgam este ato ridículo. Os cristãos não oferecem a Deus culto material porque o culto agradável é a imitação de suas virtudes.

A defesa dos cristãos não era, contudo, o único fim da Apologia. A melhor defesa é expor a verdade. Justino mostra confiança no poder da verdade. O melhor meio de refutar é, portanto, expor publicamente a verdade da doutrina cristã. Tenta, assim, construir uma justificação da religião cristã. Apresenta com detalhes a doutrina, o batismo e a eucaristia, seus fundamentos históricos e as razões para abraçá-la. E então que Justino recorre à noção de Gogos para explicar que Cristo é o primogênito de Deus, o Logos do qual todo o gênero humano compartilha: todos os que vivem em conformidade ao Logos são cristãos, mesmo quando são considerados ateus (1 Ap. 64,2-3).

A partir do cap. 18, Justino trata da imortalidade da alma depois da morte com argumentos suspeitos, da ressurreição que só é possível pela onipotência de Deus. Nos caps. 21-22, estabelece analogias entre as doutrinas estóica e cristã. Contudo, Justino não percebe que seu caminho é perigoso, minado, pois essa semelhança pode ser arma para negar a divindade e originalidade do cristianismo. Justino estará procurando um meio de se tornar acessível, de ser compreendido, de dizer que o cristianismo não era do outro mundo? Falar a própria língua do pagão? No cap. 23, apresenta um novo plano de demonstração da doutrina cristã. Nos caps. 24-29, só a doutrina recebida de Cristo e dos profetas que o precederam é a verdadeira e mais antiga que todos os escritores anteriores. Dado que o critério da verdade é a antiguidade, Justino, como antes dele os apologistas judaicos, insiste que os filósofos tomaram dos profetas e de Moisés as verdades que expressam em seus ensinamentos (1 AP, 59,1-6; 60,1-7).

Nos caps. 30-53, Justino afirma que, antes da encarnação, os demônios inventaram muitas armadilhas para apartar os homens da fé naquele mistério. Aí Justino identifica Cristo com a alma do mundo de Platão (Timeu, 366). Para ele, Platão teria haurido esta verdade de Nm 21,7-8. Finalmente, Justino defende os cristãos dizendo que neles o imperador tem os melhores colaboradores. Porque os cristãos são fiéis ao Evangelho, são também leais ao imperador e cumprem com mais fervor e prontidão do que nenhum outro cidadão seus deveres, “pois nosso Mestre nos ensinou a dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, isto é, adoração a Deus e só serviço e tributo a César. Portanto, não são inimigos do império, mas pela doutrina e pelo comportamento são os melhores servidores dos governadores, para manter a paz. Infelizmente, Justino apresenta a religião cristã como garante, como estrutura que ajuda a manter a “ordem social”. O cristianismo perde assim toda força questionadora das estruturas dominantes, opressoras. No cap. 11, Justino diz que os cristãos não esperam num “reino deste mundo”. Logo, os cristãos não merecem ser perseguidos nem quanto à religião, nem por sua atitude ante o império.

Como explicar, então, as perseguições contra os cristãos? Porque gente de bem é perseguida enquanto os idólatras, adúlteros não são molestados? Para Justino, a perseguição contra os cristãos é instigação dos demônios. Aqui Justino se mostra inteiramente dependente de seu meio e de seu tempo. E também um dos pontos fracos de sua argumentação. O propósito dos demônios é de reduzir os homens a seus servos e assistentes. São instigadores do paganismo antes da vinda de Cristo e dos hereges agora.

A Obra

 

1. Ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto, ao seu filho Veríssimo, filósofo, e a Lúcio, filho natural do César, filósofo e filho adotivo de Pio, amante do saber, ao sacro Senado e a todo o povo romano.

Em prol dos homens de qualquer raça que são injustamente odiados e caluniados, eu, Justino, um deles, filho de Prisco, que o foi de Báquio, natural de Flávia Neápolis na Síria Palestina, compus este discurso e esta súplica.

2. A razão exige dos que são verdadeiramente piedosos e filósofos que, desprezando as opiniões dos antigos se estas são más, estimem e, amem apenas a verdade. De fato, o raciocínio sensato não só exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente, mas também que o amante da verdade, de todos os modos e acima da própria vida, mesmo que seja ameaçado de morte, deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiça. Vós ouvis em toda parte que sois chamados piedosos e filósofos, guardiões da justiça e amantes da instrução; mas que o sejais realmente, é coisa que deverá ser demonstrada. 3Com o presente escrito, não pretendemos bajular-vos, nem dirigir-vos um discurso como mero agrado, mas pedir-vos que realizeis o julgamento contra os cristãos conforme o exato discernimento da investigação, e não deis a sentença contra vós mesmos, levados pelo preconceito ou pelo desejo de agradar homens supersticiosos, ou movidos por impulso irracional ou por boato crônico. De fato, vos dizemos: estamos convencidos de que, através de ninguém, pode ser feito algum mal a nós, enquanto não se demonstrar que somos praticantes da maldade ou nos reconheçamos como malvados. Vós podeis matar-nos, mas não condenar-nos.

3. 1Para que não se pense que se trata de alguma fanfarronada nossa e opinião audaciosa, pedimos sejam examinadas as acusações contra os cristãos. Se for demonstrado que são reais, castiguem-nos como é conveniente que sejam castigados os réus convictos; porém, se não há nenhum crime para interrogá-los, o verdadeiro discurso proíbe que, por um simples boato malévolo, se cometa injustiça contra homens inocentes ou, melhor dizendo, a cometais contra vós mesmos, que acreditais ser justo que os assuntos sejam resolvidos não por julgamento, mas por paixão. 2Com efeito, todo homem sensato manifestará que a melhor exigência, ou ainda mais, que a única exigência justa é que os súditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensíveis e que, por outro lado, igualmente os mandantes dêem sua sentença, não levados pela violência e tirania, mas segundo a piedade e a filosofia. Só assim governantes e governados podem gozar de felicidade.

3 Foi assim que, em algum lugar, um dos antigos disse: “Se os governantes e os governados não forem filósofos, não é possível os Estados prosperarem.” 4Cabe a nós, portanto, expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos, para que não nos tornemos responsáveis pelo castigo daqueles que, ignorando a nossa religião, pecam por cegueira contra nós. Contudo, o vosso dever é também ouvir-nos e mostrar-vos bons juízes. 5Com efeito, daqui para frente, informados como estais, caso não ajais com justiça, não tereis nenhuma desculpa diante de Deus.

Não se deve castigar um nome

4. 1Não se deve julgar que alguém seja bom ou mau por levar um nome, se prescindimos das ações que tal nome supõe. Além disso, se se examina aquilo de que nos acusam, somos os melhores homens. 2Todavia, como não consideramos justo pretender que nos absolvam por nosso nome se estamos convictos de maldade; do mesmo modo, se nem por nosso nome, nem por nossa conduta se constata que tenhamos cometido crime, o vosso dever é empenhar-vos para não vos tornardes responsáveis de castigo, condenando injustamente aqueles que não foram convencidos judicialmente. 3Com efeito, em sã razão, de um nome não se pode originar elogio ou reprovação, se não se puder demonstrar por fatos alguma coisa virtuosa ou vituperável. 4Não castigais ninguém que foi acusado diante dos vossos tribunais antes que ele seja réu convicto. Contudo, quando se trata de nós, tomais o nome como prova, sendo que, se for pelo nome, deveríeis antes castigar os nossos acusadores. 5De fato, acusam-nos de ser cristãos, isto é, bons, mas odiar o que é bom não é coisa justa. 6AIém disso, basta que um acusado negue com a palavra ser cristão, vós o pondes em liberdade, como quem não tem outro crime a ser acusado; mas quem confessa que é cristão, vós o castigais apenas por essa confissão. O que se deveria fazer é examinar a vida tanto daquele que confessa, como daquele que nega, a fim de pôr às claras, por suas obras, a qualidade de cada um. 7De fato, da maneira como alguns, apesar de terem aprendido de seu mestre Cristo a não negá-lo, são induzidos a isso ao serem interrogados; da mesma forma, com sua vida má, eles talvez dêem motivo àqueles que estão dispostos a caluniar de impiedade e iniqüidade todos os cristãos.

8 Mas nem nisso se procede retamente. Sabe-se que o nome e a aparência de filósofo, alguns se arrogam sem terem praticado nenhuma ação digna de sua profissão, e não ignorais que aqueles dos antigos que professam opiniões e doutrinas contrárias entram todos na denominação comum de filósofos. 9Entre eles, houve os que ensinaram o ateísmo, e os que foram poetas contam as imprudências de Zeus com seus filhos. Todavia, não proibis ninguém de professar as doutrinas deles; ao contrário, dais prêmios e honras para aqueles que clara e elegantemente insultam os vossos deuses.

A obra dos demônios

5. 1O que pode haver nisso? Nós fizemos profissão de não cometer nenhuma injustiça e não admitir essas ímpias opiniões. Vós, porém, não examinais nossos juízos, mas, movidos de paixão irracional e aguilhoados por demônios perversos, nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por isso.

2 Digamos a verdade: antigamente, alguns demônios perversos, fazendo suas aparições, violaram as mulheres, corromperam os jovens e mostraram espantalhos aos homens. Com isso, ficaram apavorados aqueles que não julgavam pela razão as ações praticadas e assim, levados pelo medo e não sabendo que eram demônios maus, deram-lhes nomes de deuses e chamaram cada um com o nome que cada demônio havia posto em si mesmo. 3Quando Sócrates, com raciocínio verdadeiro e investigando as coisas, tentou esclarecer tudo isso e afastar os homens dos demônios, estes conseguiram, por meio de homens que se comprazem na maldade, que ele também fosse executado como ateu e ímpio, alegando que ele estava introduzindo novos demônios. Tentam fazer o mesmo contra nós. 4De fato, por obra de Sócrates, não só entre os gregos se demonstrou pela razão a ação dos demônios, mas também entre os bárbaros, pela razão em pessoa, que tomou forma, se fez homem e foi chamado Jesus Cristo. Pela fé que nele temos, não dizemos que os demônios que fizeram essas coisas são bons, mas demônios malvados e ímpios, que não alcançam ou praticam ações semelhantes, nem mesmo aos homens que aspiram à virtude.

Não somos ateus

6. 1Por isso, também nós somos chamados de ateus; e, tratando-se desses supostos deuses, confessamos ser ateus. Não, porém, do Deus verdadeiríssimo, pai da justiça, do bom senso e das outras virtudes, no qual não há mistura de maldade. 2A ele e ao Filho, que dele veio e nos ensinou tudo isso, ao exército dos outros anjos bons, que o seguem e lhe são semelhantes, e ao Espírito profético, nós cultuamos e adoramos, honrando-os com razão e verdade, e ensinando generosamente, a quem deseja sabê-lo a mesma coisa que aprendemos.

Não castigueis nossos acusadores

7. 1Poderão nos objetar que alguns detidos foram condenados como malfeitores. 2Pode ser. Contudo, muitas vezes condenais muitos outros, depois de averiguar a vida de cada um dos acusados, mas não os condenais pelos motivos de que antes foram condenados. 3De modo geral, não há inconveniente em confessar que, da mesma forma que entre os gregos, aos que seguem as opiniões que lhes agradam todo mundo lhes dá o nome de filósofos, como também entre os bárbaros levam um nome comum os que foram e pareceram sábios, o mesmo acontece com os cristãos. 4Nós vos pedimos, portanto, que sejam examinadas as ações de todos os que vos são denunciados, a fim de que o culpado seja castigado como iníquo, mas não como cristão; por outro lado, aquele que for comprovadamente inocente, seja absolvido como cristão, por não ter cometido nenhum crime. 5Com efeito, não pedimos que castigueis os nossos acusadores, pois eles já padecem bastante com a maldade que levam consigo e com a sua ignorância do bem.

Não queremos mentir

8. 1Considerai que vos dissemos essas coisas para o vosso interesse, pelo fato de que está em nós a possibilidade de negar, quando somos interrogados. 2Todavia, não queremos viver na mentira, pois, desejando a vida eterna e pura, aspiramos à convivência com Deus, Pai e artífice do universo. E, por isso, nós nos apressamos a confessar a nossa fé, pois estamos persuadidos e acreditamos que esses bens podem ser conseguidos por aqueles que por suas obras demonstraram ter seguido a Deus e desejado sua convivência, onde nenhuma maldade poderá nos atingir. 3De fato, dizendo de maneira breve, isso é o que esperamos, isso é o que aprendemos de Cristo e ensinamos. 4De modo semelhante, Platão também disse que Minos e Radamante castigarão os iníquos que se apresentam diante deles. Nós afirmamos que isso acontecerá, mas através de Cristo, e que o castigo que receberão em seus corpos unidos às suas almas será eterno, e não só por um período de mil anos, como ele disse. Se alguém diz que isso é incrível ou impossível, nós é que fomos enganados e não outro, até que não sejamos acusados de ter cometido alguma injustiça em nossas ações.

Vaidade da idolatria

9. 1Também não honramos, com muitos sacrifícios e coroas de flores, esses que os homens, depois de dar-lhes forma e colocá-los nos templos, chamam de deuses. Com efeito, sabemos que são coisas sem alma e mortas, que não têm forma de Deus. Nós não cremos que Deus tenha semelhante forma, que alguns dizem imitar para tributar-lhes honra. Na verdade, o nome e figura que levam são daqueles maus demônios que um dia apareceram no mundo. 2Por acaso, é preciso explicar-vos, se já o sabeis, a maneira como os artesãos dispõem a matéria, ora polindo e cortando, ora fundindo e cinzelando? 3Não só consideramos isso irracional, mas também um insulto a Deus, pois, tendo ele glória e forma inefável, dá-se o nome de Deus a coisas corruptíveis e que necessitam de cuidado. Muitos, apenas mudando a figura e dando forma conveniente através da arte, dão o nome de deus àquilo que serviu de instrumento ignominioso. 4E vós sabeis perfeitamente que os artesãos de tais deuses são pessoas dissolutas, que vivem envoltas na maldade, o que não vou contar aqui em pormenores. Entre eles não faltam os que corrompem as escravas que trabalham ao lado deles. 5É estupidez dizer que homens intemperantes fabricam e transformam deuses para ser adorados e que tais pessoas servem como guardas dos templos nos quais aqueles são colocados! E não percebem que já é impiedade pensar ou dizer que os homens podem ser guardiões dos deuses!

O melhor sacrifício é a virtude

10. 1Além disso, aprendemos que Deus não tem necessidade de nenhuma oferta material dos homens, pois vemos que é ele quem nos concede tudo. Em troca, nos foi ensinado, e disso estamos persuadidos e assim o cremos, que lhe são gratos somente aqueles que lhe procuram imitar os bens que lhe são próprios: o bom senso, a justiça, o amor aos homens e tudo o que convém a um Deus que não pode ser chamado por nenhum nome imposto. 2Também nos foi ensinado que, por ser bom, no princípio ele fez todas as coisas de uma matéria informe, por amor aos homens. Recebemos a crença de que ele concederá a sua convivência, participando do seu reino, tornados incorruptíveis ou impassíveis, aos homens que por suas obras se mostrem dignos do desígnio de Deus. 3De fato, do mesmo modo como no princípio nos fez do não ser, assim também cremos que àqueles que escolheram o que lhe é grato, concederá a incorruptibilidade e a convivência com ele, como prêmio dessa mesma escolha. 4Com efeito, ser criados no princípio não foi mérito nosso; mas agora ele nos persuade e nos conduz à fé para que sigamos o que lhe é grato, por livre escolha, através das potências racionais, com que ele mesmo nos presenteou. 5Consideramos ainda ser de interesse para todos os homens que não se impeça a eles de aprender estes ensinamentos, mas sejam exortados neles. 6De fato, o que as leis humanas não conseguiram, o Verbo divino já o teria realizado, se os malvados demônios não tivessem espalhado muitas calúnias ímpias, tomando como aliada a paixão que habita em cada um, má para tudo e multiforme por natureza; nós não temos nada a ver com essas calúnias.

Nosso reino não é deste mundo

11. 1Até vós, apenas ouvindo que esperamos um reino, logo supondes, sem nenhuma averiguação, que se trata de reino humano, quando nós falamos do reino de Deus. Isso aparece claro pelo fato de que, ao sermos interrogados por vós, confessamos ser cristãos, sabendo como sabemos que tal confissão traz consigo a pena de morte. 2De fato, se esperássemos um reino humano, o negaríamos para evitar a morte e procuraríamos viver escondidos, a fim de conseguir o que esperamos; mas como não depositamos nossa esperança no presente, não nos importamos que nos matem, além do que, de qualquer modo, haveremos de morrer.

Somos vossos aliados para a paz

12. 1Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenção da paz, pois professamos doutrinas, como a de que não é possível ocultar de Deus o malfeitor, o avaro, o conspirador ou o homem virtuoso, e que cada um caminha para o castigo ou salvação eterna, conforme o mérito de suas ações. 2Com efeito, se todos os homens conhecessem isso, ninguém escolheria por um momento a maldade, sabendo que caminharia para sua condenação eterna pelo fogo, mas se conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude, a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos. 3De fato, aqueles que agora, por medo das leis e dos castigos por vós impostos, ao cometer seus crimes procuram escondê-los, porque sabem que sois homens e que, por isso, é possível ocultá-los de vós, se se inteirassem e se persuadissem de que não se pode ocultar nada a Deus, não só uma ação, mas sequer um pensamento, ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os modos, como vós mesmos haveis de convir. 4Todavia, até parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e não tenhais a quem castigar, coisa que conviria melhor a verdugos do que a príncipes bons. 5Estamos persuadidos, porém, de que isso também, como dissemos, é obra dos demônios perversos, os quais exigem sacrifícios e culto dos que vivem irracionalmente; contudo, jamais supusemos que vós, amantes da piedade e da filosofia, façais algo irracionalmente. 6Mas se também tendes mais estima pelo costume do que pela verdade, fazei o que podeis; sabei, porém, que os governantes que colocam a opinião acima da verdade só podem fazer o que fazem os bandidos em lugar despovoado. 7Que isso, porém, não vos será de bom augúrio, o Verbo o demonstra, ele que é o rei mais alto, o governante mais justo que conhecemos, depois de Deus que o gerou. 8Com efeito, do mesmo modo como todos recusam a pobreza, o sofrimento e a desonra paterna, assim também não haverá homem sensato que aceite aquilo que a razão ordena não aceitar. 9Que tudo isso aconteceria, como digo, o predisse nosso Mestre, que é ao mesmo tempo filho e legado de Deus pai e soberano do universo, Jesus Cristo, do qual também originou-se o nosso nome de cristãos. 10Disso provém nossa firmeza em aceitar seus ensinamentos, pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que aconteceria. Eis a obra de Deus: dizer as coisas antes que aconteçam e depois mostrar o acontecido tal qual ele foi predito. 11Poderíamos terminar aqui o nosso discurso, sem acrescentar mais nada, considerando que pedimos coisas justas e verdadeiras. Todavia, como sabemos não ser fácil mudar às pressas uma alma possuída pela ignorância, determinamos acrescentar mais alguns breves pontos, a fim de persuadir os amantes da verdade, pois sabemos que quando esta é proposta, a ignorância bate em retirada.

Profissão de fé cristã

13. 1Que não somos ateus, quem estiverem são juízo não o dirá, pois cultuamos o Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. Em lugar de todas as ofertas, nós o louvamos conforme nossas forças, com palavras de oração e ação de graças. Aprendemos que o único louvor digno dele não é queimar no fogo o que por ele foi criado para nosso alimento, mas oferecê-lo para nós mesmos e para os necessitados. 2Depois, mostrando-nos a ele agradecidos, dirigir-lhe por nossa palavra louvores e hinos por ter-nos criado, por todos os meios de saúde, pela variedade das espécies e mudanças das estações, ao mesmo tempo que lhe suplicamos que nos conceda de novo a incorruptibilidade pela fé que nele temos. 3Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no terceiro. De fato, tacham-nos de loucos, dizendo que damos o segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos.

Homens novos pela fé em Cristo

14. 1De antemão vos avisamos que tenhais cuidado, para não serdes enganados por esses mesmos demônios que acabamos de acusar e assim eles vos impeçam totalmente de ler e entender o que dizemos, pois eles lutam para tê-los como seus escravos e servidores. Por aparições em sonhos ou por artes de magia, eles se apoderam de todos aqueles que, de um ou outro modo, não trabalham por sua própria salvação. Depois de crer no Verbo, nós nos afastamos deles e, por meio do Filho, seguimos o único Deus unigênito. 2Antes, nós nos comprazíamos na dissolução; agora, abraçamos apenas a temperança; antes, nos entregávamos às artes mágicas; agora, nos consagramos ao Deus bom e ingênito; antes, amávamos, acima de tudo, o dinheiro e as rendas de nossos bens; agora, colocamos em comum o que possuímos e disso damos uma parte para todo aquele que está necessitado; 3antes, nós nos odiávamos e nos matávamos mutuamente e não compartilhávamos o lar com aqueles que não pertenciam à nossa raça pela diferença de costumes; agora, depois da aparição de Cristo, vivemos todos juntos, rezamos por nossos inimigos e tratamos de persuadir os que nos aborrecem injustamente, a fim de que, vivendo conforme os belos conselhos de Cristo, tenham boas esperanças de alcançar conosco os mesmos bens que esperamos de Deus, soberano de todas as coisas.

4Todavia, para que não pareça que pretendemos vos enganar, acreditamos ser oportuno, antes da demonstração, recordar alguns ensinamentos do mesmo Cristo, deixado para vós, como poderosos imperadores, a tarefa de examinar se, de fato, é isso que nos ensinaram e que nós ensinamos. 5Seus discursos, porém, são breves e sintéticos, pois ele não era nenhum sofista, mas sua palavra era uma força de Deus.

A doutrina de Cristo

15. 1Sobre a temperança, ele disse o seguinte: “Aquele que olhar para uma mulher para desejá-la, diante de Deus já cometeu adultério em seu coração”. 2E: “Se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o, pois é melhor entrar no reino dos céus com um só olho do que ser mandado para o fogo eterno com os dois”. 3E: “Aquele que se casa com a divorciada de outro marido comete adultério”. 4E: “Há alguns que foram mutilados pelos homens, há também aqueles que já nasceram mutilados; mas há aqueles que se mutilaram a si mesmos por causa do reino dos céus. Mas nem todos compreendem isso”. 5De modo que, para o nosso Mestre, não só são pecadores os que contraem duplo matrimônio, conforme a lei humana, mas também os que olham para uma mulher para desejá-la. Com efeito, para ele não só se rejeita aquele que de fato comete adultério, mas também aquele que quer cometê-lo, pois diante de Deus, tanto as obras como os desejos estão manifestos. 6Entre nós há muitos homens e mulheres que, tornando-se discípulos de Cristo desde criança, permanecem incorruptos até os sessenta e setenta anos. E eu me glorio de mostrá-los entre toda a raça dos homens. 7Isso sem contar a multidão inumerável dos que se converteram de uma vida dissoluta e aprenderam esta doutrina, pois Cristo não veio chamar os justos e os temperantes para a penitência, mas os ímpios, intemperantes e injustos. 8De fato, ele disse: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores para a penitência?. O Pai celestial prefere a penitência do pecador ao seu castigo.

9Sobre amar a todos, ensinou o seguinte: “Se amais os que vos amam, que novidade fazeis? Os fornicadores também não fazem isso? Eu, porém, vos digo: Orai por vossos inimigos, amai os que vos odeiam e orai pelos que vos caluniam”.

10Sobre repartir o que temos com os necessitados e não fazer nada por ostentação, ele disse: “Dai a todo aquele que vos pedir, e não vos afasteis daquele que quer pedir-vos um empréstimo. De fato, se emprestais apenas àqueles de quem esperais receber, que novidade fazeis? Até os publicanos fazem isso. 11Vós, porém, não entesoureis para vós sobre a terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões escavam, mas entesourai para vós nos céus, onde nem a traça, nem a ferrugem destroem. 12Com efeito, o que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? O que dará em troco dela? Entesourai, portanto, nos céus, onde nem a traça, nem a ferrugem destroem”. 13E: “Sede bons e misericordiosos, assim como vosso Pai é bom e misericordioso e faz sair o seu sol sobre pecadores, justos e maus. 14Não vos preocupeis sobre o que comer ou vestir. Não valeis mais do que os pássaros e as feras? E Deus as alimenta. 15Não vos preocupeis, portanto, sobre o que comereis ou que vestireis, pois vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade dessas coisas. 16Buscai antes o reino dos céus, e tudo isso vos será dado em acréscimo. Com efeito, onde está o tesouro, aí também está o pensamento do homem”. 17E: “Não façais essas coisas para serdes vistas pelos homens, pois nesse caso não tereis recompensa de vosso Pai que está nos céus?.

16. 1Sobre sermos pacientes, prontos para servir a todos e alheios à ira, ele disse o seguinte: “Àquele que te golpeia numa face, oferece-lhe a outra, e a quem quer tirar-te a túnica ou o manto, não o impeças. 2Quem se irritar, será réu do fogo. A quem te contratar para uma milha, acompanha-o duas. Que as vossas obras brilhem diante dos homens, a fim de que, vendo-as, admirem vosso Pai que está nos Céus”. 3Portanto, não devemos oferecer resistência, pois ele não quer que sejamos imitadores dos malvados, mas mandou-nos afastar a todos da vergonha e do desejo do mal pela paciência e mansidão. 4E isso vos podemos demonstrar através de muitos que viveram entre vós, que deixaram seus hábitos violentos e tirania, vencidos ora contemplando a constância de vida de seus vizinhos, ora considerando a estranha paciência dos companheiros de viagem ao ser defraudados, ora pondo à prova companheiros de negócio.

5Sobre não jurar nunca mas dizer sempre a verdade, ele nos ordenou o seguinte: “Nunca jureis; todavia o vosso não seja não, e o vosso sim seja sim, pois tudo que passa disso provém do maligno”.

6Sobre adorar unicamente a Deus, ele nos persuadiu, dizendo: “O maior mandamento é este: Adorarás ao Senhor teu Deus e só a ele servirás de todo o teu coração e com toda a tua força, ao Senhor Deus que te criou”. 7Certa vez que alguém se aproximou dele e lhe disse: “Bom Mestre”, ele respondeu: “Ninguém é bom a não ser Deus, que fez todas as coisas”.

8Aqueles, porém, que se vê que não vivem como ele ensinou, sejam declarados como não cristãos, por mais que repitam com a língua os ensinamentos de Cristo, pois ele disse que se salvariam, não os que apenas falassem, mas que também praticassem as obras. 9De fato, ele disse:

“Não todo aquele que me diz: “Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. 10Porque aquele que me ouve e faz o que eu digo, ouve aquele que me enviou. 11Muitos me dirão: ?Senhor, Senhor, não foi em teu nome que comemos, bebemos e fizemos prodígios?? Então eu lhes responderei: -?Apartai-vos de mim, operadores de iniqüidade’. 12Então haverá choro e ranger de dentes, quando os justos brilharem como o sol e os injustos forem mandados para o fogo eterno. 13Porque muitos virão em meu nome, vestidos por fora com peles de ovelha, mas por dentro são lobos roubadores. Por suas obras os conhecereis. Toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada ao fogo”. 14Aqueles que não vivem conforme os ensinamentos de Cristo e são cristãos apenas de nome, nós somos os primeiros a vos pedir que sejam castigados.

Súditos do império

17. 1Quanto a tributos e contribuições, procuramos pagá-los antes de todos àqueles que estabelecestes para isso em todos os lugares, assim como fomos ensinados por Cristo. 2Porque naquele tempo, alguns se aproximaram dele, para perguntar-lhe se se deveria pagar tributo a César. Ele respondeu: “Dizei-me: que imagem tem a moeda?” Eles responderam: “A de César.” Então ele tornou a responder-lhes: “Então dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

3Portanto, nós somente a Deus adoramos, mas em tudo o mais nós servimos a vós com gosto, confessando que sois imperadores e governantes dos homens e rogando que, junto com o poder imperial, também se encontre que tenhais prudente raciocínio. 4Todavia, se não atendeis às nossas súplicas, nem esta exposição pública que vos fazemos de todo o nosso modo de viver, em nada ficaremos prejudicados, pois cremos, ou melhor, estamos persuadidos de que cada um pagará a pena, conforme mereçam as suas obras, pelo fogo eterno, e que terá que prestar contas a Deus, segundo as faculdades que recebeu do próprio Deus, conforme nos indicou Cristo, dizendo: “A quem Deus deu mais, mais será exigido por Deus?.

A imortalidade da alma

18. 1Vede o fim que tiveram os imperadores que vos precederam: todos morreram de morte comum. Se a morte terminasse na inconsciência, seria uma boa sorte para todos os malvados. 2Admitindo, porém, que a consciência permanece em todos os nascidos, não sejais negligentes em convencer-vos e crer que essas coisas são verdade. 3De fato, a necromancia, o exame das entranhas de crianças inocentes, as evocações das almas humanas e os que são chamados entre os magos de espíritos dos sonhos e espíritos assistentes, os fenômenos que acontecem sob a ação dos que sabem essas coisas devem persuadir-vos de que, mesmo depois da morte, as almas conservam a consciência. 4Do mesmo modo, poderíamos citar os que são arrebatados e agitados pelas almas dos mortos, aos quais todos chamam de possessos ou loucos; aqueles que entre vós são chamados de oráculos de Anfiloco, de Dodona, de Piton e outros semelhantes; 5as doutrinas de escritores como Empédocles e Pitágoras, Platão e Sócrates, aquela caverna de Homero, a descida de Ulisses para averiguar essas coisas, e outros que disseram coisas parecidas. 6Recebei-nos, portanto, pelo menos de modo semelhante a esses, pois não cremos menos do que eles em Deus e sim mais do que eles: esperamos recuperar nossos próprios corpos depois de mortos e enterrados, porque dizemos que para Deus não há nada impossível.

A ressurreição não é impossível

19. 1Para quem reflete, o que pareceria mais incrível do que se, estando fora do nosso corpo, alguém dissesse que de uma pequena gota do sêmen humano seria possível nascer ossos, tendões e carnes com a forma em que os vemos, e víssemos isso em imagem? 2Façamos uma suposição. Se não fôsseis o que sois e de quem sois e alguém vos mostrasse o sêmen humano e uma imagem pintada de um homem, afirmando que esta se forma daquele, por acaso acreditaríeis antes de vê-lo nascido? Ninguém se atreveria a contradizer isso. 3Do mesmo modo, por nunca ter visto um morto ressuscitar, a incredulidade agora vos domina. 4Da mesma forma, como no princípio não teríeis crido que de uma pequena gota nasceriam tais seres e, no entanto, os vêdes nascidos, assim também considerai que não é impossível que os corpos humanos, depois de dissolvidos e espalhados como sementes na terra, ressuscitem a seu tempo, por ordem de Deus e se revistam da incorruptibilidade.

5Na verdade, não saberíamos dizer de qual potência digna de Deus falam aqueles que afirmam que tudo voltará ao lugar de onde procede e que, fora disso, ninguém pode nada, nem mesmo Deus. Nós, porém, vemos bem isto: esses mesmos não teriam acreditado ser possível ter nascido tais e quais eles e o mundo todo se vêem ter nascido.

6Além disso, aprendemos que é melhor crer naquilo que está acima da nossa própria natureza e que é impossível aos homens, do que ser incrédulos como o vulgo. Sabemos que Jesus Cristo, nosso Mestre, disse: “O que é impossível para os homens, é possível para Deus”. 7E disse mais: “Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer; temei antes aquele que, depois da morte, pode lançar alma e corpo no inferno”. 8Deve-se saber que o inferno é o lugar onde serão castigados os que tiverem vivido iniqüamente e não acreditaram que acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo.

Afinidades pagãs

20. 1Também a Sibila e Histapes disseram que todo o corruptível deveria ser consumido pelo fogo; 2os filósofos estóicos têm por dogma que o próprio Deus se dissolverá em fogo e afirmam que novamente, por transformação, o mundo renascerá. Nós, porém, consideramos Deus, o criador de todas as coisas, superior a todas as transformações. 3Por fim, se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que estimais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que apresentamos demonstração, por que se nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? 4Assim, quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma de Platão; ao falar sobre conflagração, outro dogma dos estóicos; ao dizer que são castigadas as almas dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que as dos bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos poetas e filósofos; 5que não se devem adorar obras de mãos humanas, não é senão repetir o que disseram Menandro, o poeta cômico, e outros com ele, que afirmaram que o artífice é maior do que aquele que o fabrica.

21. 1Também quando dizemos que o Verbo, primeiro rebento de Deus, nasceu sem relação carnal, isto é, Jesus Cristo, nosso Mestre, e que ele foi crucificado, morreu e, depois de ressuscitado, subiu ao céu, não apresentamos nada de novo se se levam em conta os que chamais de filhos de Zeus. 2De fato, sabeis bem a quantidade de filhos que os vossos estimados escritores atribuem a Zeus: Hermes, o Verbo intérprete e mestre de todos; Asclépio, que foi médico e que, depois de ter sido fulminado, subiu ao céu; Dioniso, depois que foi esquartejado; Héracles, depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos; os Dióscoros, filhos de Leda, Perseu de Dânae e Belerofonte, nascido de homens, sobre o cavalo Pégaso. 3Para que ainda falar de Ariadne e dos que, semelhante a ela, se diz que são colocados nas estrelas? Passo por alto também vossos imperadores mortos, aos quais tendes sempre como dignos da imortalidade e nos apresentais algum infeliz que jura ter visto César incinerado subir da pira ao céu.

4Também não é necessário repetir aqui as ações que se contam de cada um dos supostos filhos de Zeus, pois vós as conheceis perfeitamente. E suficiente dizer que isso foi escrito para utilidade e encorajamento dos que se educam, pois todos consideram belo ser imitadores dos deuses. 5Todavia, esteja longe de toda alma sensata pensar sobre os deuses, da mesma forma que sobre que, segundo eles, Zeus é o principal e pai de todos os outros, pensar que ele tenha sido parricida, nascido de parricida e, vencido pelos baixos e vergonhosos prazeres do amor, tenha ido até Ganimedes e numerosas mulheres com as quais se uniu, e aceitar que seus filhos praticassem ações semelhantes. 6A verdade é que, como já dissemos, foram os demônios malvados que fizeram tais coisas. Quanto a alcançar a imortalidade, nos foi ensinado que só a alcançam aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus, assim como cremos que serão castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e não se converteram.

Jesus, Filho de Deus

22. 1Quanto ao Filho de Deus, que se chama Jesus, ainda que parecesse homem de modo comum, por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus, pois todos os escritores chamam o Deus supremo de pai de homens e de deuses. 2Afirmamos que ele, de modo especial e fora do nascimento comum, como já dissemos, nasceu de Deus como Verbo de Deus, embora isso coincida com o que afirmais sobre Hermes, a quem chamais de Verbo anunciador ou mensageiro de Deus. 3Se nos lançam em rosto que ele foi crucificado, também isso é comum com os antes citados filhos de Zeus, que admitis terem sofrido. 4Com efeito, conta-se que eles não sofreram um mesmo gênero de morte, mas diferentes, de modo que nem no fato de ter sofrido uma paixão particular fica-se atrás em relação a eles. Ao contrário, prosseguindo o discurso, demonstraremos que lhes é muito superior ou, melhor dizendo, já está demonstrado, pois aquele que é superior manifesta-se por suas obras. 5Nós anunciamos que ele nasceu de uma virgem, mas isso para vós pode ser semelhante a Perseu. 6Por fim, que ele curasse coxos, paralíticos e enfermos de nascimento e ressuscitasse dos mortos, também nisso parecerá que dizemos coisas semelhantes ao que se conta ter feito Asclépio.

PLANO APOLOGÉTICO

23. 1E para que se torne evidente para vós, vamos apresentar-vos a prova de que aquilo que dizemos, por tê-lo aprendido de Cristo e dos profetas que os precederam, é a única verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram. Não pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles, mas porque dizemos a verdade. 2Demonstraremos também que Jesus Cristo é propriamente o único Filho nascido de Deus, como seu Verbo, seu Primogênito e sua Potência. Feito homem pelo seu desígnio, ele nos ensinou essas verdades para a transformação e condução do gênero humano. 3Por fim, antes de tornar-se homem entre os homens, houve alguns, digo, os demônios malvados, antes mencionados, que se adiantaram a dizer, por meio dos poetas, terem acontecido os mitos que inventaram. De modo que também foram eles que fizeram as obras vergonhosas e ímpias que disseram contra nós, sem que para isso haja qualquer testemunha ou demonstração.

Provas

a) Odeiam-se apenas aos cristãos

24. 1A primeira prova é que, quando dizemos tais coisas aos gregos, somos os únicos a serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida, sem termos cometido crime algum, como se fôssemos pecadores. E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam árvores, rios, ratos, gatos, crocodilos e uma multidão de animais irracionais. O interessante é que nem todos cultuam os mesmos, mas uns são honrados num lugar, outros em outro, de modo que todos são ímpios entre si, por não ter a mesma religião. 2Esta é a única coisa que podeis nos recriminar: não veneramos os mesmos deuses que vós e não oferecemos libações e gorduras aos mortos, não colocamos coroas nos sepulcros, nem celebramos sacrifícios sobre eles. 3No entanto, sabeis perfeitamente que os mesmos animais, por alguns são considerados deuses, por outros feras e por outras vítimas para sacrifícios.

b) A transformação por Cristo

25. 1Em segundo lugar, porque homens de toda raça, que antes cultuávamos a Dioniso, filho de Sêmele, e Apolo, filho de Leto, deuses que por seus amores perversos fizeram coisas que, por decoro, nem se podem nomear; os que dentre nós adoravam a Perséfone e Afrodite, que foram aguilhoados de amor por Adônis e cujos mistérios ainda celebrais, ou Asclépio, ou algum outro dos chamados deuses, agora, apesar de sermos ameaçados com a morte, desprezamos a todos eles por amor a Jesus Cristo. 2Consagramo-nos ao Deus ingênito e alheio a toda paixão. O Deus em quem acreditamos não se dirigirá, aguilhoado de amor, a uma Antíope, nem a outros do mesmo estilo, nem a Ganimedes, nem terá que ser desatado, com a ajuda de Tétis, por aquele famoso centimano, nem de se preocupar para apagar esse favor com Aquiles, filho de Tétis, e perder uma multidão de gregos em troca da concubina Briseida. 3O que fazemos é nos compadecer daqueles que praticam tais coisas e sabemos bem que os responsáveis por eles são os demônios.

c) Os hereges não são perseguidos

26. 1Em terceiro lugar, porque, mesmo depois da ascensão de Cristo ao céu, os demônios levaram certos homens a dizer que eles eram deuses e estes não só não foram perseguidos por vós, mas chegastes até a decretar-lhes honras. 2Dessa forma, certo Simão, samaritano originário de uma aldeia chamada Giton, tendo feito, no tempo de Cláudio César, prodígios mágicos, por obra dos demônios que nele agiam em vossa cidade imperial de Roma, foi considerado deus e como deus foi por vós honrado com uma estátua, levantada junto ao rio Tibre, entre as duas pontes, com esta inscrição latina: A SIMÃO, DEUS SANTO. 3E quase todos os samaritanos, embora pouco numerosos nas outras nações, o adoram, considerando-o como Deus primordial. Também uma certa Helena, que naquele tempo o acompanhou em suas peregrinações e que antes estivera no prostíbulo, é chamada de primeiro pensamento nascido dele. 4Sabemos também que certo Menandro, igualmente samaritano, natural da aldeia de Carapatéia, discípulo de Simão, possuído também pelos demônios, apareceu em Antioquia e enganou muitos com suas artes mágicas, chegando a persuadir seus seguidores de que jamais iriam morrer. E existem ainda alguns de sua escola que continuam crendo nele. 5Por fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando seus seguidores a crer num Deus superior ao Criador e, com a ajuda dos demônios, fez com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens, proferissem blasfêmias e negassem o Deus Criador do universo, admitindo, em troca, não sabemos que outro Deus, ao qual, supondo maior, se atribuem obras maiores do que àquele. 6Todos os que procedem destes, como dissemos, são chamados cristãos, da mesma forma que aqueles que não participam das mesmas doutrinas entre os filósofos recebem da filosofia o nome comum com que são conhecidos. 7Ora, se também eles praticam todas essas vergonhosas obras que se propalam contra nós, isto é, jogar por terra o castiçal, unirmo-nos promiscuamente e alimentarmo-nos de carnes humanas, não o sabemos. Todavia, estamos certos de que não são perseguidos, nem condenados por vós, ao menos por causa de suas doutrinas. 8Além disso, nós mesmos compusemos uma obra contra todas as heresias que existiram até o presente. Se quiserdes lê-Ia, nós a colocaremos em vossas mãos.

A pureza da vida cristã

27. 1Nós, por outro lado, a fim de não cometer pecado ou impiedade, professamos a doutrina de que expor os recém-nascidos é obra de perversos. Primeiro, porque vemos que quase todos vão acabar na dissolução, não só as meninas, mas também os meninos. Do mesmo modo como se conta que os antigos mantinham rebanhos de bois, cabras, ovelhas ou cavalos de pasto, assim se reúnem agora rebanhos de crianças com a única finalidade de usar torpemente delas, e toda uma multidão, tanto de mulheres como de andróginos e pervertidos, está preparada em cada província para semelhante abominação. 2Para isso recolheis taxas, contribuições e tributos, ao passo que o vosso dever seria o de arrancá-las pela raiz do vosso império. 3Quando se abusa de tais seres, além de tratar de uma união própria de pessoas sem Deus, ímpia e torpe, não faltará quem se una, conforme a circunstância, com um filho, um parente ou um irmão. 4Há também aqueles que prostituem seus próprios filhos e mulheres; outros mutilam-se publicamente para a torpeza e referem esses mistérios à mãe dos deuses. Finalmente, em todos aqueles que considerais como deuses, a serpente se pinta como símbolo e grande mistério. 5E aquilo mesmo que vós praticais e honrais publicamente, vós o atribuís a nós, como se tivéssemos decaído e a luz divina não nos assistisse. Todavia, como estamos livres por não praticar nada disso, vossas calúnias não nos causam nenhum dano; ao contrário, danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda levantam falso testemunho contra nós.

O homem é racional e livre

28. 1Entre nós, o príncipe dos maus demônios se chama serpente, satanás, diabo ou caluniador, como podeis ver, caso desejardes averiguar isso, através de nossas Escrituras. Ele e todo o seu exército, juntamente com os homens que o seguem, será enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim, coisa que foi de antemão anunciada por Cristo. 2Na verdade, a paciência que Deus mostra em não fazê-lo imediatamente, tem como causa o seu amor pelo gênero humano, pois ele prevê que alguns se salvarão pela penitência, entre os quais alguns que talvez ainda não tenham nascido. 3No princípio, ele criou o gênero humano racional, capaz de escolher a verdade e praticar o bem, de modo que não existe homem que tenha desculpa diante de Deus, pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade. 4Se alguém não crê que Deus se preocupe com essas coisas, ou terá que confessar com sofismas que não existe, ou existindo, se compraza com a maldade ou permaneça insensível como uma pedra. Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou más unicamente por sua opinião, o que é a maior impiedade e iniqüidade.

A castidade cristã

29. 1Também evitamos a exposição das crianças, pois tememos que algumas delas, não sendo recolhidas, venham a morrer e sejamos réus de homicídio. Nós, ou nos casamos desde o princípio para a única finalidade de gerar filhos, ou renunciamos ao matrimônio, permanecendo absolutamente castos. 2Para vos mostrar que a união promíscua não é um mistério que celebramos, houve o caso que um dos nossos apresentou um memorial ao prefeito Félix em Alexandria, pedindo-lhe que autorizasse seu médico para cortar-lhe os testículos, pois os médicos daquele lugar diziam que tal operação não podia ser feita sem permissão do governador. 3Félix negou-se absolutamente a assinar o pedido e o jovem permaneceu solteiro, contentando-se com o testemunho de sua consciência e o de seus companheiros na fé. 4Cremos que não estaria fora de lugar recordar aqui Antínoo, que viveu nesses tempos, a quem todos, por medo, se prostraram para honrar como deus, apesar de saber muito bem quem ele era e de onde vinha.

A profecia é a prova máxima

30. 1Poderiam nos objetar: “Que inconveniente há em que esse que nós chamamos Cristo seja um homem que vem de outros homens e que, por arte mágica, fez os prodígios que dizemos e, por isso, pareceu ser filho de Deus?? Apresentaremos, pois, a demonstração, não dando fé àqueles que nos contam os fatos, mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer, da forma que os vemos cumpridos ou que estão se cumprindo diante dos nossos olhos, tal como foram profetizados – demonstração que acreditamos que parecerá a vós mesmos a mais forte e a mais verdadeira.

A Versão dos Setenta

31. 1Entre os judeus, houve profetas de Deus, através dos quais o Espírito profético anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros, e os reis, que segundo os tempos se sucederam entre os judeus, apropriando-se de tais profecias, guardaram-nas cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os próprios profetas as consignaram em seus livros, escritos em sua própria língua hebraica. 2Quando Ptolomeu, rei do Egito, se preocupou em formar uma biblioteca e nela reunir os escritos de todo o mundo, tendo tido notícia dessas profecias, mandou uma embaixada a Herodes, que então era rei dos judeus, pedindo-lhe que mandasse os livros deles. 3O rei Herodes mandou os livros, como dissemos, em sua língua hebraica. 4Todavia, como seu conteúdo não podia ser entendido pelos egípcios, Ptolomeu pediu, por meio de uma nova embaixada, que Herodes enviasse homens para os verter para a língua grega . 5Depois disso, os livros permaneceram entre os egípcios até o presente e os judeus os usam no mundo inteiro. Estes, porém, ao lê-los, não entendem o que está escrito, mas considerando-nos inimigos e adversários, matam-nos, como vós o fazeis, e atormentam-nos sempre que podem fazê-lo, como podeis facilmente verificar. 6Com efeito, na guerra dos judeus agora terminada, Bar Kókeba, o cabeça da rebelião, mandava submeter a terríveis torturas somente os cristãos, caso estes não negassem e blasfemassem Jesus Cristo.

Profecias sobre Jesus

7Nos livros dos profetas já encontramos anunciado que Jesus, nosso Cristo, deveria vir nascido de uma virgem; que ele chegaria à idade adulta, curaria toda doença, toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos; que seria invejado, desconhecido e crucificado; que morreria, ressuscitaria e subiria aos céus; que ele é e se chama Filho de Deus; que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gênero humano e seriam os homens das nações aqueles que mais creriam nele. 8E essas profecias foram feitas umas cinco, outras três, outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes que ele aparecesse no mundo. Com efeito, é sabido que os profetas se sucederam uns aos outros, de geração em geração.

32. 1Moisés, que foi o primeiro dos profetas, disse literalmente: “Não faltará príncipe de Judá, nem chefe saído de seus músculos, até que venha aquele a quem está reservado. Ele será a esperança das nações, amarrando seu jumentinho à vinha e lavando sua roupa no sangue da uva” . 2Portanto, é vosso dever averiguar com todo o rigor e inteirar-vos até quando os judeus tiveram príncipe e rei saído deles, até à aparição de Jesus Cristo, nosso Mestre e intérprete das profecias desconhecidas, tal como foi de antemão dito pelo Espírito Santo profético, por meio de Moisés, que não faltaria príncipe dos judeus até aquele para o qual está reservada a realeza. 3Judá foi o antepassado dos judeus, e dele os judeus receberam esse nome, e vós, depois da aparição de Cristo, imperastes sobre os judeus e vos apoderastes de toda a sua terra. 4As palavras: “Ele será a esperança das nações” queria dizer que gente de todas as nações esperará novamente a sua vinda, coisa que podeis ver com os vossos próprios olhos e comprovar na realidade, pois gente de todas as raças de homens espera aquele que foi crucificado na Judéia, depois de cuja a morte imediatamente a terra dos judeus foi tomada ao poder de lanças e entregue a vós. 5A expressão: “Amarrando seu jumentinho à vinha e lavando sua roupa no sangue da uva” era símbolo do que havia de acontecer a Cristo e do que seria feito por ele. 6Com efeito, foi assim que, na entrada de certa aldeia, estava um jumentinho amarrado a uma parreira, e ele mandou que seus discípulos lho levassem e, depois que o jumentinho foi levado, montou sobre ele e assim entrou em Jerusalém, onde estava o maior templo dos judeus, o mesmo que mais tarde foi destruído por vós. Depois da entrada em Jerusalém, ele foi crucificado, a fim de que se cumprisse o resto da profecia. 7De fato, a passagem de que lavaria sua roupa no sangue da uva, era anúncio antecipado de sua paixão, significando que sofreria para lavar com seu sangue aqueles que acreditariam nele. 8Com efeito, o que o Espírito divino chama pelo profeta “sua roupa”, são os homens que crêem nele, nos quais habita a semente que procede de Deus, e que é o Verbo. 9E fala-se também do “sangue da uva”, para dar a entender que aquele que havia de aparecer teria certamente sangue, mas não de sêmen humano, e sim de virtude divina. 10O Verbo é a primeira virtude ou potência depois de Deus, Pai e soberano de todas as coisas, e Filho seu. Como esse se tornou carne e nasceu homem, nós o diremos mais adiante. 11De fato, do mesmo modo que o sangue da uva não é feito pelo homem, mas por Deus, da mesma forma dava-se a entender nessas palavras que o sangue de Cristo não procederia de sêmen humano, mas de virtude de Deus, como já dissemos. 12E Isaías, outro profeta, diz a mesma coisa com outras palavras: “Levantar-se-á uma estrela de Jacó e uma flor subirá da raiz de Isaí; e as nações esperaram sobre o seu braço .” Com efeito, uma estrela brilhante se levantou e uma flor subiu da raiz de Isaí, que é Cristo. 13De fato, ele foi concebido, com a força de Deus, por uma virgem descendente de Jacó, que foi pai de Judá, antepassado dos judeus, de quem eu já falei; segundo o oráculo, Isaí foi o seu avô e Cristo, segundo a sucessão das gerações, é filho de Jacó e de Judá.

A concepção virginal

33. 1Escutai agora como foi literalmente profetizado por Isaías que Cristo seria concebido por uma virgem. Ele diz o seguinte: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe porão o nome ?Deus conosco? “. 2O que os homens poderiam considerar incrível e impossível de acontecer, Deus o indicou antecipadamente por meio do Espírito profético, para que quando acontecesse, não lhe fosse negada a fé, e sim, justamente por ter sido predito, fosse acreditado. 3Esclareçamos agora as palavras da profecia para que, por não entendê-la, objetem o mesmo que nós dizemos contra os poetas, quando nos falam de Zeus que, para satisfazer sua paixão libidinosa, uniu-se com diversas mulheres. 4Portanto, “Eis que uma virgem conceberá” significa que a concepção seria sem relação carnal, pois, se esta houvesse, ela não mais seria virgem; mas foi a força de Deus que veio sobre a virgem e a cobriu com a sua sombra e fez com que ela concebesse permanecendo virgem. 5Foi assim que naquele tempo, o mensageiro, enviado da parte de Deus à mesma virgem, deu-lhe a boa notícia, dizendo: “Eis que conceberás do Espírito Santo em teu ventre e darás à luz um filho, que se chamará Filho do Altíssimo, e lhe porás o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo de seus pecados” . Assim nos ensinaram os que consignaram todas as lembranças referentes ao nosso Salvador Jesus Cristo, e nós lhes demos fé, pois o Espírito Santo profético, como já indicamos, disse pelo citado Isaías que o geraria. 6Portanto, por Espírito e força que procede de Deus não é licito entender a não ser o Verbo, que é o primogênito de Deus, como Moisés, profeta antes mencionado, o deu a entender. Vindo ele sobre a virgem e cobrindo-a com sua sombra, não por meio de relação carnal, mas por sua força, fez com que ela concebesse. 7Quanto a Jesus, é nome da língua hebraica, que significa em grego Sotér, isto é, Salvador. 8Daí que o mensageiro disse à virgem: “Tu lhe porás o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo de seus pecados”. 9Que aqueles que profetizam não são inspirados por nenhum outro, mas pelo Verbo divino, suponho que mesmo vós o admitis.

Lugar de nascimento

34. 1Escutai agora como Miquéias, outro profeta, predisse o lugar da terra em que ele nasceria. Assim diz: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre os príncipes de Judá, pois de ti sairá o chefe que apascentará o meu povo” . 2Sabe-se que há no país dos judeus uma aldeia que dista de Jerusalém trinta e cinco estádios e que nela nasceu Jesus Cristo, como podeis comprovar pelas listas do recenseamento, feitas sob Quirino, que foi o vosso primeiro procurador na Judéia.

Várias profecias

35. 1Também foi predito que Cristo, depois de nascer, viveria oculto aos outros homens, até à idade adulta. Escutai o que foi dito antecipadamente a esse respeito. 2É o seguinte: “Um menino nasceu, um pequenino nos foi dado, cujo império está sobre os ombros” , aludindo essas palavras à força da cruz, à qual, ao ser crucificado, juntou os ombros, como a seqüência do discurso mostrará mais claramente. 3E, de novo, o mesmo profeta Isaías, inspirado pelo Espírito profético, disse: “Eu estendi as minhas mãos para um povo que não crê e contradiz, aos que andam por um caminho que não é bom. 4E agora me vêm pedir julgamento e têm a ousadia de aproximar-se de Deus” . 5E outra vez, por meio de outro profeta, diz com outras palavras: “Eles transpassaram meus pés e minhas mãos, e lançaram sorte sobre a minha roupa” . 6Na verdade, Davi, rei e profeta, que disse isso, não sofreu nada disso, mas Jesus Cristo estendeu as suas mãos quando foi crucificado pelos judeus que o contradiziam e falavam que ele não era o Messias. Com efeito, como disse o profeta, levaram-no arrastando e, fazendo-o sentar-se numa cadeira de juiz, disseram-lhe: “julga-nos”. 7“Transpassaram as minhas mãos e os meus pés” significava os cravos que na cruz transpassaram seus pés e mãos. 8E depois de crucificá-lo, aqueles que o crucificaram lançaram sorte sobre as suas roupas e as repartiram entre si. 9Que tudo isso aconteceu assim, podeis comprová-lo pelas Atas redigidas no tempo de Pôncio Pilatos. 10Citamos também a profecia de outro profeta, Sofonias, que literalmente profetizou que ele montaria sobre um jumentinho e desse modo entraria em Jerusalém. 11São estas as suas palavras: “Alegra-te muito, filha de Sião; dá gritos, filha de Jerusalém. Eis que o teu rei vem a ti manso, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho de um animal de jugo” .

Regras de interpretação

36. 1Percebamos que quando ouvis que os profetas falam como em própria pessoa, não deveis pensar que assim falam os próprios homens inspirados, mas é o Verbo divino que os move. 2Algumas vezes ele fala como que anunciando de antemão o que vai acontecer, outras como se estivesse no lugar de Deus, Soberano e Pai do universo, outras na pessoa de Cristo, e outras ainda, das pessoas que respondem ao seu Pai e Senhor. Algo semelhante acontece com vossos próprios escritores, em que um é aquele que escreveu tudo, mas são várias as pessoas que entram no diálogo. 3Não entendendo isso, os judeus, que são aqueles que possuem os livros dos profetas, não só não reconheceram a Cristo já vindo, mas também odeiam a nós, que dizemos que ele de fato veio, e mostramos que, como fora profetizado, foi por eles crucificado.

37. 1Para que também isso fique claro para vós, eis aqui algumas palavras que foram ditas pelo profeta Isaías, antes mencionado, na pessoa do Pai: “O boi conhece o seu dono e o jumento a manjedoura de seu senhor; mas Israel não me conheceu e o meu povo não me entendeu. 2Ai da nação pecadora, do povo cheio de pecados; descendência má, filhos iníquos: abandonastes o Senhor” . 3De novo, em outra passagem em que o mesmo profeta fala igualmente na pessoa do Pai: “Que casa me edificareis? – diz o Senhor. 4O céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés” . 5E outra vez, em outra passagem: “As vossas luas novas e os vossos sábados, a minha alma os detesta; o vosso dia de grande jejum e a vossa ociosidade, eu não os suporto. Nem mesmo quando vos apresentais diante de mim eu vos escutarei. 6Vossas mãos estão cheias de sangue. 7Até quando me trazeis flor de farinha ou incenso, isso é abominação para mim; não quero a gordura de carneiros ou sangue de novilhos. 8Com efeito, quem pediu essas coisas de vossas mãos? Desata antes toda atadura de injustiça, rompe as cordas dos contratos injustos, cobre aquele que está nu e aquele que não tem teto, reparte o teu pão com o faminto” . 9Portanto, com essas passagens podeis entender que tais são os ensinamentos que os profetas dão na pessoa de Deus.

38. 1Quando o Espírito profético fala na pessoa de Cristo, ele se expressa assim: “Eu estendi as minhas mãos a um povo que não crê e contradiz, aos que andam por um caminho que não é bom” . 2E, novamente: “Entreguei minhas costas aos açoites e minhas faces às bofetadas, e não afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas. 3E o Senhor se tornou o meu auxílio; por isso eu não fui confundido, mas transformei o meu rosto em rocha dura, e soube que não seria confundido, pois está perto aquele que me justifica” . 4E o mesmo quando diz: “Eles lançaram sorte sobre as minhas roupas, e transpassaram as minhas mãos e os meus pés; 5mas eu adormeci e me entreguei ao sono e ressuscitei, porque o Senhor me protegeu” . 6E outra vez quando diz: “Cochichavam com os seus lábios e balançaram a cabeça, dizendo: Salve-se a si mesmo . 7Podeis comprovar que tudo isso cumpriu-se através dos judeus em Cristo. 8Com efeito, estando já na cruz, eles retorciam os lábios e balançavam a cabeça, dizendo: “Quem ressuscitou mortos livre-se a si mesmo”.

Profecia cumprida

39. 1Quando o Espírito profético fala, profetizando sobre o futuro, ele diz assim: “Porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor de Jerusalém; ele julgará no meio das nações e argüirá um povo numeroso. Quebrarão suas espadas e farão arados, e transformarão suas lanças em foices; uma nação não pegará a espada contra outra nação, nem saberão mais o que é a guerra” . 2Que assim tenha acontecido, podeis comprová-lo. 3Com efeito, de Jerusalém saíram doze homens pelo mundo, e estes ignorantes e incapazes de eloqüência; todavia, pela força de Deus, persuadiram todo o gênero humano de que haviam sido enviados por Cristo para ensinar a todos a palavra de Deus. Nós, que antes nos matávamos mutuamente, agora não só não fazemos guerra contra os nossos inimigos, mas também, por não mentir nem enganar os juízes que nos interrogam, morremos felizes de confessar a Cristo. 4Pudéssemos nós aplicar ao nosso caso o dito: “A língua jurou, mas a alma não jurou”. 5Seria ridículo que os soldados que se contratam convosco e se alistam em vossas bandeiras pusessem a lealdade para convosco acima de sua própria vida, acima dos pais, pátria e tudo o que lhes pertence, embora nada de imperecível lhes pudésseis oferecer, e nós, que amamos a incorrupção, não suportemos tudo a troco de receber o que esperamos daquele que tem poder para no-lo dar.

Profecia sobre os apóstolos

40. 1Escutai agora o que foi predito sobre os que pregaram a sua doutrina e anunciaram a sua vinda. O já mencionado profeta e rei diz assim por obra do Espírito profético: “O dia transmite a palavra a outro dia, e a noite anuncia o conhecimento a outra noite. 2Não há discursos nem palavras, cuja voz não se ouça. 3Sobre toda a terra se espalhou o som deles, e até aos confins do orbe da terra chegaram as suas palavras. 4No sol colocou a sua tenda, e este, como esposo que sai do seu quarto, se regozijará como gigante para percorrer o seu caminho ” . 5Além disso, acreditamos ser oportuno e apropriado ao nosso intento mencionar outras palavras profetizadas pelo mesmo Davi, através das quais podeis inteirar-vos de como o Espírito profético exorta os homens a viver 6e como mostra a conspiração que Herodes, rei dos judeus, os próprios judeus, Pilatos, que foi vosso procurador na Judéia, e seus soldados tramaram juntos contra Cristo.

7Notai também como se profetiza que pessoa de toda raça de homens deveriam crer nele, que Deus o chama de seu Filho e promete submeter-lhe todos os seus inimigos; ainda como os demônios, enquanto podem, procuram escapar do poder de Deus Pai e soberano de tudo e de Cristo; por fim, como Deus chama todos à penitência antes de chegar o dia do julgamento. 8As profecias dizem o seguinte: “Bem-aventurado o homem que não anda no desígnio dos ímpios, não pára no caminho dos pecadores, nem se assenta no assento da perdição, mas se compraz na lei do Senhor e que dia e noite medita em sua lei. 9Será como árvore plantada junto às correntes das águas, que dará seu fruto no devido tempo e suas folhas não cairão, e em tudo o que fizer será bem sucedido. 10Não assim os ímpios, não assim, mas como o pó que o vento espalha sobre a face da terra. Por isso, os ímpios não se levantarão no dia do julgamento, nem os pecadores no conselho dos justos. De fato, o Senhor conhece o caminho dos justos e o caminho dos ímpios perecerá. 11Por que as nações fremiram e os povos meditaram novidades? Os reis da terra apresentaram-se e os príncipes se juntaram contra o Senhor e contra o seu Ungido, dizendo: ?Rompamos suas amarras e arranquemos de nós o seu jugo’. 12Aquele que habita nos céus rir-se-á deles, e o Senhor os fará objeto de sua zombaria. Então, falar-lhes-á com ira e com sua indignação os perturbará. 13Eu, porém, fui constituído por ele como rei sobre Sião, seu monte santo, para anunciar o seu decreto. 14O Senhor me disse: Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei. 15Pede-me e te darei as nações como tua herança e os confins da terra como tua propriedade. Apascenta-los-ás com cetro de ferro, como vaso de oleiro as farás em pedaços. 16E agora, reis, entendei; instruí-vos, vós que julgais a terra. 17Servi ao Senhor no temor, e no tremor regozijai-vos nele. 18Aprendei a disciplina; não aconteça que, em certo momento, o Senhor se irrite e pereçais saindo do caminho justo, quando de repente sua ira se acender. 19Felizes todos os que nele confiam.”

Profecia sobre o Reino de Cristo

41. 1Em outra profecia, o Espírito profético, dando a entender, através de Davi, que Cristo haveria de reinar depois de crucificado, diz assim: ?Louvai o Senhor, terra inteira, e anunciai dia a dia a sua salvação, porque o Senhor é grande e digno do maior louvor, temível sobre todos os deuses. Com efeito, todos os deuses das nações são imagens de demônios, mas Deus fez os céus. 2Glória e louvor em sua presença, força e orgulho no lugar de sua santificação. Glorificai ao Senhor, aquele que é Pai dos séculos. 3Tomai graça e entrai em sua presença, adorando-o em seus santos átrios. Toda a terra tema diante de sua face, endireite seu caminho e não se perturbe. 4Que as nações se alegrem: o Senhor reinou pelo madeiro”.

Cristo, nossa alegria

42. 1Esclarecemos também o caso no qual o Espírito profético fala do futuro como já realizado, como já se pode conjecturar na passagem antes mencionada, a fim de que também nisso os que lêem não tenham desculpa. 2O que é absolutamente conhecido como algo que acontecerá, é predito pelo Espírito profético como já conhecido. Que as coisas devam ser assim, ponde toda atenção de vossa mente ao que vamos dizer. 3Davi fez a profecia citada, mil e quinhentos anos antes que Cristo feito homem fosse crucificado, e nenhum dos antes nascidos ofereceu, ao ser crucificado, alegria para as nações, e ninguém também depois dele. 4Em troca, Cristo, que foi crucificado, morreu e ressuscitou em nosso tempo, não só reinou ao subir ao céu, mas pela sua doutrina, pregada pelos apóstolos em todas as nações, é a alegria de todos os que esperam a imortalidade que ele nos prometeu.

Profecia e livre-arbítrio

43. 1Do que dissemos anteriormente, ninguém deve tirar a conclusão de que afirmamos que tudo o que acontece, acontece por necessidade do destino, pelo fato de que dizemos que os acontecimentos foram conhecidos de ante-mão. Por isso, resolveremos também essa dificuldade. 2Nós aprendemos dos profetas e afirmamos que esta é a verdade: os castigos e tormentos, assim como as boas recompensas, são dadas a cada um conforme as suas obras. Se não fosse assim, mas tudo acontecesse por destino, não haveria absolutamente livre-arbítrio. Com efeito, se já está determinado que um seja bom e outro mau, nem aquele merece elogio, nem este, vitupério. 3Se o gênero humano não tem poder de fugir, por livre determinação, do que é vergonhoso e escolher o belo, ele não é irresponsável de nenhuma ação que faça. 4Mas que o homem é virtuoso e peca por livre escolha, podemos demonstrar pelo seguinte argumento: 5Vemos que o mesmo sujeito passa de um contrário a outro. 6Ora, se estivesse determinado ser mau ou bom, não seria capaz de coisas contrárias, nem mudaria com tanta freqüência. Na realidade, nem se poderia dizer que uns são bons e outros maus, desde o momento que afirmamos que o destino é a causa de bons e maus, e que realiza coisas contrárias a si mesmo, ou que se deveria tomar como verdade o que já anteriormente insinuamos, isto é, que virtude e maldade são puras palavras, e que só por opinião se tem algo como bom ou mau. Isso, como demonstra a verdadeira razão, é o cúmulo da impiedade e da iniqüidade. 7Afirmamos ser destino ineludível que aqueles que escolheram o bem terão digna recompensa e os que escolheram o contrário, terão igualmente digno castigo. 8Com efeito, Deus não fez o homem como as outras criaturas. Por exemplo: árvores ou quadrúpedes, que nada podem fazer por livre determinação. Nesse caso, não seria digno de recompensa e elogio, pois não teria escolhido o bem por si mesmo, mas nascido já bom; nem, por ter sido mau, seria castigado justamente, pois não o seria livremente, mas por não ter podido ser algo diferente do que foi.

Platão depende de Moisés

44. 1Esta doutrina foi ensinada a nós pelo Espírito profético que, por meio de Moisés, nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo: ?Olha que diante de tua face está o bem e o mal: escolhe o bem? . 2E, de novo, através de Isaías, outro profeta, sabemos que, na pessoa de Deus, Pai e soberano do universo, foi dito o seguinte sobre esse mesmo assunto: 3“Lavai-vos e purificai-vos, tirai a maldade de vossas almas. Aprendei a fazer o bem, julgai o órfão, fazei justiça à viúva; então, vinde e conversaremos, diz o Senhor. Mesmo que vossos pecados sejam como a púrpura, eu os deixarei brancos como a lã; mesmo que sejam como escarlate, e os tornarei brancos como a neve. 4Se quiserdes e me escutardes, comereis os bens da terra; mas se não me escutardes, a espada vos devorará, porque assim falou a boca do Senhor” . 5A expressão anterior “A espada vos devorará” não quer dizer que os que desobedecerem serão passados a fio de espada, mas por “espada” deve-se entender o fogo, cuja presa são os que escolheram praticar o mal. 6Por isso, diz: “A espada vos devorará, porque assim falou a boca do Senhor.” 7Se tivesse falado da espada que corta e se separa imediatamente, não teria dito “devorará”. 8De modo que o próprio Platão, ao dizer: “A culpa é de quem escolhe. Deus não tem culpa”, falou isso por tê-lo tomado do profeta Moisés, pois sabe-se que este é mais antigo do que todos os escritores gregos. 9Em geral, tudo o que os filósofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplação das coisas celestes, aproveitaram-se dos profetas, não só para poder entender, mas também para expressar isso. 10Daí que parece haver em todos algo como germes de verdade. Todavia, demonstra-se que não o entenderam exatamente, pelo fato de que se contradizem uns aos outros. 11Concluindo: Se dizemos que os acontecimentos futuros foram profetizados, nem por isso afirmamos que aconteçam por necessidade do destino; afirmamos sim que Deus conhece de antemão tudo o que será feito por todos os homens e é decreto seu recompensar cada um segundo o mérito de suas obras e, por isso, justamente prediz, por meio do Espírito profético, o que para cada um virá da parte dele, conforme o que suas obras mereçam. Com isso, ele constantemente conduz o gênero humano à reflexão e à lembrança, demonstrando-lhe que cuida e usa de providência para com os homens.

12Todavia, pela ação dos maus demônios, decretou-se pena de morte contra aqueles que lerem os livros de Histaspes, da Sibila e dos profetas, a fim de impedir, por meio do terror, que os homens consigam, lendo-os, o conhecimento do bem, e retê-los como seus escravos; coisa que definitivamente os demônios não puderam conseguir. 13Com efeito, não só os lemos intrepidamente, mas também, como vedes, nós vô-los oferecemos, para que os examineis, pois estamos seguros de que agradarão a todos. Mesmo que consigamos persuadir algumas poucas pessoas, nosso ganho será muito grande, pois, como bons agricultores, receberemos do amo a nossa recompensa.

Ascensão e glória de Jesus

45. 1Agora escutai o que disse o profeta Davi sobre o fato de que Deus, Pai do universo, levaria Cristo ao céu, depois de sua ressurreição dos mortos, e retê-lo-ia consigo até ferir os demônios, seus inimigos, e até se completar o número dos que por ele, de antemão conhecidos como bons e virtuosos, em respeito dos quais justamente ainda não foi levada a cabo a conflagração universal. 2As palavras do profeta são estas: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo de teus pés. 3O Senhor te enviará o cetro de poder de Jerusalém, e tu dominarás em meio aos esplendores de teus inimigos. 4Contigo o império no dia de tua potência, em meio aos esplendores de teus santos. Do meu seio, antes do astro da manhã, eu te gerei? . 5Portanto, o que ele diz “Enviar-te-á de Jerusalém o cetro de poder” era anúncio antecipado da palavra poderosa que, saindo de Jerusalém, os apóstolos pregaram por toda parte e que nós, a despeito da morte decretada dos que ensinam ou absolutamente confessam o nome de Cristo, em todo lugar também a abraçamos e ensinamos. 6E se também vós ledes como inimigos estas nossas palavras, além de matar-nos, como já dissemos antes, nada podeis fazer. A nós, isso nenhum dano causará; a vós, porém, e a todos os que injustamente nos odeiam e não se convertem, trazer-vos-á castigo de fogo eterno.

Cristãos antes de Cristo

46. 1Alguns, sem motivo, para rejeitar o nosso ensinamento, poderiam nos objetar que, ao dizermos que Cristo nasceu somente há cento e cinqüenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio Pilatos, os homens que o precederam não têm nenhuma responsabilidade. Tratemos de resolver essa dificuldade. 2Nós recebemos o ensinamento de que Cristo é o primogênito de Deus e indicamos antes que ele é o Verbo, do qual todo o gênero humano participou. 3Portanto, aqueles que viveram conforme o Verbo são cristãos, quando do foram considerados ateus, como sucedeu entre os gregos com Sócrates, Heráclito e outros semelhantes; e entre os bárbaros com Abraão, Ananias, Azarias e Misael, e muitos outros, cujos fatos e nomes omitimos agora, pois seria longo enumerar. 4De modo que também os que antes viveram sem razão, se tornaram inúteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razão; mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela, são cristãos e não experimentam medo ou perturbação. 5O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem, pela virtude do Verbo conforme o desígnio de Deus, Pai e soberano do universo, e foi chamado Jesus e, depois de crucificado e morto, ressuscitou e subiu ao céu, o leitor inteligente poderá perfeitamente compreendê-lo pelas longas explicações que foram dadas até aqui. 6De nossa parte, como não é necessário demonstrar esse ponto agora, passaremos às demonstrações mais urgentes.

Sobre a ruína de Jerusalém

47. 1Escutai o que foi predito pelo Espírito profético sobre á devastação futura da terra dos judeus. As palavras foram ditas como que na pessoa daqueles que se maravilham com o acontecido. 2São as seguintes: “Sião ficou deserta, Jerusalém ficou solitária, e a casa, nosso santuário, foi profanada; a glória que nossos pais bendisseram tornou-se presa do fogo e todas as suas maravilhas se fundiram. 3A esse respeito, tu suportaste, te calaste e nos humilhaste muito” . 4Que Jerusalém tenha ficado deserta, tal como fora predito, é coisa de que estais bem convencidos. 5E não só se predisse a sua devastação, mas também, pelo profeta Isaías, que a nenhum deles seria permitido habitar nela, com estas palavras: “A terra deles está deserta, e os próprios inimigos a devoram diante deles; e deles não haverá ninguém que nela se encontrasse e decretastes pena de morte contra o judeu que nela habite” . Que vós mesmos montastes guarda para que ninguém nela fosse encontrado, é coisa que sabeis perfeitamente.

Os milagres de Cristo

48. 1Que nosso Cristo curaria todas as enfermidades e ressuscitaria mortos, escutai as palavras com que isso foi profetizado. 2São estas: “Diante dele, o coxo saltará como cervo e a língua dos mudos se soltará, os cegos recobrarão a vista, os leprosos ficarão limpos e os mortos ressuscitarão e começarão a andar”. 3Que tudo isso foi feito por Cristo, vós o podeis comprovar pelas Atas redigidas no tempo de Pôncio Pilatos. 4Sobre como foi de antemão indicado que ele haveria de ser morto, juntamente com os homens que nele esperam, escutai as palavras do profeta Isaías: 5“Eis como pereceu o justo, e ninguém reflete em seu coração; varões justos são tirados do meio, e ninguém considera. O justo é tirado da vista da iniqüidade, e ficará em paz: seu sepulcro é tirado do meio”.

A gentilidade

49. 1Novamente olhai o que o profeta Isaías diz: os povos das nações que não o esperavam, iriam adorá-lo; ao contrário, os judeus que o esperavam, o desconheceram quando ele veio. As palavras são ditas na pessoa de Cristo.

2Ei-las: “Manifestei-me aos que não perguntavam por mim, fui encontrado por aqueles que não me buscavam. Eu disse: ?Eis-me aqui’ a uma nação que não invocava o meu nome. 3Estendi minhas mãos a um povo que não crê e contradiz, aos que andam por caminho não bom, mas atrás de seus pecados. 4O povo que me exaspera está diante de mim” . 5Foi assim que os judeus, que possuíam as profecias e esperavam continuamente Cristo, quando este veio não o reconheceram; e não apenas isso, pois inclusive o maltrataram. Ao contrário, os gentios, que nunca tinham ouvido falar dele até que os apóstolos, tendo saído de Jerusalém, lhes contaram sua vida e lhes entregaram as profecias, cheios de alegria e de fé, renunciaram aos ídolos e se consagraram ao Deus ingênito, por meio de Cristo. 6Que de antemão foram conhecidas essas ignomínias que se propagariam contra os que confessam a Cristo e como são miseráveis aqueles que o blasfemam, dizendo que é bom preservar os antigos costumes, escutai como o profeta Isaías o diz brevemente. 7São suas as palavras: “Ai daqueles que chamam amargo ao doce e doce, ao amargo!”.

A paixão e glória de Cristo

50. 1Escutai agora as profecias relativas à paixão e desonras que, feito homem, ele sofreria por nós, e a glória com que voltará. 2São estas: “Porque entregaram sua alma à morte e foi contado entre os iníquos, ele tomou os pecados de muitos e se reconciliará com os iníquos . 3Eis que meu servo entenderá, será levantado e glorificado muito. 4Do mesmo modo como muitos ficarão atônitos à tua vista – tão desonrada está a tua figura dos homens e tua glória tão longe dos homens – assim muitas nações ficarão maravilhadas e reis permanecerão silenciosos, porque aqueles para os quais não foi anunciado verão, e os que não ouviram, entenderão. 5Senhor quem creu naquilo que ouviu de nós? Para quem foi revelado o braço do Senhor? Anunciamos diante dele como menino, como raiz em terra sedenta. 6Ele não tem beleza nem glória; nós o vimos e não tinha beleza nem formosura, mas o seu aspecto estava desonrado e debilitado em comparação com os homens. 7Homem sujeito ao açoite e que sabe suportar a enfermidade, seu rosto está escondido, foi desonrado e desprezado. 8Leva sobre si nossos pecados e padece por nós, e nós consideramos que ele estava em fadiga, em açoite e desgraça. 9Ele foi ferido por causa de nossas iniqüidades e debilitado por causa de nossos pecados. A disciplina da paz estava sobre ele, fomos curados
por sua chaga. 10Todos nós andávamos errantes como ovelhas, cada um se desviou pelo próprio caminho. Entregou-se por nossos pecados e, ao ser maltratado, não abre a boca. Foi levado como ovelha ao matadouro; como cordeiro que fica mudo diante daquele que o tosquia, ele também não abre a boca. 11Em sua humilhação, o seu julgamento foi tirado”.

12Depois de ser crucificado, até seus discípulos o abandonaram e negaram. Depois, porém, quando ressuscitou dentre os mortos e foi visto por eles, depois que lhes ensinou a ler as profecias nas quais estava predito que isso deveria acontecer, e o viram subir ao céu e creram, depois que receberam a força que de lá lhes foi enviada por ele, espalharam-se entre todo tipo de homens, ensinaram-lhes todas essas coisas e foram chamados apóstolos.

51. 1OEspírito profético, afim de fazer-nos entender que quem padece essas coisas é de origem inexplicável e reina sobre seus inimigos, assim disse: “Quem explicará a sua geração? De fato, sua vida é arrebatada da terra, pelas iniqüidades deles caminha para a morte. 2Em lugar de sua sepultura darei os mares e por sua morte os rios, porque ele não cometeu iniqüidade e nem se achou engano em sua boca e o Senhor quer purificá-lo do açoite. 3Se oferecerdes pelo pecado, vossa alma verá descendência duradoura. 4O Senhor quer afastar a alma dele da fadiga, mostrar-lhe luz, formá-lo na inteligência, justificar o justo que serviu bem a muitos, e ele mesmo carregará os nossos pecados. 5Por isso, herdará a muitos e repartirá os despojos dos fortes, porque sua alma foi entregue à morte e por ter sido contado entre os iníquos, por ter carregado os pecados e ter-se entregue pelas iniqüidades deles”.

6Escutai como foi profetizado que ele deveria subir ao céu. 7Diz o seguinte: “Levantai as portas dos céus; abrivos, portas, para que entre o rei da glória. Quem é esse rei da glória? O Senhor forte e o Senhor poderoso”. 8Que ele também há de vir dos céus com glória, escutai o que sobre isso foi dito pelo profeta Jeremias. 9Ele diz assim: “Eis como um filho de homem vem sobre as nuvens do céu, e seus anjos com ele.”

A dupla vinda de Cristo

52. 1Como demonstramos que tudo o que aconteceu até agora foi previamente anunciado pelos profetas, agora, como em tudo, é necessário também que creiamos no que foi igualmente profetizado, mas que ainda vai acontecer. 2Com efeito, do mesmo modo que o acontecido, antecipadamente anunciado, por mais que não tivesse sido compreendido, aconteceu; assim também o que ainda falta para ser cumprido, acontecerá, por mais que não se compreenda nem se creia.

3Assim é que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo: uma, já cumprida, como homem desonrado e passível; a segunda, quando virá dos céus acompanhado de seu exército de anjos, quando ressuscitará também os corpos de todos os homens que existiram; revestirá de incorruptibilidade os que forem dignos, e enviará os iníquos, com percepção eterna, ao fogo eterno, junto com os perversos demônios. 4Vamos mostrar como foi profetizado que isso deverá acontecer. 5Foi o profeta Ezequiel quem disse assim: “Unir-se-á juntura com juntura, osso com osso, e as carnes voltarão a brotar. 6E todo joelho se dobrará diante do Senhor e toda língua o confessará”. 7Escutai o que foi dito sobre a percepção e o tormento em que se encontrarão os injustos. 8É o seguinte: “Seu verme não descansará e seu fogo não se extinguirá” . 9Então eles se arrependerão, quando de nada mais lhes valerá. 10Sobre o que dirão e farão os povos dos judeus, quando o virem vir em glória, o profeta Zacarias disse esta profecia: “Mandarei que os quatro ventos reúnam meus filhos dispersos, ordenarei ao vento norte que os traga e ao vento sul que não se oponha. 11Então haverá grande choro em Jerusalém, não pranto de bocas e lábios, mas pranto de coração; não rasgarão suas roupas, mas suas almas. 12Cada tribo baterá no peito, olharão aquele que transpassaram e dirão: Por que, Senhor, nos desviaste de teu caminho? A glória que nossos pais bendisseram converteu-se em opróbrio para nós.”

Profecia sobre a gentilidade

53. 1Poderíamos mostrar muitas outras profecias. Entretanto, terminamos essa prova por aqui, considerando que as citadas são suficientes para convencer aqueles que têm ouvidos para ouvir e entender, e podem assim precaver-se que não somos como os que inventam suas fábulas sobre os supostos filhos de Zeus, que nos contentamos apenas com afirmar, sem termos provas para alegar. 2De fato, por que motivo haveríamos de crer que um homem crucificado é o primogênito do Deus ingênito e que julgará todo o gênero humano, se não encontrássemos testemunhos sobre ele, publicados antes de ele ter nascido como homem e não os víssemos literalmente cumpridos: 3a devastação da terra dos judeus, homens de todas as raças que crêem através do ensinamento dos apóstolos e recusam seus antigos costumes em cujos erros se criaram e ainda ao vermos que nós mesmos, procedentes das nações, somos mais numerosos e mais sinceros cristãos do que os judeus e os samaritanos? 4Deve-se saber que o restante de todas as raças humanas são chamadas de nações pelo Espírito profético; a casta dos judeus e samaritanos, porém, chama-se Israel e Casa de Jacó. 5Citarei para vós a profecia que prediz que os crentes serão em maior número entre aqueles que procedem da gentilidade do que entre os judeus e samaritanos. Diz assim: “Alegra-te, estéril, tu que não concebes; rompe e grita de júbilo, tu que não sofres dores de parto, porque são mais numerosos os filhos da abandonada do que daquela que tem marido” . 6De fato, todas as nações que cultuavam obras manufaturadas estavam abandonadas pelo verdadeiro Deus; mas os judeus e samaritanos, que tinham a palavra de Deus transmitida pelos profetas e estavam constantemente esperando Cristo, vindo este, o desconheceram, exceto alguns poucos, dos quais o Espírito profético havia predito, através de Isaías, que se salvariam. 7Disse pessoalmente sobre eles mesmos: “Se o Senhor não nos tivesse deixado semente, nos teríamos tornado como Sodoma e Gomorra” . 8Moisés conta que Sodoma e Gomorra foram cidades de homens ímpios que Deus destruiu, queimando-as com fogo e enxofre, sem que nelas alguém se salvasse, a não ser um estrangeiro, de origem caldéia, chamado Ló, juntamente com suas filhas. 9Ainda hoje, quem quiser, pode ver toda essa terra que continua deserta, calcinada e estéril.

10Que os cristãos da gentilidade seriam mais sinceros e fiéis, 11eis o que disse o profeta Isaías: “Israel é incircunciso de coração, as nações o são de prepúcio” . 12A contemplação de tantos fatos pode bem levar razoavelmente à persuasão e à fé os que amam a verdade, que não seguem a opinião, nem se deixam dominar por suas paixões.

As fábulas pagãs

54. 1Ao contrário, os que ensinam os mitos inventados pelos poetas não podem oferecer nenhuma prova aos jovens que os aprendem de cor. E nós demonstramos que foram ditos por obra dos demônios perversos, para enganar e extraviar o gênero humano. 2Com efeito, ouvindo os profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens ímpios seriam castigados através do fogo, colocaram na frente muitos que se disseram filhos de Zeus, crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo como um conto de fada, semelhante aos contados pelos poetas. 3Tudo se propagou principalmente entre os gregos e outras nações, onde mais os demônios tinham ouvido, pelo anúncio dos profetas, que se deveria crerem Cristo. 4Nós colocaremos às claras que, embora ouvindo o que dizem os profetas, não o entenderam exatamente, mas parodiaram como charlatães aquilo que se refere a Cristo. 5Como já dissemos, o profeta Moisés é mais antigo do que todos os escritores e por ele, como já indicamos, foi feita esta profecia: “Não faltará príncipe de Judá, nem chefe de seus músculos, até que venha aquele a quem está reservado, e ele será a esperança das nações, amarrando seu jumentinho na sua videira e lavando sua roupa no sangue da uva”. 6ouvindo essas palavras proféticas, os demônios disseram que Dioniso tinha sido filho de Zeus, ensinaram que ele tinha inventado a vinha, introduziram o asno em seus mistérios e propagaram que ele, depois de ter sido esquartejado, subiu ao céu. 7Acontece, porém, que na profecia de Moisés não aparecia com clareza se aquele que devia nascer seria Filho de Deus, nem se aquele que deveria montar o jumentinho permaneceria na terra ou subiria ao céu. Por outro lado, o nome de jumentinho, originariamente pode tanto significar a cria do asno como do cavalo. Assim, não sabendo se a profecia deveria ser tomada como símbolo de sua vinda montado num jumentinho de asno ou num potro de cavalo, nem se seria filho de Deus, como dissemos, ou de homem, os demônios inventaram que, Belerofonte, homem nascido de homens, subiu ao céu montado no cavalo Pégaso. 8Como também ouviram por outro profeta, Isaías, que haveria de nascer de uma virgem e que por sua própria virtude subiria ao céu, adiantaram-se com a lenda de Perseu. 9Pela mesma razão, conhecendo o que fora dito dele nas profecias anteriormente citadas: “Forte como um gigante para percorrer seu caminho”, inventaram um Hércules forte, que andava peregrinando por toda a terra. 10Por fim, ao inteirarem-se que estava profetizado que ele curaria todas as enfermidades e ressuscitaria mortos, nos trouxeram a fábula de Asclépio.

A cruz desconhecida pelos demônios

55. 1Todavia, em nenhum lugar e em nenhum dos supostos filhos de Zeus arremedaram a crucifixão, por não tê-la entendido, pois, conforme dissemos antes, tudo o que se refere à cruz foi dito de forma simbólica. 2Ela é justamente, como predisse o profeta, o maior símbolo de sua força e de seu império, como se manifesta ainda pelas mesmas coisas que caem sob os nossos olhos.

Com efeito, considerai se tudo o que existe no mundo pode ser administrado ou ter comunicação entre si sem essa figura. 3De fato, não é possível sulcar o mar se esse troféu de vitória, que aqui se chama vela, não se mantém de pé no navio; sem ela não se ara a terra; também os cavadores e artesãos não realizam o seu trabalho sem instrumentos que têm essa figura. 4A própria figura humana não se distingue em qualquer outra coisa dos animais irracionais, senão por ser reta, poder abrir os braços e levar, partindo de frente, proeminente, o chamado nariz, pelo qual se verifica a respiração do animal, e que não mostra outra coisa que a forma da cruz. 5E o profeta falou desta maneira: “A respiração diante do nosso rosto, Cristo Senhor”. 6E ainda as vossas próprias insígnias deixam manifesta a força dessa figura, isto é, vossos estandartes e troféus de vitória, com os quais em todo lugar realizais as vossas marchas, mostrando os sinais do império e do poder, até quando o fazeis sem vos dar conta deles. 7As próprias imagens de vossos imperadores, quando morrem, são consagradas por vós com essa figura, e vós os chamais deuses em vossas inscrições.

8Uma vez que os exortamos pelo raciocínio e por uma figura patente, na medida de nossas forças, daqui por diante nós não nos sentiremos irresponsáveis, mesmo que continueis incrédulos, pois o que dependia de nós já foi feito e chegou ao fim.

Outra vez Simão mago

56. 1Os maus demônios, porém, não se contentaram em inventar antes da aparição de Cristo as fábulas dos supostos filhos de Zeus. Pelo contrário, tendo aparecido e conversado com os homens, ficaram sabendo que fora predito pelos profetas que todos nele creriam e que seria esperado em todas as nações e, por isso, como dissemos, lançaram outros, como Simão e Menandro, ambos de Samaria, os quais, realizando prodígios mágicos, enganaram a muitos e ainda os mantêm enganados. 2E, com efeito, como já dissemos, estando Simão em Roma, a vossa cidade imperial, no tempo de Cláudio César, de tal modo ele impressionou o sacro Senado e o povo romano, que foi tido como deus e honrado com uma estátua como a dos outros que vós considerais como deuses. 3Por isso nós vos suplicamos que o sacro Senado e o povo romano conheçam este nosso escrito, a fim de que, se houver alguém que ainda esteja enganado pelos ensinamentos dele, conheça a verdade e fuja do erro. 4Quanto à estátua, se quiserdes, derrubai-a.

Não tememos a morte

57. 1Os demônios não conseguem convencer que não haverá a conflagração para castigar os ímpios, do mesmo modo que não conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu. A única coisa que conseguem é fazer que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em meio aos maus costumes, entregues às suas paixões e seguindo a opinião vã, nos tirem a vida e nos odeiem. Nós, porém, não só não os odiamos, mas, como é evidente, queremos, por pura compaixão que temos por eles, persuadi-los a que se convertam. 2Com efeito, não tememos a morte quando reconhecemos que se deve absolutamente morrer e nada de novo acontece nessa ordem de coisas, mas o mesmo de sempre. Se estas produzem fartura aos que delas usufruem ainda que só por um ano, que prestem atenção ao nosso ensinamento, para que estejam isentos de dor e de necessidades. 3Contudo, se acreditam que não existe nada depois da morte, afirmando que os que morrem terminam em uma absoluta inconsciência, nesse caso fazem-nos um beneficio ao livrar-nos dos sofrimentos e necessidades daqui. Mas eles se mostram maus, inimigos dos homens e seguidores de opinião, pois não nos tiram a vida para nos libertar, mas nos matam para privar-nos da vida e do prazer.

Marcião, inspirado pelo demônio

58. 1Como dissemos antes, os maus demônios também lançaram à frente Marcião do Ponto, que agora ensina a negar o Deus criador de tudo o que é celeste e terrestre, assim como a Cristo, Filho de Deus, que foi anunciado pelos profetas, e prega não sabemos qual outro deus fora do criador de todas as coisas, assim como outro filho seu.

2Muitos lhe deram fé, como se ele fosse o único que conhece a verdade, e zombam de nós, apesar de não terem nenhuma prova do que dizem, mas, sem qualquer razão, são presa de doutrinas ímpias e dos demônios, como cordeiros arrebatados pelo lobo. 3De fato, os chamados demônios em nada despedem tanto empenho como em afastar os homens de Deus Criador e de Cristo, seu primogênito. Para isso, àqueles que são capazes de levantar da terra, eles os prenderam e continuam prendendo ao terreno e às obras de mãos dos homens, e aos que se lançam à contemplação do divino, se não possuem uma fala discreta e limpa e uma vida isenta de paixão, preparam-lhes a armadilha para lançá-los à impiedade.

Platão, discípulo de Moisés

59. 1De nossos mestres também, isto é, do Verbo que falou pelos profetas, Platão tomou o que disse sobre Deus ter criado o mundo, transformando uma matéria informe.Para convencer-nos disso, escutai o que disse literalmente Moisés, o primeiro dos profetas, anteriormente já citado, mais antigo do que os escritores gregos. Por meio dele, dando-nos a entender de que maneira e com quais elementos Deus fez o mundo no princípio, o Espírito profético assim disse: 2“No princípio, Deus fez o céu e a terra. 3A terra era invisível e informe, as trevas ficavam por cima do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 4E Deus disse: ?Faça-se a luz’. E a luz foi feita” . 5Conseqüentemente, todo o mundo foi feito pela palavra de Deus a partir de elemento preexistente, antes indicado por Moisés, coisa que tanto Platão como os que seguem as suas doutrinas aprenderam, e também nós a aprendemos, e vós podeis persuadir-vos disso. 6E mesmo aquilo que entre os poetas se chama “Érebo” ou abismo, sabemos que já fora dito antes por Moisés.

60. 1O que Platão, explicando a criação, diz no Timeu sobre o Filho de Deus: “Deu-lhe a forma de X no universo”, ele o tomou igualmente de Moisés. 2De fato, nos escritos de Moisés conta-se que, no tempo em que os israelitas tinham saído do Egito e se encontravam no deserto, foram atacados por feras venenosas, víboras, áspides e todo tipo de serpentes, que causavam a morte do povo. 3Então, por inspiração e impulso de Deus, Moisés pegou bronze, fez uma figura de cruz e a colocou sobre o tabernáculo santo, dizendo ao povo: “Se olhardes para esta figura e crerdes, sereis salvos por meio dela.” 4Feito isso, ele conta que as serpentes morreram e que o povo então escapou da morte. 5Platão deve ter lido isso e, não compreendendo exatamente, nem entendendo que se tratava da figura da cruz, tomou-a pela letra X grega, e disse que o poder que acompanha a Deus estava primeiro estendido pelo universo em forma de X. 6Ao falar de terceiro princípio, deve-se também ao fato de ter lido, como dissemos, em Moisés que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 7Com efeito, Platão dá o segundo lugar ao Verbo, que vem de Deus e que ele disse estar espalhado em forma de X no universo; e dá o terceiro lugar ao Espírito que se disse pairar sobre as águas, e assim fala: “E o terceiro sobre o terceiro”.

8Que haverá uma conflagração universal, escutai como o Espírito profético o anunciou de antemão. 9Ele diz o seguinte: “Descerá um fogo sempre vivo e devorará o abismo até embaixo” . 10Portanto, não somos nós que professamos opiniões iguais aos outros, e sim todos, por imitação, repetem as nossas doutrinas. 11Entre nós tudo isso pode-se ouvir e aprender até daqueles que ignoram as formas das letras, pessoas ignorantes e bárbaras de língua, mas sábias e fiéis de inteligência, e até pessoas mutiladas e privadas de visão. De onde se pode entender que isso não acontece pela sabedoria humana, mas se diz que é pela força de Deus.

(O batismo): iluminação e regeneração

61. 1Explicaremos agora de que modo, depois de renovados por Jesus Cristo, nos consagramos a Deus, para que não aconteça que, omitindo este ponto, demos a impressão de proceder um pouco maliciosamente em nossa exposição. 2Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos em primeiro lugar para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. 3Depois os conduzimos a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração com que também nós fomos regenerados eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. 4É assim que Cristo disse: “Se não nascerdes de novo, não entrareis no Reino dos Céus” . 5É evidente para todos que, uma vez nascidos, não é possível entrar de novo no seio de nossas mães. 6Também o profeta Isaías, como citamos anteriormente, disse como fugiriam dos pecados aqueles que antes pecaram e agora se arrependem. 7Eis o que ele disse: “Lavai-vos, purificai-vos, tirai as maldades de vossas almas e aprendei a fazer o bem, julgai o órfão e fazei justiça à viúva; então vinde e conversemos, diz o Senhor . Se vossos pecados forem como a púrpura, eu os tornarei brancos como a lã; se forem como o escarlate, eu os alvejarei como a neve. 8Se não me escutardes, a espada vos devorará, porque assim falou a boca do Senhor.” 9A explicação que aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: 10Uma vez que não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores, pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepende de seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo; e aquele que conduz ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. 11Com efeito, ninguém é capaz de dar um nome ao Deus inefável; se alguém se atrevesse a dizer que esse nome existe, sofreria a mais vergonhosa loucura. 12Esse banho chama-se iluminação, para dar a entender que são iluminados os que aprendem estas coisas. 13O iluminado se lava também em nome de Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, e no nome do Espírito Santo, que, por meio dos profetas, nos anunciou previamente tudo o que se refere a Jesus.

O arremedo diabólico do batismo

62. 1Os demônios também ouviram que esse banho tinha sido anunciado pelo profeta, e então também se fizeram aspergir aqueles que entram em seus templos e vão aproximar-se deles para lhes oferecer libações e gorduras, e chegam até a obrigar a um banho completo, antes de entrar nos templos, onde eles se assentam. 2Também o fato de que os sacerdotes mandem que se descalcem aqueles que entram nos templos e cultuam os demônios, estes conceberam e imitaram daquilo que aconteceu a Moisés, o profeta de que antes falamos. 3De fato, deve-se saber que, no tempo em que se mandou Moisés desceu ao Egito para daí tirar o povo de Israel, quando ele estava apascentando as ovelhas do seu tio materno na terra da Arábia, nosso Cristo falou com ele de dentro de uma sarça em forma de fogo, e lhe disse: “Desata as sandálias de teus pés, aproxima-te e ouve” . 4Ele, descalço, aproximou-se e ouviu que o mandavam descer ao Egito e daí tirar o povo de Israel. Foi aí que recebeu uma força tão grande do mesmo Cristo que lhe falara em forma de fogo. E, de fato, desceu ao Egito e tirou o povo, depois de realizar grandes prodígios que, se desejardes, podeis conhecer fielmente através dos livros do próprio Moisés.

O Verbo na sarça e Moisés

63. 1Todos os judeus, porém, ainda hoje, ensinam que foi o Deus inominado que falou a Moisés. 2Por isso, o já mencionado profeta Isaías, repreendendo-os no texto anteriormente citado, disse: “O boi conheceu o seu dono e o asno a manjedoura de seu senhor, mas Israel não me conheceu e meu povo não me compreendeu” . 3E o próprio Jesus Cristo, repreendendo os judeus por não saberem distinguir o que era o Pai e o que era o Filho, também disse: “Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho; ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai e aqueles aos quais o Filho o revelar” . 4O Verbo de Deus é seu Filho, como dissemos antes. 5E também se chama mensageiro e embaixador, porque ele anuncia o que se deve conhecer e é enviado para nos manifestar tudo o que o Pai nos comunica. O próprio nosso Senhor o deu a entender, quando disse: “aluem ouve a mim, ouve aquele que me enviou. ” 6O mesmo aparece claramente pelos escritos de Moisés. 7Com efeito, nestes se diz assim: “O anjo do Senhor falou com Moisés da chama de fogo na sarça e lhe disse: Eu sou Aquele que é, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus de teus pais. 8Desce ao Egito e tira dali o meu povo” . 9O que segue podereis, se quiserdes, sabê-lo através dos próprios escritos, pois não é possível transcrever tudo aqui. 10As palavras citadas são suficientes para demonstrar que Jesus Cristo é Filho e embaixador de Deus, e antes era Verbo, que apareceu algumas vezes em forma de fogo, outras em imagem incorpórea e agora, feito homem por vontade de Deus, por causa do gênero humano submeteu-se a sofrer tudo o que os demônios quiseram que os insensatos judeus fizessem com ele. 11Estes, tendo expressamente dito nos escritos de Moisés: ?E o anjo de Deus falou a Moisés em fogo de chama desde a sarça e lhe disse: Eu sou Aquele que sou; o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó”, insistem que foi o Pai e Artífice do universo quem disse essas palavras.

12Então, repreendendo-os, o Espírito profético disse: “Mas Israel não me conheceu, nem meu povo me compreendeu.” 13Por sua vez, Jesus, como já indicamos, estando entre eles, disse: “Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho; ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai e aqueles aos quais o Filho o revelar” . 14Portanto, os judeus que pensam ter sido sempre o Pai do universo quem falou a Moisés, quando na realidade falou-lhe o Filho de Deus, que se chama também mensageiro e embaixador dele, com razão são repreendidos pelo Espírito profético e pelo próprio Cristo, por não terem conhecido nem o Pai, nem o Filho. 15Porque os que dizem que o Filho é o Pai dão prova de que não sabem nem quem é o Pai, nem tomaram conhecimento de que o Pai do universo tenha um Filho que, sendo Verbo e primogênito de Deus, também é Deus. 16Foi este que primeiramente apareceu a Moisés e aos outros profetas em forma de fogo ou por imagem incorpórea e aquele que agora, nos tempos de vosso império, como já dissemos, nasceu homem de uma virgem, conforme o desígnio do Pai. E pela salvação dos que nele crêem, quis ser desprezado e sofrer para, com sua morte e ressurreição, vencer a própria morte. 17O que da sarça foi dito a Moisés: “Eu sou Aquele que é, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”, significa que, mesmo depois de mortos, aqueles homens continuavam sendo de Cristo, assim como foram os primeiros de todos os homens que se ocuparam na busca de Deus, pois Abraão foi pai de Isaac, e este pai de Jacó, como o próprio Moisés deixou escrito.

Outras lembranças pagãs

64. 1Do que foi dito até aqui, podeis entender que também foram os demônios que introduziram o uso de instalar a imagem da chamada Coré sobre as fontes das águas, dizendo que ela era filha de Zeus, querendo assim imitar o que disse Moisés. 2Este, com efeito, como citamos antes, disse: “No princípio Deus criou o céu e a terra. 3A terra era invisível e informe, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas” . 4À imitação desse Espírito de Deus que se dizia pairar sobre as águas, disseram eles que Coré era filha de Zeus. 5Com igual malícia, disseram também que Atena era filha de Zeus, mas não nascida de união carnal; de fato, ao tomarem conhecimento de que Deus, depois de pensar, criou o mundo por meio de seu Verbo, disseram que Atenas era como que o primeiro pensamento; coisa que consideramos absolutamente ridícula, apresentar uma mulher como imagem do pensamento. 6De modo semelhante, suas ações argüem os outros chamados filhos de Zeus.

Fraternidade e eucaristia

65. 1De nossa parte, depois que assim foi lavado aquele que creu e aderiu a nós, nós o levamos aos que se chamam irmãos, no lugar em que estão reunidos, a fim de elevar fervorosamente orações em comum por nós mesmos, por aquele que acaba de ser iluminado e por todos os outros espalhados pelo mundo inteiro, suplicando que se nos conceda, já que conhecemos a verdade, ser encontrados por nossas obras como homens de boa conduta e observantes do que nos mandaram, e assim consigamos a salvação eterna. 2Terminadas as orações, nos damos mutuamente o ósculo da paz. 3Depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome de seu Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças, por ter-nos concedido esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de graças, todo o povo presente aclama, dizendo: “Amém.” 4Amém, em hebraico, significa “assim seja”. 5Depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.

Teologia da eucaristia

66. 1Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou. 2De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos ensinou que, por virtude da oração ao Verbo que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças – alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne – é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado. 3Foi isso que os Apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: “Fazei isto em memória de mim, este é o meu corpo” . E igualmente, tomando o cálice e dando graças, disse: “Este é o meu sangue”, e só participou isso a eles. 4E certo que isso também, por arremedo, foi ensinado pelos demônios perversos para ser feito nos mistérios de Mitra ;com efeito, nos ritos de um novo iniciado, apresenta-se pão e uma vasilha de água com certas orações, como sabeis ou podeis informar-vos.

Liturgia dominical

67. 1Depois dessa primeira iniciação, recordamos constantemente entre nós essas coisas e aqueles de nós que possuem alguma coisa socorrem todos os necessitados e sempre nos ajudamos mutuamente. 2Por tudo o que comemos, bendizemos sempre ao Criador de todas as coisas, por meio de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. 3No dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas. 4Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. 5Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: “Amém”. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. 6Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provedor de todos os que se encontram em necessidade. 7Celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.

Petição final

68. 1Portanto, se vos parece que tais doutrinas provêm da razão e da verdade, respeitai-as; mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatães, desprezai-as. Não decreteis, porém, pena de morte, como contra inimigos, contra aqueles que nenhum crime cometem. 2De fato, vos avisamos de antemão, que, se vos obstinais em vossa iniqüidade, não escapareis do futuro julgamento de Deus. De nossa parte, exclamaremos: “Aconteça o que Deus quiser”.

3Poderíamos também exigir que mandeis celebrar os julgamentos dos cristãos conforme nossa petição, apoiando-nos na carta do máximo e gloriosíssimo César Adriano, vosso pai. Todavia, não vos fizemos nossa súplica, nem dirigimos nossa exposição, porque Adriano o julgasse assim, mas porque estamos persuadidos da justiça de nossas petições. 4Contudo, anexamos para vós uma cópia da carta de Adriano, para que vejais, segundo o seu teor, que dizemos a verdade. 5A cópia é a seguinte:

“A Mimício Fundano.

6Recebi uma carta que me foi escrita por Serênio Graniano, homem distinto, a quem sucedeste. 7Não me parece que o assunto deva ficar sem esclarecimento, a fim de que os homens não se perturbem, nem se facilitem as malfeitorias dos delatores. 8Dessa forma, se os provincianos são capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristãos, de modo que respondam a ela diante do tribunal, deverão ater-se a esse procedimento e não a meras petições e gritarias. 9Com efeito, é muito mais conveniente que, se alguém pretende fazer uma acusação, examines tu o assunto. 10Em conclusão, se alguém acusa os cristãos e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis, determina a pena, conforme a gravidade do delito. Mas, por Hércules, se a acusação é caluniosa, castiga-o com maior severidade e cuida para que não fique impune.”

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