PRIVILÉGIO PAULINO (Privilegium paulinum) – O privilégio paulino se chama assim por seu fundamento no texto paulino da Primeira Carta aos Coríntios (7,12-15). São Paulo fala como apóstolo e tenta decidir uma questão concreta não decidida antes de ele intervir. Ainda que não se trate de um privilégio em sentido jurídico estrito, contém uma exceção à lei geral da indissolubilidade. Tal exceção tem lugar quando a um matrimônio válido e legítimo, contraído originariamente na infidelidade, falta o pressuposto da estabilidade por culpa do cônjuge não-batizado que quer separar-se e não consente à parte convertida a prática pacífica da religião cristã. Em tal caso, o cônjuge cristão não fica ligado como escravo ao vínculo matrimonial, podendo separar-se e contrair novas núpcias. Os motivos que apóiam esta exceção são a paz religiosa e a liberdade de espírito que Deus quer para o cristão. Trata-se, em substância, de um matrimônio entre dois não-batizados, no qual um se converte, recebe o batismo e o outro rechaça a fé e a coabitação pacífica com o fiel; tal matrimônio, ainda que consumado, se dissolve “em favor da fé”. O “favor da fé” protege o valor supremo da salus animarum da qual diz o cân. 1752 “que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema” e a causa justa fundada em motivos e valores espirituais.
O matrimônio se dissolve sem necessidade de recorrer à Santa Sé, como ocorre em outros casos quando se verificam as condições previstas (cân. 1142).
O privilégio paulino não tem lugar no matrimônio entre uma parte batizada e outra infiel. É necessário que a parte infiel se separe física ou moralmente, rechaçando a conversão e a coabitação pacífica com a parte fiel sine contumelia creatoris. A parte fiel não deve ser causa responsável do abandono da parte infiel. Se esta consente na coabitação pacífica, o matrimônio não se dissolve, e a parte fiel pode manter a esperança fundada da conversão da infiel ou poderia acudir à simples separação manente vinculo.
No caso previsto no PP,o vínculo matrimonial contraído na infidelidade se dissolve quando a parte fiel contrai novamente matrimônio, ficando a parte infiel livre para também contrair outro.
As interpelações que deve fazer a parte convertida à infiel constituem um ato legítimo e são necessárias para a validade (cân. 1144 § 1) e devem ser feitas depois do batismo da parte convertida e antes da conversão da outra parte, dentro, portanto, do tempo no qual o uso do PP é válido e lícito (cân. 1144 § 2). O cânon permite que por causa grave possam fazer-se as interpelações antes do batismo da parte que se converte e que, tanto antes como depois do batismo, possa dispensar-se das interpelações, quando não se possam fazer ou se prevê com certeza moral que serão inúteis.
A forma de fazer as interpelações pode ser solene ou jurídica e privada. A primeira a faz o Ordinário local em forma sumária e extraconjugal, concedendo, se é solicitado, à parte infiel um prudente espaço de tempo para refletir antes dc tomar sua decisão; com a advertência de que se nesse tempo não se obtém resposta, presume-se que é negativa, que se nega a coabitar pacificamente. A segunda, privada, tem lugar quando, não podendo fazê-la o ordinário, a faz a parte convertida e é válida e lícita contanto que conste no foro externo. Há casos em que pode ser suficiente o interrogatório feito por um missionário, a declaração de duas testemunhas ou de um só católico digno de fé e posto em forma juramentada ou, finalmente, também um escrito autêntico da parte infiel em que declare que não quer converter-se nem habitar pacificamente (cân. 1145).
O vínculo do matrimônio legítimo não se dissolve com o batismo de uma das partes de tal modo que se esta prefere não contrair novas núpcias com uma parte católica, a parte infiel permanece ligada ao matrimônio anterior. O vínculo se dissolve indiretamente, pois fica também livre a parte infiel, com o batismo da parte conversa. Esta pode usar de seu direito de contrair matrimônio sacramental, enquanto durem as condições que exige o cânon, ainda que, sendo cristã, tenha vivido dentro do matrimônio com seu consorte infiel. Se durante este tempo mudam as circunstâncias e a parte infiel se converte e batiza, já não cabe novo matrimônio e, se ambos estavam separados, estão obrigados a restabelecer sua vida conjugal, a não ser que, existindo causa grave ejusta e sendo seu matrimônio simplesmente ratificado, obtenha a dispensa super rato (cân. 1146).
Pode suceder que a parte conversa, afastada do cônjuge infiel em virtude do PP, queira contrair novo matrimônio com outra parte não-católica, batizada ou não. Neste caso, a parte católica necessita de uma concessão especial do Ordinário local. Para esta concessão, deve existir causa grave, posto que existe o perigo de perversão do neoconvertido. Se ajuizo do Ordinário não existe causa grave, é necessário acudir à Santa Sé sob pena de nulidade. Estamos então nos matrimônios mistos, nos quais se deve aplicar os câns. 1124-1128 (e. 1147).
PRIVILÉGIO PETRINO (Privilegium petrinum) – A expressão Privilégio Petrino surge por analogia com a de “Privilégio Paulino” (v. Privilégio Paulino). Se queremos conservar um certo sentido preciso autônomo da expressão, devemos afirmar que se refere ao supremo poder vicário de Pedro e seus sucessores para dissolver toda classe de matrimônios, exceto os compreendidos sob o Privilégio Paulino e desde já o matrimônio, enquanto ratificado e consumado (cân. 1141). Surge então a dificuldade de considerar ambos os Privilégios como dois modos distintos e duas possibilidades jurídicas concretas de dissolução matrimonial, esquecendo que o Privilégio Paulino não pode não estar compreendido no Petrino e que, portanto, se introduz uma distinção puramente artificial e exposta a confusóes. Acrescente-se a dificuldade que gera o termo “Privilégio” que, não sendo mais que o supremo poder vicário, não é, de modo algum, “privilégio”. No máximo, para manter a analogia de termos, poderia falar-se de “Privilégio Piano” (S. Pio V), “Privilégio Gregoriano” (Gregório XIII) e, para evitar confusões, “Privilégio de Paulo III”, aludindo às suas célebres Constituições, recolhidas no cân. 1125 do Código de 1917.
Uma dificuldade prática, digna de se ter em conta é que, referindo-se e configurando o privilégio petrino, existem tantas sentenças quanto autores e que, silenciadas todas (são, pelo menos, dez distintas), parece o mais conveniente prescindir desta pouco afortunada expressão e referir-se simplesmente ao sumo poder vicário da Igreja para dissolver o matrimônio, mantendo-se o sentido estrito do “Privilégio Paulino” como um dos modos típicos desse poder e excluindo sempre o único matrimônio que na prática é absolutamente indissolúvel: o ratificado e, enquanto tal, consumado.
Não parece conveniente identificar, nem tampouco incluir, o Privilégio Petrino no Privilegium fidei, nem sequer entendido num sentido muito amplo que o identifique com a dissolução in favorem fidei, porque, à parte ficar incluído o “Privilégio Paulino” sob esta epígrafe, não é sempre a fé em sentido estrito a protegida, senão que entra também a salus animarum como fim mesmo da Igreja e como suprema lei jurídica da mesma (cân. 1752).
Por esta justa causa da salus animarum, a Igreja, em virtude de seu supremo poder vicário, pode dissolver inclusive o vínculo de um matrimônio legítimo (entre dois infiéis), mesmo se este matrimônio foi consumado. Este poder pode ver-se compreendido dentro do Privilégio Petrino, porém como parte, entendendo portanto, estas como todo e só o poder do Vigário de Cristo para dissolver pelo bem das almas qualquer vínculo natural, ainda que consumado, não sacramental.
No Código não figura, com bom critério, o nome Privilégio Petrino, que tampouco é empregado nos documentos da Santa Sé. A partir de Pio XII são vários os matrimônios puramente legítimos dissolvidos.
Fonte: Livro “DICIONÁRIO DE DIREITO CANÔNICO”, pp. 605-607.