Qual o sentido da expressão “ofensa a Deus”?

– “Dada a transcendência de Deus, qual o sentido da expressão ‘ofensa a Deus’?” (Nelândia – Belo Horizonte-MG).

A resposta cristã a esta questão aparecerá com toda a clareza se se focalizar primeiramente o que o homem anterior a Cristo entendia por “pecado”.

Os povos primitivos manifestam a “consciência de culpa” ou “desobediência a Deus”; exprimem-na, porém, acompanhada de erros e deformações evidentes. Os índios da América, por exemplo, identificam não raro impureza fisiológica ou ritual com pecado; a violação das tradições convencionais do clã é considerada ofensa à Divindade, porque os aborígenes têm essas tradições na conta de instituídas e tuteladas pelos deuses (os ancestrais e os heróis do clã são frequentemente endeusados após a sua morte); por conseguinte, julgam que derrogação aos costumes da tribo acarreta a vingança dos deuses; o suicídio pode assim tornar-se ato de expiação espontânea, agradável à Divindade.

As concepções dos antigos gregos exigem mais atenção da nossa parte, dadas as suas relações com o Cristianismo.

A raiz grega “hamart”, correspondente à noção de “pecado”, significa originariamente “falhar o objetivo, errar o alvo, aberrar”. For conseguinte, a acepção primária de pecado (“hamártema”) para o grego é a de uma falha contra a técnica, contra a estética, a linguística, a política, a higiene; falha que provém de imperícia ou inabilidade, mas em si mesma não envolve culpa moral.

No séc. V a.C., Sócrates (+399 a.C.) voltou toda a sua atenção para o problema da virtude e as falhas cometidas contra esta. Afirmava que a derrogação à virtude ou o pecado tem sua raiz na ignorância; é, portanto, isento de culpa moral, pois ninguém peca voluntariamente(!); o homem que saiba em que consiste a virtude, pratica-a; a virtude vem a ser uma ciência, que acarreta necessariamente um ato bom. Assim, o pecado toma índole estritamente intelectual; muito tênue, quase nulo se terna o senso de responsabilidade moral.

Platão (+347 a.C.) mitigou um tanto o intelectualismo ético de seu mestre.

Apesar disto, Aristóteles (+322 a.C.), que se assentou na escola de Platão, não possuía a consciência de “pecado — culpa moral”. No setor da Ética, julgava que o pecado não é injustiça, mas um ato pouco hábil, golpe de vista infeliz, que alguém executa de boa fé; reduz-se a ignorância inculpada. (cf Et.Nic. 2, p.1106b,28ss; Et.Eud. 8,1, p.1246a,32ss; Polit. 3,11, p.1231b,28).

Qual a razão de ser de tão manca noção de pecado em um filósofo que tanto se elevou na Metafísica?

A raiz da deficiência é o conceito que de Deus tinha Aristóteles. Embora haja reconhecido a existência de um Primeiro Motor Imóvel, o filósofo grego julgava que este move os demais seres de maneira inconsciente ou apenas como causa final, como objeto que, contemplado pelos entes inferiores, os atrai pelo simples fato de existir, e existir como tipo do ser perfeito. A Divindade, portanto, não tem conhecimento dos homens nem lhes impõe as leis da Ética, que os encaminham, para o seu Ideal Supremo; é sim, o próprio homem que, na base de seu raciocínio e experiência, tem de formular as normas da sua conduta neste mundo. Estes princípios tiram à Moral o seu caráter transcendente, tornando-a muito dependente da habilidade do homem, que só aos poucos (sem poder evitar tropeços), vai aprendendo a arte de caminhar na vida. Em uma tal filosofia entende-se que o pecado se reduza a imperícia, longe de ser violação de uma ordem divina ou de ser uma ofensa a Deus. Toda a Ética de Aristóteles tem que ser antropocêntrica, pois visa apenas tornar o homem perfeito (sem levar em conta a glória de Deus); se, pois, tal ou tal indivíduo humano não se quer elevar na prática da virtude, é ele só quem sofre as consequências da sua recusa.

Posteriormente a Aristóteles, os estóicos envolveram no conceito de pecado a noção de Deus. Faziam-no, porém, na base do seu panteísmo; identificando o logos ou a razão humana com a Divindade, concluíam naturalmente que desprezar as normas da razão era desprezar a Divindade. É de notar que, para afirmar isto, o estóico tinha que deprimir ou desvirtuar espantosamente a ideia de Deus apregoando o panteísmo.

Por fim, no limiar da Era Cristã, uma religiosidade nova, a dos “cultos de mistérios (de Cibele, Isis, Mitra…)”, vinda do Oriente, avivou nos pagãos a consciência de que o pecado é nódoa hedionda e obstáculo à salvação. Tendiam, porém, a identificá-lo com impureza ritual, cúltica, não dando suficiente atenção ao aspecto moral do ato, à responsabilidade da consciência.

Foi sobre este fundo de ideias que surgiu o Cristianismo, acarretando profunda mudança nas concepções religiosas do gênero humano.

Para o cristão, uma verdade básica é que Deus se identifica com o Amor, e o Amor que primeiro amou os homens; fê-los imagem e semelhança sua e imprimiu-lhes na consciência as normas universais para conseguirem o seu Fim Último; pela consciência o único Deus fala a todo homem, de qualquer época ou nação que seja, chamando-o, atraindo-o a Si. Disto se segue que burlar a voz da consciência não equivale simplesmente a transgredir uma lei da sabedoria humana, mas é repulsa de um chamado do Amor, e do Amor que tem absoluto direito a ser o primeiro amado. O pecado é um ato que atinge a natureza humana (como de certo modo já o percebia o pagão) e, além disto, atinge também a Deus, com a diferença, porém, de que a natureza humana é maltratada, punida pelo seu próprio pecado, ao passo que Deus não sofre detrimento em consequência da revolta do homem (Deus nada perde nem ganha, nem tem sentimentos ou paixões); mas, na medida mesma (medida plena) em que Deus é Valor (o Primeiro Valor), pode-se dizer que Deus é o primeiro injuriado e ofendido pelo pecado; este equivale a um atentado contra os direitos do Sumo Bem, visando rebaixá-lo e colocar um ser inferior no lugar do Supremo.

É dentro desta perspectiva que a Sagrada Escritura, desde os seus livros mais antigos, inculca insistentemente que Deus tem horror ao pecado (cf. Deuteronômio 12,31; 17,1; 18,12; Provérbios 3,32; 11,12; 12,22; 15,8-9.26). Não se trata, porém, de um horror que leve simplesmente a condenar e criar distância entre o Santo e o réu. Ao contrário, o Deus que repudia o pecado, não repudia o pecador; por isto, o Criador se quis fazer também o Redentor do homem culpado, numa efusão de amor ainda mais estupenda do que a que deu origem ao mundo. É ao contemplar Cristo sofrendo os horrores da agonia no horto das Oliveiras que se compreende quanto e como Deus horroriza a culpa: o pecado vem a ser morte, e Deus é a Vida mesma; mas nem por isto Deus feito homem se recusou a experimentar a morte a fim de libertar os que esta detinha cativos sob o seu império.

Destas verdades se depreende que o conceito cristão de pecado envolve estritamente a ideia de Deus, e Deus que é surpreendentemente bom. Por causa de tal pressuposto é que por vezes custa ao homem crer no pecado e conceber a autêntica noção do mesmo. Se Deus fosse apenas o Primeiro Motor Imóvel, frio e fechado em sua majestade, seria lícito acreditar que o pecado não O ofende; mas Deus, além de ser o Movente Absoluto dos filósofos, é também o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos irmãos adotivos do Salvador. Ninguém negará seja mistério (o mistério da iniquidade; cf. 2Tessalonicenses 2,7) o fato de que o homem possa dizer “Não” ao seu Deus, pois até a última fibra de seu ser e agir a criatura é dependente do Todo-Poderoso; o seu “Não”, ele só o profere prevalecendo-se do Amor que o sustenta; o pecado é, pois, a revolta da criatura contra o Amor sem o qual ela não existiria, é contradição flagrante localizada no mais íntimo do homem. Eis o que dá ao pecado o seu caráter tão trágico e terrível.

No séc. XVII houve doutores cristãos que quiseram, por assim dizer, mitigar a noção cristã, distinguindo entre “pecado filosófico” e “pecado teológico”. Aquele seria um ato contrário à natureza humana e à reta razão; por muito vultuoso que fosse, não seria ofensa a Deus, desde que o pecador, ao cometê-lo, não pensasse no Senhor; tal culpa não romperia a amizade com Deus nem seria merecedora do inferno. Somente o “pecado teológico” ou uma transgressão livre da lei divina reconhecida como tal separaria do Pai celeste e acarretaria a ruína da alma. Essa distinção foi condenada pelo Papa Alexandre VIII em 1690 (cf. DZ 1290) como contrária à doutrina do Evangelho. Não se pode, pois, ofender a natureza humana ou a lei natural sem ofender também a Deus. Disto ainda se segue uma verdade muito bela: a sanção infligida ao pecador não decorre de uma sentença arbitrária e reformável de Deus, mas é, antes, a reação, o protesto existencial da natureza humana e das demais criaturas violentadas pelo livre arbítrio do pecador.

A fim de ainda melhor evidenciar a significação do pecado na teologia católica, seja permitido referir como o Islamismo (única religião que professa um Deus único e pessoal, fora do Cristianismo) concebe o mesmo ponto de doutrina. O Islã considera o homem lamentável muito mais por causa de sua insignificância física ou metafísica do que por motivo de sua miséria moral; inculca que “Deus é grande” e “o homem pequeno” mais do que o fato de que Deus é “o Santo” e o homem “o não-santo”. Em consequência, não tem cabimento, para o muçulmano, a ideia de um Deus que procure a ovelha desgarrada. Diz-se, aliás, que nisto está a diferença psicológica essencial entre o maometano e o cristão. O Islamismo não dá grande atenção ao pecado; considera só haver uma falta importante: a de não crer na unidade de Deus e na divina missão dos profetas. É este o “kofr” ou o “chirk”, o pecado característico dos infiéis. Qualquer outra falta é tida como infração de um interdito (“haram”), remissível com facilidade; somente os infiéis serão entregues ao fogo do inferno.

Como se vê, o Cristianismo tem do pecado uma concepção muito mais pungente, dilaceradora. É que nela entra o grande paradoxo: a noção de um Deus que é Amor… e naturalmente “Amor Perfeito, forte como a morte” (cf. Cântico 8,6), ou melhor, “mais forte do que a morte”!

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 6:1957 – out/1957
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