Queima de Bíblias e outras acusações

“Há algumas coisas nelas (=Epístolas de São Paulo) difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam para a sua própria destruição, como fazem com as demais Escrituras” (2Pedro 3,16).

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Desde a revolta protestante do século XVI, a Igreja Católica é acusada de ignorar, opor-se, ocultar e até mesmo destruir a Bíblia, a fim de mantê-la afastada das pessoas. Além disso, cópias da Bíblia teriam sido acorrentadas às paredes das igrejas durante a Idade Média, para que as pessoas não as pudessem levar para casa, para lê-las. Mais: a Igreja, durante a Idade Média, também teria se recusado a traduzir a Bíblia nas diversas línguas do povo (as línguas vernáculas), a fim de impedir ainda mais a leitura pessoal da Bíblia. E mais: alega-se que a Igreja chegou ao ponto de queimar Bíblias nas línguas vernáculas.

Ao examinar essas acusações contra a Igreja, devemos considerar vários pontos:

Primeiro, se a Igreja realmente quisesse destruir a Bíblia, por que os seus monges trabalharam cuidadosamente ao longo dos séculos, fazendo cópias dela? Antes da imprensa (isto é, antes do ano 1450), cópias da Bíblia eram feitas à mão, com beleza e meticulosa precisão. Uma razão para as Bíblias serem acorrentadas às paredes das igrejas é porque cada cópia era preciosa tanto espiritual quanto materialmente. Um monge levava cerca de um ano para copiar a Bíblia inteira à mão; portanto, as Bíblias eram raras. As correntes evitavam perdas e roubos, para que todas as pessoas da comunidade da igreja (paróquia) pudessem se beneficiar melhor delas.

Quanto ao vernáculo, devemos lembrar que no século V, quando São Jerônimo traduziu a Bíblia das línguas originais para o latim, o latim era a língua do povo. Esta [tradução da] Bíblia é comumente chamada de “Vulgata”, a “versão comum”. Mesmo depois de passados mil anos, o latim ainda continuava sendo a língua universal da Europa.

Traduzir a Bíblia para as línguas vernáculas durante a Idade Média era simplesmente impraticável. Boa parte das línguas vernáculas da época não possuía um alfabeto e, portanto, não podiam ser escritas. Além disso, poucas pessoas sabiam ler. E as poucas pessoas instruídas, que sabiam ler, também conheciam o latim. Com efeito, essa situação não criava grande demanda por uma Bíblia vernacular, nem promovia uma devoção popular à leitura pessoal da Bíblia.

Mas embora impraticável, há exemplos da Igreja promovendo o vernáculo. Um exemplo é a missão dos Santos Cirilo e Metódio ao povo eslavo da Morávia, durante o século IX: ambos ficaram famosos por introduzirem a liturgia eslava. Em seu trabalho, São Cirilo teve que desenvolver um alfabeto para a língua eslava antiga (que tornou-se o precursor do alfabeto “cirílico” russo). Em 885, São Metódio traduziu a Bíblia inteira para esse idioma. Apesar da forte oposição política dos germânicos, o Papa Adriano II, após cuidadosa investigação, confirmou São Metódio como arcebispo da Morávia e endossou sua liturgia eslava (São Cirilo já havia falecido). Vários Papas posteriores continuaram a defender seu trabalho contra ataques; e o Papa Estevão VI restabeleceu a liturgia depois de ter sido enganado pela oposição germânica[1].

No século VII, na Grã-Bretanha, ainda antes do inglês ser um idioma, Caedmon, monge de Whitby, parafraseou a maior parte da Bíblia para a língua comum. Durante o início do século VIII, São Beda, o Venerável, também traduziu partes da Bíblia para o idioma comum do povo britânico. Em seu leito de morte, em 735, ele traduziu o Evangelho de São João. Também neste período, os bispos Eadhelm, Guthlac e Egbert trabalharam nas Bíblias Saxônicas. Durante os séculos IX e X, o rei Alfred, o Grande, e o arcebispo Aelfric trabalharam nas traduções anglo-saxônicas (inglês antigo). Após a conquista normanda de 1066, surgiu a necessidade de uma Bíblia anglo-normanda, de modo que a Igreja produziu várias traduções, como por exemplo a “Salus Animae”(1250). Em 1408, o Concílio Provincial de Oxford deixou claro que as traduções vernaculares podiam receber a aprovação da Igreja. Em 1582, a famosa tradução [em inglês] do Novo Testamento de Douay-Rheims foi concluída, enquanto o Antigo Testamento foi concluído em 1609. Ironicamente, o Novo Testamento de Douay-Rheims influenciou a Bíblia [protestante] do Rei Tiago [King James Version-KJV].[2][3]

Depois do século XIV, quando finalmente o inglês tornou-se a língua popular da Inglaterra, Bíblias em vernáculo foram empregadas como veículos de propaganda herética: John Wycliffe, um padre dissidente, traduziu a Bíblia para o inglês. Infelizmente, seu secretário, John Purvey, incluiu um prólogo herético, como observado por São Tomás Moro. Mais tarde, William Tyndale traduziu a Bíblia para o inglês com um prólogo e notas de rodapé condenando as doutrinas e os ensinamentos da Igreja.[2] São Tomás Moro chegou a comentar que a busca por erros na Bíblia de Tyndale era semelhante à busca de água no mar. Até o rei Henrique VIII, em 1531, condenou a Bíblia de Tyndale como uma corrupção das Escrituras. Nas palavras dos conselheiros do rei Henrique: “A tradução das Escrituras corrompida por William Tyndale deve ser totalmente expulsa, rejeitada e afastada das mãos do povo, e não deve se propagar aos seus súditos”.[4] Para pensar: se as Bíblias de Wycliffe e de Tyndale eram assim tão boas, por que os protestantes [de língua inglesa] hoje não as empregam, como o fazem com a Bíblia do Rei Tiago [KJV]?

Uma ação que os cristãos católicos tomaram, buscando interromper a propagação [dessas Bíblias heréticas] foi queimá-las. Essa ação, porém, torna a Igreja contrária à Bíblia? Não! Caso contrário, os protestantes desse período também seriam antibíblicos: João Calvino, o principal reformador protestante, em 1522, adquiriu o máximo possível de cópias da Bíblia [de Miguel] Servet e as queimou, uma vez que não a aprovava. Mais tarde, Calvino mandou queimar o próprio Miguel Servet na fogueira, por ser um “unitário”.[5] Naqueles dias, era prática comum de ambos os lados [católico e protestante] queimar os livros não-aprovados. No entanto, uma coisa é destruir um objeto verdadeiro, outra coisa é destruir uma falsificação.

A Igreja não se opôs às traduções vernaculares fiéis, mas às distorções e acréscimos heréticos da Bíblia. A Igreja proibiu essas Bíblias corrompidas a fim de preservar a integridade das Sagradas Escrituras. Essa ação foi necessária para que a Igreja preservasse a verdade do Evangelho de Cristo. Como São Pedro nos adverte em sua Epístola (na Bíblia), os ignorantes e instáveis deturpam as Escrituras para a sua própria destruição [2Pedro 3,16; veja citação inicial].

Os bons pais cristãos permitiriam que seus filhos lessem uma Bíblia com propaganda ou palavrões anticristãos nas notas de rodapé? Eu certamente não permitiria!

Para encerrar: se a Igreja Católica realmente quisesse destruir a Bíblia, ela teve muitas oportunidades para fazer isso, durante 1500 anos.

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Notas:
[1] Warren H. Carroll. “The Building of Christendom”. Christendom College Press, 1987, pp.359.371.385.
[2] Autores Vários. “The Jerome Biblical Commentary”, vol.2. Prentice-Hall, 1968, pp.586-588.
[3] Henry G. Graham. “Where We Got The Bible”. TAN Books, 1977, p.99.
[4] Ibid., pp.128.130.
[5] Ibid., p.129.

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