Razões da pretensão cristã

Trechos da palestra do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
na apresentação do documento vaticano Dominus Iesus. 

Sala de Imprensa da Santa Sé, 5 de setembro de 2000

No intenso debate contemporâneo sobre a relação entre o cristianismo e as outras religiões, toma sempre mais terreno a idéia de que todas as religiões sejam para os seus seguidores caminhos igualmente válidos de salvação.

Trata-se de uma convicção já difundida não apenas em ambiente teológico, mas também em setores cada vez mais vastos da opinião pública católica ou não, especialmente a mais influenciada pela orientação cultural que hoje prevalece no Ocidente, que pode ser definida, sem medo de sermos desmentidos, com a palavra relativismo. (…) O nosso Documento assinala alguns pressupostos de natureza tanto filosófica quanto teológica que estão na base das mais diversas teologias do pluralismo religioso atualmente difundido: a convicção de não se poder alcançar e nem expressar a verdade divina; a postura relativista no que diz respeito à verdade, segundo a qual o que é verdade para alguns não o é para outros; a contraposição entre mentalidade lógica ocidental e mentalidade simbólica oriental; o subjetivismo exasperado de quem considera a razão como única fonte de conhecimento; o esvaziamento metafísico do mistério da encarnação; o ecletismo de quem, na investigação teológica, toma idéias provenientes de diferentes contextos filosóficos e religiosos, sem se importar com a sua coerência, nem com a sua compatibilidade com a fé cristã; a tendência, enfim, de ler e interpretar a Sagrada Escritura à margem da Tradição e do Magistério da Igreja (cf. Declaração Dominus Iesus, nº 4).

Verdadeiro homem, verdadeiro Deus

Qual é a conseqüência fundamental desse modo de pensar e sentir em relação ao centro e ao núcleo da fé cristã? É a substancial negação da identificação da figura histórica singular de Jesus de Nazaré com a própria realidade de Deus, do Deus vivo. Aquilo que é Absoluto, ou Aquele que é Absoluto, nunca poderia doar-se na história em uma revelação plena e definitiva. Na história existiriam somente modelos, imagens ideais que nos remetem ao Totalmente Outro, o qual, porém, não pode ser alcançado como tal na história. Alguns teólogos mais moderados confessam que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mas acreditam que por causa da limitação da natureza humana de Jesus, a revelação de Deus nele não pode ser considerada completa e definitiva, mas deve ser sempre considerada em relação a outras possíveis revelações de Deus expressas nos gênios religiosos da humanidade e nos fundadores das religiões no mundo. Desse modo, objetivamente falando, introduz-se a idéia errada de que as religiões do mundo sejam complementares à revelação cristã. É claro que, nesse sentido, também a Igreja, o dogma, os sacramentos não podem ter valor de necessidade absoluta. Atribuir a esses meios finitos um caráter absoluto e considerá-los como um instrumento para um encontro real com a verdade de Deus, válida universalmente, significaria colocar em um plano absoluto aquilo que é particular e transfigurar a realidade infinita do Deus Totalmente Outro.

Ideologia do diálogo

Com base em tais concepções, acreditar que exista uma verdade universal, obrigatória e válida na própria história, que se realiza na figura de Jesus Cristo e é transmitida pela fé da Igreja, é considerado uma espécie de fundamentalismo que constituiria um atentado contra o espírito moderno e representaria uma ameaça contra a tolerância e a liberdade. O próprio conceito de diálogo assume um significado radicalmente diferente do que entende o Concílio Vaticano II. O diálogo, ou melhor, a ideologia do diálogo, substitui a missão e a urgência do apelo à conversão: o diálogo não é mais o caminho para descobrir a verdade, o processo através do qual se abre ao outro a profundidade escondida daquilo que ele experimentou na sua experiência religiosa, e que espera que se cumpra e se purifique no encontro com a revelação definitiva e completa de Deus em Jesus Cristo; o diálogo, nas novas concepções ideológicas, que infelizmente penetraram também no mundo católico e em certos ambientes teológicos e culturais, é a essência do “dogma” relativista e o contrário da “conversão” e da “missão”. Em um pensamento relativista, diálogo significa colocar no mesmo plano a própria posição ou a própria fé e as convicções dos outros, de tal modo que tudo se reduza a uma troca de posturas fundamentalmente paritárias e por isso relativas entre elas, com o objetivo superior de alcançar o máximo de colaboração e de integração entre as diversas concepções religiosas.

Falsa tolerância

A dissolução da cristologia, e portanto da eclesiologia, àquela subordinada mas inseparavelmente vinculada, torna-se então conclusão lógica de tal filosofia relativista, que paradoxalmente encontra-se tanto na base do pensamento pós-metafísico do Ocidente, quanto na teologia negativista da Ásia. O resultado é que a figura de Jesus Cristo perde o seu caráter de unicidade e de universalidade salvífica. Além disso, o fato de que o relativismo se apresente como símbolo do encontro com as culturas, como a verdadeira filosofia da humanidade, capaz de garantir a tolerância e a democracia, leva também a marginalizar quem insiste na defesa da identidade cristã e na sua pretensão de difundir a verdade universal e salvífica de Jesus Cristo. Na verdade, a crítica à pretensão de absolutismo e de definição da revelação de Jesus Cristo, reivindicada pela fé cristã, é acompanhada por um falso conceito de tolerância. O princípio de tolerância como expressão de respeito pela liberdade de consciência, de pensamento e de religião, defendido e estimulado pelo Concílio Vaticano II, e novamente reproposto pela própria Declaração, é uma posição ética fundamental, presente na essência do credo cristão, porque leva a sério a liberdade de adesão de fé. Mas esse princípio de tolerância e respeito pela liberdade é atualmente manipulado e indevidamente ultrapassado, quando se estende à apreciação dos conteúdos, como se todos os conteúdos das diversas religiões e também o conteúdo das concepções a-religiosas da vida devessem ser postos no mesmo plano, e não existisse mais uma verdade objetiva e universal, porque Deus ou o Absoluto se revelaria sob inúmeros nomes, mas todos os nomes seriam verdadeiros. Essa falsa idéia de tolerância está ligada com a perda e com a renúncia à questão da verdade, que hoje de fato é sentida por muitos como uma questão irrelevante ou de segunda ordem. Assim, vem à luz a fraqueza intelectual da cultura atual: vindo a faltar a questão da verdade, a essência da religião não se diferencia mais da sua “não essência”, a fé não se distingue da superstição, da experiência da ilusão. Enfim, sem uma séria pretensão de verdade, também a apreciação das outras religiões se torna absurdo e contraditório, porque não se possui o critério para constatar o que há de positivo em uma religião, distinguindo daquilo que há de negativo ou fruto de superstição e engano. (…) O caminho à salvação é o bem presente nas religiões, como obra do Espírito de Cristo, mas não as religiões enquanto tal. De resto, isso é confirmado pela própria doutrina do Concílio Vaticano II a propósito das sementes de verdade e de bondade presentes nas outras religiões e culturas, exposta na Declaração Conciliar Nostra Aetate: “A Igreja Católica nada rejeita daquilo que há de verdadeiro e santo nessas religiões. Considera ela com sincera atenção aqueles modos de agir e viver, aqueles preceitos e doutrinas. Se bem que em muitos pontos estejam em desacordo com os que ela mesma tem e anuncia, não raro, contudo, refletem lampejos daquela Verdade que ilumina a todos os homens” (NA, 2). Tudo aquilo que de verdadeiro e de bom existe nas religiões não deve ser perdido, aliás, é reconhecido e valorizado. O bem e a verdade, onde quer que se encontre, procede do Pai e é obra do Espírito Santo; as sementes do Logos estão espalhadas em todo lugar. Mas não se pode fechar os olhos para os erros e enganos que estão presentes nas religiões. A própria Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II Lumen Gentium afirma: “Por outro lado, muitas vezes os homens, enganados pelo Maligno, se desvaneceram em seus pensamentos e mudaram a verdade de Deus em mentira, servindo à criatura mais que ao Criador” (LG, 16).

Revelação definitiva e completa

É compreensível que do modo como crescem sempre mais juntas, também as religiões e as culturas se encontrem. Isso não leva somente a uma aproximação exterior dos homens de religiões diferentes, mas também a um crescimento de interesses dirigidos a mundos religiosos diferentes. Nesse sentido, ou seja, no rumo desse conhecimento recíproco, é legítimo falar de enriquecimento mútuo. Isso porém não tem nada a ver com o abandono da pretensão por parte da fé cristã de ter recebido como dom por Deus em Cristo a revelação definitiva e completa do mistério da salvação; aliás, deve-se excluir aquela mentalidade indiferentista, marca de um relativismo religioso, que leva a crer que “tanto vale uma religião como outra” (Carta Encíclica Redemptoris Missio, 36).

A estima e o respeito para com as religiões do mundo, assim como para com as culturas que trouxeram um objetivo enriquecimento à promoção da dignidade do homem e ao desenvolvimento da civilização, não diminui a originalidade e a unicidade da revelação de Jesus Cristo e não limita de modo algum a tarefa missionária da Igreja: “A Igreja anuncia e vê-se ela de fato obrigada a anunciar incessantemente o Cristo, que é ‘caminho, verdade e vida’ (Jo 14, 16), no qual todos os homens possam encontrar a plenitude de vida religiosa e no qual Deus tudo reconciliou a Si” (Nosta Aetate, 2). Ao mesmo tempo, essas simples palavras indicam o motivo da convicção que considera que a plenitude, universalidade e o cumprimento da revelação de Deus estão presentes somente na fé cristã. Esse motivo não reside em uma presunçosa preferência concedida aos membros da Igreja, nem muito menos nos resultados que a Igreja alcançou na sua peregrinação terrena, mas no mistério de Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem presente na Igreja. A pretensão de uma unicidade e uma universalidade salvífica do cristianismo procede essencialmente do mistério de Jesus Cristo que continua a sua presença na Igreja, seu Corpo e sua Esposa.

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