Reflexão Patrística – “O duplo preceito da caridade” (Santo Agostinho de Hipona, +430)

“Veio o Senhor, Mestre da caridade, cheio de caridade, cumprir prontamente a palavra sobre a terra [cf. Romanos 9,28], como Dele foi anunciado, e sintetizou a Lei e os Profetas nos dois preceitos da caridade.

Recordai comigo, irmãos, quais são esses dois preceitos. É preciso que os conheçais profundamente, de tal modo que não vos venham à mente só quando vo-los lembramos, mas os conserveis sempre bem gravados em vossos corações: recordai-vos em todo momento de que devemos amar a Deus e ao próximo – a Deus de todo o nosso coração, de toda a nossa alma e de todo o nosso entendimento; e ao próximo como a nós mesmos [cf. Mateus 22,37-39].

Esses dois preceitos devem ser sempre lembrados, meditados, conservados na memória, praticados, cumpridos. O amor de Deus ocupa o primeiro lugar na ordem dos preceitos, mas o amor do próximo ocupa o primeiro lugar na ordem da execução. Pois, Quem te deu esse duplo preceito do amor não podia ordenar-te amar primeiro ao próximo e depois a Deus, mas primeiramente a Deus e depois ao próximo.

Entretanto, tu que ainda não vês a Deus, merecerás vê-Lo se amas o próximo; amando-o purificas teu olhar para veres a Deus, como afirma expressamente São João: ‘Quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê’ [1João 4,20].

Ouviste o mandamento: ‘Ama a Deus’. Se me disseres: ‘Mostra-me a quem devo amar’, o que responderei senão o que disse o mesmo São João: ‘A Deus, ninguém jamais viu’ [João 1,18]? E para pensares que está absolutamente fora do teu alcance ver a Deus, o mencionado Apóstolo afirma: ‘Deus é amor. Quem permanece no amor, permanece com Deus’ [1João 4,16]. Ama, pois, o teu próximo e procura no teu íntimo a Origem deste amor; lá verás a Deus o quanto agora te é possível.

Começa, portanto, a amar o próximo. Reparte o pão com o faminto; acolhe em casa o pobre sem abrigo; quando encontrares um nu, cobre-o; e não dês as costas ao teu semelhante [cf. Isaías 58,7].

Procedendo assim, o que alcançarás? Então ‘brilhará a tua Luz como a aurora’ [Isaías 58,8]. Tua Luz é o teu Deus: Ele é a aurora que despontará sobre ti depois da noite desta vida. Essa Luz não conhece princípio nem ocaso, porque existe eternamente.

Amando o próximo e cuidando dele, vais percorrendo o teu caminho. E para onde caminhas senão para o Senhor Deus, para Aquele que devemos amar com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, de toda a nossa mente? É certo que ainda não chegamos até junto do Senhor, mas já temos conosco o próximo. Ajuda, portanto, aquele que tens ao lado, enquanto caminhas neste mundo, e chegarás até junto Daquele com quem desejas permanecer para sempre” (Tratado sobre o Evangelho de João 17,7-9; CCL 36,174-175).

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