Reflexões Metafísicas (Parte 1/2): a anemia metafísica

Nesta série serão apresentados os elementos que constituem as bases da reflexão metafísica, de orientação tomista, que sustentam não poucos conteúdos teológicos. De modo simples, mas direto, alguns pontos fundamentais serão tratados, pontos frequentemente ignorados na reflexão teológica protestante e que, não raro, iniciam as crises de fé de um grupo razoável de cristãos católicos. A primeira proposta é uma introdução, que trata da relação entre filosofia e teologia, que no fundo reflete a unidade existencial entre razão e fé, entre natureza e sobrenatureza. Vamos lá!

1. Muitos teólogos se perguntam sobre a necessidade de levar-se a cabo estudos filosóficos. Argumentam que a razão humana é muito falha e que a vontade do homem acaba por confundir a racionalidade, tornando-o presa fácil do erro e de suas paixões. Afirmam também que não veem razão para investir na filosofia se a fé é caminho suficiente na formação humana. Alguns dizem mesmo que para eles “basta a Palavra”[1]. Todavia, esta perspectiva teológica anti-filosófica, expressa aqui em alguns dos seus aspectos mais marcantes, já está em si mesma repleta de aspectos filosóficos como, por exemplo, o pessimismo relativo ao que a razão humana pode conhecer; a suposta incompatibilidade entre a fé e a inteligência, criadas por Deus; a repisada tese da malevolência da matéria dentre outras. Enfim, querer uma teologia sem filosofia já é um postura repleta de premissas filosóficas.

A primeira e mais comum atitude diante da filosofia, por parte dos estudantes de teologia, é a pretensa incomunicabilidade entre as reflexões teológicas daquelas produzidas em na filosofia. Eles sustentam que a natureza humana é bastante limitada e que, dada a excelência e magnitude de Deus, é impossível ao homem conhecer o Divino. Supondo que cada homem é limitado, seria impossível conhecer o Ilimitado; supondo a imperfeição humana, seria impossível conhecer a Perfeição Divina; sabendo-se relativo, nenhum homem poderia conhecer o Absoluto. Além disso, afirmam que o Pecado Original enfraqueceu a vontade humana, tornando-o naturalmente incapaz de conhecer Deus. Dada a fraqueza da vontade humana, as paixões investem sempre contra a razão, fazendo o homem escolher não o que deve fazer, mas o que prefere, o que gosta, a despeito das indicações da razão.

Contudo, os dois elementos aqui dizem algo, mas não tudo sobre a natureza humana. Não é verdade que a natureza humana nada pode conhecer sobre Deus. Se é verdade que o homem é limitado, não é verdade que não é possível conhecer algo do Ilimitado. Ora, sabe-se que o mundo real tem mais matizes espectrais que pode perceber a visão humana. Contudo, ninguém afirma que não é possível contemplar algo da Capela Sistina só porque não se percebe todos os infinitos matizes de azul ou amarelo. É verdade, o homem não percebe tudo, mas percebe algo, e percebe com certeza. Assim, se é verdade que o homem é limitado, imperfeito e relativo, é falso deduzir que é impossível conhecer algo sobre o Ilimitado, sobre o Perfeito e sobre o Absoluto, do mesmo modo que se percebe algo das notas musicais, mesmo sabendo que há frequências sonoras imperceptíveis ao ouvido humano. Deduzir das limitações humanas a impossibilidade do Ilimitado assemelha-se a deduzir a inexistência do som por causa da impossibilidade humana de perceber certas frequências sonoras: enfim, idiotice pura.

Outro elemento deste ponto da meditação é a pretensão de que a filosofia é dispensável na tarefa teológica e que a Sagrada Escritura pode, de algum modo, ser tomada sem qualquer indicação filosófica. Quem assim pensa, ainda não percebeu com clareza que este princípio teológico toma por duvidoso tudo o que não é dado revelado na Escritura e já está envolvido de não poucos elementos filosóficos. Por exemplo: para alguns teólogos desta linha, há um pessimismo acerca do que a razão humana pode ou não pode conhecer (epistemologia); para outros, há uma influência do pecado original sobre a vontade (ética) e a inteligência (epistemologia e metafísica) humanas; para outros, a liberdade humana está viciada (ética). Percebe-se que não é possível desvincular-se de algum tipo de reflexão filosófica, mesmo quando se deseja negá-la.

Mas a premissa Sola Scriptura, que é protestante, não resiste à aplicação dos seus corolários a si mesma. Se a filosofia é dispensável porque a Sagrada Escritura é critério único capaz de revelar toda a verdade sobre Deus e a salvação das almas, cabe uma pergunta incômoda: em que versículo está escrito que “toda a verdade está na Bíblia”? Ora, o princípio teológico tem que ser aplicado também a si mesmo. É evidente que este versículo não existe, o que põe em xeque a validade do critério.

Conheço muitas pessoas de fé católica, mas que sofreram crises intermináveis, inclusive sobre os fundamentos do cristianismo. Não raro, quando o problema não é moral, a questão é um nanismo intelectual, uma anemia metafísica. Há pessoas que sofrem de inanição filosófica crônica, pessoas que colocam toda a segurança religiosa em sua fé, mas esta é imatura, muito assentada sobre as emoções e sentimentos. Se algum evento questiona fortemente essa fé, torna-se clara a fraqueza esquálida do intelecto dessa pessoa, que mergulha em crise profunda. Neste caso, valem com maior razão as palavras do Papa João Paulo II, na Carta Encíclica Fides et Ratio:

Estas directrizes foram depois retomadas e especificadas noutros documentos do Magistério, com o intuito de garantir uma sólida formação filosófica sobretudo àqueles que se preparam para os estudos teológicos. Também eu sublinhei, em várias ocasiões, a importância desta formação filosófica para todos os que, um dia, terão de enfrentar, na vida pastoral, as questões do mundo actual e individuar as causas de determinados comportamentos, a fim de lhes dar pronta resposta (Fides et Ratio, 60).

Até a próxima!

_________NOTA: [1] “Sola Scriptura”: Somente a Escritura, princípio que fundou os movimentos protestantes do século XVI.

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