Reflexões sobre pensamento calvinista, a vontade e a graça

Por que a negação da metafísica leva os protestantes calvinistas a verem o mal como um “ser”?

A privação é um ser de razão. Quando pensamos num homem a quem falta um braço, por exemplo, o nosso espírito distingue duas noções: a do homem completo, com ambos os braços, e a da privação do braço que lhe falta. Logo se vê que a segunda não pode corresponder a nada de real, senão conjugada com a primeira. Ora sendo a privação parcial de um bem, o mal é um ser de razão. Logo, não pode ser causado por Deus.

Querer fazer de Deus a causa do mal é como atribuir ao Sol a existência das sombras. Do Sol vem a luz, mas um obstáculo interpõe-se e produz a sombra. Ora, a sombra não existiria se não houvesse luz; apagar-se-ia na escuridão geral. No entanto, ninguém dirá que é do Sol que vem a sombra, posto que é justamente o efeito contrário: a sombra aqui produzida é justamente uma privação parcial da luz solar.

Do exemplo citado, podemos concluir que o mal ocorre quando há a frustração de uma causa ocasionada pelo efeito de outra. Resulta de uma causa ser frustrada do seu efeito por com ela concorrer acidentalmente outra causa ou outras causas. Veja-se esse exemplo: Um homem, por gula, come do que lhe faz mal, e arruína a saúde. Não há na sua natureza nenhuma faculdade cujo fim seja esse. Há a vontade, que lhe foi dada como motor para executar livremente o que a inteligência lhe mostrasse ser seu dever; e há o instinto que o leva a procurar alimento, em subordinação à vontade, guiada pela razão. Se a vontade cedeu ao instinto, foi por ele frustrada em sua missão. O mal resultou, portanto, de faculdades cuja finalidade é o bem. Desta maneira, o mal não tem causa, isto é, causa destinada a produzi-lo, na natureza que Deus criou. Ele não tem causa eficiente, e sim causa deficiente. Existe num bem como no seu sujeito, quando algum outro bem se interpôs no caminho desse.

Deus não conhece o mal, porque o objeto do conhecimento divino é o próprio Deus. O objeto da inteligência divina é o próprio Deus. Realmente; a nossa inteligência está para o objeto que conhece na relação da potência para o ato. É capaz de conhecer o objeto; é, em potência, o objeto, visto que no conhecimento se identifica com ele. Ora em Deus não há potência; é ato puro. Por isso, a sua inteligência não pode ter um objeto distinto de si, perante o qual faria o papel de potência. Tem-se a si mesmo por objeto. Deus é o seu ato de intelecção; ou, como diz S. Tomás na Suma, “conhece-se a si mesmo por si mesmo”.

Mas Deus não conhece todas as coisas? Sim, conhece-as em Si mesmo, conhece-as na Sua vontade, porque, conhecendo-se, conhece o mundo. Deus conhece tudo no ato simples em que se conhece a si mesmo, exaustivamente. O conhecimento que Deus tem delas em si mesmo é exaustivo, porque elas recebem de Deus tudo quanto são, tudo quanto têm. Deus conhece-as no mais íntimo do seu ser, visto que lhes conhece o ser na fonte, na nascente. E por que Deus conhece as coisas no seu ser, Deus conhece o bem criado e sabe que é limitado. Deus conhece o bem e os seus limites.

A postura dos calvinistas, de que Deus pode ordenar pecados da mesma forma como ordena o bem chama-se voluntarismo. O erro voluntarista foi assumido por Lutero; é de que Deus poderia fazer do mal um bem, caso escolhesse esse mal como se fosse um bem.

O bem é uma noção transcendental, idêntica ao ser. Mas, tanto quanto é certa a distância que separa o finito do infinito, assim nenhum bem finito pode igualar-se ao infinito. A perfeição de Deus exige que Ele seja único. Desta forma temos que, distinto de si, Deus não pode querer senão o imperfeito. É claro que Deus poderia criar um mundo mais perfeito do que este que criou, como poderia tê-lo criado mais imperfeito, todavia, onde quer que Deus traçasse o limite da perfeição do Mundo, este estaria sempre infinitamente afastado da perfeição total. É absolutamente indiferente, portanto, a quantidade de perfeições que Deus quis dar ao Mundo, como é indiferente a posição dum ponto que se marca sobre uma reta em que não há nenhuma referência.

A vontade de Deus é livre? Sem dúvida nenhuma. Uma vontade diz-se livre quando não é determinada por nenhuma causa exterior na escolha dos seus meios; e Deus não pode ser determinado por ninguém. Pode objetar-se com a imutabilidade divina, que parece tornar necessário que Deus queira tudo quanto quer. De fato, o fim da vontade divina, por ser o próprio Deus, é necessário, duma necessidade intrínseca, que é a de Deus; mas os meios que escolhe não o são, falando em absoluto. Deus não pode querer o mal, porque Deus quer o perfeito, visto que se quer a si mesmo; o objeto da sua vontade, é a sua própria essência. Distinto de si, não pode querer senão o imperfeito, sob pena de contradição, visto que a perfeição de Deus exige que ele seja único.

E “reprovação incondicional e negativa” contrasta como com predestinação incondicionada à glória?

Por que ocorre a reprovação?

A vontade de Deus é de que todos os homens se salvem. Isso é um bem. Deus quer esse bem com sua vontade antecedente. Só que há certos bens que Deus quer que se realizem de imediato, como no exemplo dado por Garrigou-Lagrange: a salvação deste homem, Pedro. Esse é o bem realizado hic et nunc, “aqui e agora”, e o deseja com sua vontade conseqüente. Se Deus não deseja a salvação de alguém hic et nunc, não significa que esse bem não é desejável em si mesmo, mas que não faz parte da ordem providencial, e, mesmo que seja bom que tal homem seja salvo, este obstinar-se-á no mal até a sua morte. Perceba-se que isto é totalmente conciliável com o fato de que perdeu-se por conta de seus próprios atos.

Com respeito ao concurso divino, a posição tomista, ou pelo menos a que parece mais concordante com os difíceis textos que Santo Tomás escreveu sobre o tema, era defendida, na época de Molina, pelos dominicanos, consistindo essencialmente na tese da praemotio physica (premoção física). A questão a determinar era a de saber como era possível que Deus movesse a vontade do homem sem que esta fosse coagida cabendo a Deus a responsabilidade. Santo Tomás entendia, a este respeito, que a vontade só ficaria coagida se fosse movida contra a sua inclinação própria, o que não sucede dado que Deus, como motor da vontade, é o mesmo que lhe deu a sua inclinação para o bem. Em todo o caso, a vontade só poderá ser movida “eficazmente” por Deus. Quanto ao modo como Deus intervém, a doutrina da praemotio physica defendia que a intervenção de Deus era anterior à ação, sendo essa intervenção que proporcionava ao sujeito a capacidade para atuar.

De acordo com o molinismo, a predestinação é tão gratuita quanto no tomismo, posto que, pela ciência média, Molina pretendia salvaguardar a liberdade de escolha humana, contra a doutrina da premotio physica, mas não salvaguardava a mesma liberalidade de Deus com todos. Isto porque, pela ciência média, Deus “via” antecipadamente como cada homem reagiria ante a graça nas mais variadas circunstâncias da vida, e, sabedor antecipado de como seria cada uma das decisões do homem, Deus livremente escolhia alguns que ele decidia salvar. Ora, Deus os colocava em tais e tais circunstâncias que Ele sabia que eles acolheriam a graça, e, assim, salvaguardar-se-ia a liberdade humana, pois, se tais indivíduos fossem postos, por sua vez, em outras condições, mesmos estes rejeitariam a graça. Mas por que Deus não pôs a todos em condições que permitissem que todos acolhessem a graça? Assim, a predestinação no molinismo tornava-se soberana e gratuita, ainda que se tivesse por motivo, segundo Molina, salvar a liberdade humana.

Todas as questões aqui desenvolvidas foram tratadas por Santo Tomás na Suma Teológica, sobre a vontade de Deus (Iª, q. 19), inclusive mostrando como não pode haver, em Deus, vontade para o mal (a. 9). Santo Tomás demonstra também que Deus atualiza nossa liberdade pela soberana eficácia de sua vontade, fá-la florescer e frutificar, e portanto não a destrói. Deus sustenta, fortiter et suaviter, a vontade livre dos mártires durante seus tormentos (a. 8).

Estes princípios são, em seguida, aplicados por Santo Tomás à Providência universal (Iª, q. 22), que se estende a todas as coisas, inclusive nossos atos livres (a. 2).

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