Resposta ao artigo “Missa de Sempre, será?”

Por Joathas Bello

Circula no Instagram um artigo bem raso doutrinária e historicamente, intitulado “Missa de Sempre, será?”[1]. Começa dizendo que

 

algumas pessoas, sem conhecimento histórico/litúrgico, chamam a Missa Tridentina de “missa de sempre”. Tal termo é extremamente inadequado, não tem fundamentação teológica ou canônica e é reflexo de um mal entendimento da evolução orgânica pelo qual passou a liturgia da Igreja.

 

E segue afirmando uma atrocidade contra a piedade e a Fé católicas: “A Missa Tridentina afasta-se enormemente da missa celebrada pelos apóstolos e mártires”.

 

A Missa Romana tradicional chama-se “tridentina” por ter sido codificada por S. Pio V após o Concílio de Trento (e segundo a autoridade dogmática de tal Concílio Ecumênico); ela não surgiu com Trento ou S. Pio V, que neste momento (em 1570) tão somente depurou e reconheceu a forma ritual da Missa Romana, diante de inventos recentes dos protestantes (como a “missa de Cranmer”), para garantir a reta celebração do Mistério da Fé, conforme os decretos dogmáticos de Trento sobre a Eucaristia, o Sacrifício e a Comunhão (decretos que, aliás, foram escritos e aprovados tendo em vista a celebração ritual de então: os decretos dogmáticos e a missa canonizada se apoiam mutuamente). A Missa chamada de S. Pio V, já tinha sua forma reconhecida há mais de 200 anos: ela coincide fundamentalmente com o Missal franciscano do século XIII ou com a estrutura da Eucaristia que S. Tomás apresenta na Suma Teológica (cf. S.Th. III, q.83, a.4).

 

Então, a rigor, temos uma forma ou estrutura ritual que se manteve idêntica durante 7 séculos, até 1965, e que, na mente do articulista, “se separaria enormemente da missa celebrada pelos apóstolos e mártires”. Ora, é inimaginável que a Igreja Católica pudesse se afastar, durante 7 séculos, da Tradição dos Apóstolos e dos Mártires, naquilo que constitui o ato mais fundamental da Fé, a celebração do Sacrifício de Cristo! Seria como dizer que a Igreja viveu deficitariamente sua lex orandi por 7 séculos! É o mesmo que dizer que a Esposa de Cristo traiu a Cristo por todo esse tempo… Não se vê como a Igreja poderia ter se mantido de pé… Sem muito esforço teórico, seria muito mais crível, se fosse o caso, dizer que a última reforma litúrgica, que se afasta da forma ritual tridentina ou tradicional (com as subsequentes reformas acidentais até o Missal de João XXIII, de 1962), e é permanentemente abusada, sendo rara a “missa nova bem celebrada” ou “conforme o Missal e o espírito litúrgico”, representa 53 anos de liturgia precária e antitradicional…

 

Todo fiel que ama a Missa tradicional sabe que a forma tridentina (ou a que se consolidou do século XIII em diante) não é idêntica à celebração da Última Ceia, mas que se trata do desenvolvimento histórico, teologicamente orgânico, da Missa celebrada em Roma, que é paralelo ao desenvolvimento dos demais ritos antigos e veneráveis, do Oriente (v.g., a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo ou a de S. Basílio) e do Ocidente (v.g., o Rito Ambrosiano tradicional e o Rito Moçárabe tradicional).

 

Eis o sumário do desenvolvimento histórico do Missal Romano até a forma promulgada por S. Pio V, conforme a indicação de D. Prósper Guéranger (Cf. GUÉRANGER, Missa Tridentina: Explicações das orações e das cerimônias da Santa Missa”. Tradução de Anna Luíza Fleischmann. Niterói: Permanência, 2010): as orações ao pé do altar são do séc. XII, o Confiteor do séc. VIII (a fórmula da Missa é do XII), o Intróito (canto de entrada) e o Kyrie são do séc. V, o Glória é oração do séc. II e entrou na missa no V, as orações Coletas foram compostas entre o III e V, a Epístola é lida desde sempre, o Salmo (gradual) e Aleluia são do séc. V, as Sequências foram acrescentadas a partir do séc. IX, o Evangelho desde sempre, o Credo é do V; a Antífona do Ofertório é do séc. V e a Oração, do VIII ou IX, a prática da incensação é do séc. IX, o Lavabo do séc. VII, a outra oração do ofertório à Trindade é do X-XI, o Oratre fratres é do X, o Prefácio do Cânon (oração eucarística) e o Santo são do séc. II, o básico do Cânon romano deve ser do final do séc. II ou início do III, as palavras da Consagração desde sempre, o Pai Nosso foi incluído na Missa no séc. III, o Cordeiro de Deus é do VIII, a Despedida (“Ite missa est”) é do séc. V, a Benção final é do VII-VIII, e o último Evangelho (prólogo de S. João) é do séc. XIII.

 

Diz o articulista, a respeito do famoso relato de São Justino sobre a Missa:

 

São Justino, mártir do século II, nos indica como a missa era celebrado em sua época. Encontramos os seguintes ritos: ministério, presidência, homilia, oração dos fiéis.

 

Tais ritos foram parcial ou completamente suprimidos na chamada Missa Tridentina, tendo, em compensação aumentado os gestos, inclinações, genuflexões e beijos inexistentes na Missa Primitiva.

 

“Ministério” e “presidência” não são “ritos” (partes rituais da estrutura ritual) em sentido algum! E se a homilia foi “parcialmente suprimida” isto é uma questão pastoral, que poderia ser corrigida sem qualquer alteração da forma ritual. A “oração dos fiéis” não é uma parte ritual essencial, já que a oração da Igreja por excelência já se realiza no Cânon (Anáfora no Oriente ou “oração eucarística” na nova liturgia); em qualquer caso, ela pode ser útil para expressar a “participação da assembleia” (conforme o bom espírito que deve ser presumido em Sacrossanctum Concilium), e poderia ser reincorporada à estrutura ritual da Missa Romana tradicional sem alteração da estrutura ritual fundamental. “Gestos, inclinações, genuflexões e beijos” são ações rituais que expressam as verdades da Presença Real e da Adoração. Poderiam até ser simplificados, sem qualquer alteração ritual fundamental. O autor do texto mostra uma ignorância total sobre o objeto de sua consideração.

 

Ele ainda diz que o Missal Romano tradicional “é fruto de um contexto histórico passageiro”. Diante dos fatos, isto é um absurdo, pois tal Rito tem sua forma fundamental há 7 séculos: haja contexto histórico! Ao contrário, é algo de todos sabido que a reforma conciliar de modo geral, e a litúrgica em particular, foi apresentada formalmente como uma reforma contingente, pois se trata de um aggiornamento ou “adaptação à mentalidade moderna”.

 

O articulista diz que “o Concílio Vaticano II, visando o ad fontes e o aggiornamento, bebe na fonte dos Padres da Igreja”… Ora, que diga de onde o CVII tirou o novo “ofertório” com a bênção judaizante (a berakah foi substituída precisamente pelo Cânon), e o naturalismo e humanismo (que oferece o “fruto da criação e do trabalho humano”)… Ou então, concedendo benevolentemente que a “Oração eucarística II” tenha lastro em S. Hipólito, e que o Cânon Romano possa ser preterido, que diga de onde são tiradas as demais anáforas (as outras duas oficiais e as infinitas criações das conferências episcopais)…

 

O desenvolvimento da Tradição é análogo ao da Doutrina: ainda considerando que o relato de S. Justino fosse perfeitamente fiel (isto é, desconsiderando a “lei do arcano”, a Tradição oral que não ensinava tudo que acontecia na Liturgia aos de fora: cf. o que diz S. Basílio no Tratado do Espírito Santo), não é razoável dizer que a forma ritual mais simples seja a mais apta a expressar a verdade celebrada, da mesma forma que não é razoável abandonar a Suma Teológica para defender a Fé desde o Diálogo com Trifão, trocar a síntese tomista pelo mero refrão das “sementes do Verbo”, deixar o conceito rigoroso de “tranbustanciação” pelas ideias antigas sobre a presença real.

 

O “antigo” na Tradição é o “permanente”, o que tendo vindo do passado, sempre tem sido entregue, crescendo com o tempo (com a meditação e a santidade dos ministros e dos fiéis); o que vem possibilitando a história, e nos fez chegar até aqui. É filosófica e teologicamente impensável uma “tradição viva”, histórica, que “ficou para trás”, ainda mais em tema tão central, como o da celebração litúrgica: a Eucaristia é o que “faz a Igreja”. A Tradição litúrtica, ao ir sendo entregue, vai se desenvolvendo, isto é, vai passando da potência ao ato; a forma ritual canonizada por S. Pio V é simplesmente a atualização do germe da Missa Romana de sempre, ao passo que o novus ordo rompe com essa transmissão tradicional, inaugurando uma nova vertente ritual, “pastoral” – que resultou numa forma ritual inédita, necessitada da presença do Rito tradicional, de modo análogo a como as novas fórmulas pastorais só se entendem à luz presente da “substância do depósito da fé” –, segundo o alcance magisterial do CVII; tal novo rito é apenas juridicamente “romano” (emanado da autoridade eclesiástica do Patriarca Latino), não historicamente romano enquanto apostólico.

 

O “arqueologismo” é justamente o erro teológico que busca encontrar o que “ficou para trás” (como sinônimo equivocado de “mais fiel” ou “mais tradicional”), o que representa dois problemas muito graves no caso: a própria ideia de que a Igreja “se desorientou” por séculos (liturgicamente!), e, muitas vezes, uma concepção herética (por exemplo, protestantizante ou judaizante) que quer se impor de modo sutil e indireto através da supressão do desenvolvimento que esclarece melhor a Fé católica em face dos erros – “arqueologismo” não é a simples menção ou recuperação de coisas antigas em perfeita sintonia com os desenvolvimentos mais recentes.

 

Fala ainda o articulista sobre a “recuperação da eclesiologia do Povo de Deus, perdida pelo excessivo clericalismo surgido na Igreja no pós Trento”. Tenha-se em vista que a ideia do “Povo de Deus” já foi criticada por Bento XVI, que considerava uma renovação mais adequada a ideia da Igreja como “Comunhão”. Em qualquer caso, uma prudente e justa “participação ativa” da assembleia, como pleiteada pelos Padres conciliares, apenas significaria a abertura mais ampla dos tesouros do Rito Romano tradicional, e não a modificação ritual.

 

Diante do exposto, a conclusão do articulista é um total despropósito:

 

Do ponto de vista histórico e litúrgico, não há dúvidas de que o Missal de São Paulo VI é muito mais tradicional do que o Missal de São Pio V e que chamar esta forma de celebrar de “missa de sempre” é um erro crasso.

 

Todos os Ritos antigos e veneráveis, o de Roma e os demais do Ocidente e do Oriente, são “Missa de sempre”. O novo rito pastoral de Paulo VI, uma fabricação recente (não me refiro à “essência do Sacramento/Sacrifício” em sentido clássico, mas à estrutura ritual que a cerca), é o único que não é. Trata-se de uma clara ruptura com a Tradição apostólico-litúrgica de todos os tempos; Tradição que em Roma demorou um pouco mais que no Oriente para atingir sua forma ritual final, mas que já fora consolidada no século XIII e ratificada de uma vez por todas coma Bula Quo Primum Tempore, de S. Pio V.

 

Notas

[1] https://www.instagram.com/p/C0WZFzEB_tz/

 

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