Terminada a 11ª Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (23.10.05), no Vaticano, nasceu a pergunta: Quando teremos a publicação da exortação apostólica desse primeiro sínodo no pontificado de Bento XVI? Dia 14 de março último foi-nos oferecida a esperada exortação, aprovada semanas antes (22.02.07), em um dia especial para a liturgia da Igreja: a festa da Cátedra de São Pedro.
Além de uma introdução e uma conclusão, o texto apresenta três partes: a primeira é uma reflexão sobre o mistério acreditado; a segunda, sobre o mistério celebrado; a última, sobre o mistério vivido. A frase que abre as reflexões e orientações sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja introduz o leitor no coração do mistério eucarístico: Sacramento da caridade, a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem (1). Nesse sacramento, Jesus nos ama até o fim (Jo 13,1), até o dom de seu corpo e do seu sangue; ele vem ao nosso encontro, fazendo-se nosso companheiro de viagem (cf. 2).
As primeiras reações à Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis foram de surpresa, fruto de uma leitura apressada daqueles que por primeiro tiveram acesso ao texto os jornalistas. Além de estranharem que nada havia de revolucionário nos noventa e sete números afinal, o Papa recorda tradicionais valores da Eucaristia e insiste em orientações que fazem parte do patrimônio da Igreja -, tiraram uma palavra do número 29 e a apresentaram fora de seu contexto. Ali, Bento XVI faz uma relação entre Eucaristia e a indissolubilidade do Matrimônio: já que a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique que, relativamente ao sacramento do Matrimônio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de anelar. Em seguida, faz referência às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do Matrimônio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. A expressão dolorosas situações é plenamente compreensível: as pessoas envolvidas são as primeiras a sofrer com um passo que não estava programado em seus projetos de vida. Sofrem elas, sofrem os filhos e familiares, sofre a Igreja. E o Papa continua: Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo, que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos.
Muitos fixaram sua atenção na palavra praga (no texto original latino: plaga, traduzida por alguns como chaga) e a atribuíram aos que se decidem pelas segundas núpcias. Tivessem lido o texto atentamente, perceberiam que praga, segundo Bento XVI, é a mentalidade que invade o mundo, fruto de uma concepção materialista, epicurista e atéia da vida, segundo a qual o casamento não passaria de uma realidade descartável na vida humana. Essa mentalidade está de tal forma enraizada em certos ambientes sociais que, para alguns cristãos, não valeria a pena continuar a combatê-la, não valeria a pena trabalhar para difundir um hábito social capaz de criar uma legislação civil favorável à indissolubilidade (cf. João Paulo II, 28.01.02). Com isso, a dignidade do matrimônio não refulge em toda parte com o mesmo brilho (Conc. Vat. II, GS, 47), posto que é obscurecida pela mentalidade do divórcio. Pior: essa mentalidade divorcista corrói os próprios ambientes católicos (SCa, 29).
Voltemos ao essencial da exortação apostólica. Sacramentum caritatis apresenta uma ampla visão do dom que, na Quinta-feira Santa, deve ter tocado profundamente o coração dos apóstolos. Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico! (1). Estamos diante de um texto que deve ser lido, meditado e rezado por todos aqueles que acreditam que na Eucaristia, Jesus não nos dá alguma coisa, mas se dá a si mesmo (7). E, dando-se a si mesmo, antecipa o banquete final, preanunciado pelos profetas e descrito no Novo Testamento como as núpcias do Cordeiro (3). Se desejamos uma Igreja renovada, que renasça sempre de novo, precisamos nos conscientizar: toda a grande reforma da Igreja está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio de seu povo (6). Afinal, a Eucaristia é constitutiva do ser e do agir da Igreja (15). Dessa consciência nascerá toda uma espiritualidade isto é, uma vida segundo o Espírito (cf. Rm 8,4ss), que levará a pessoa não apenas a viver intensamente a Missa e a ter uma especial devoção ao Santíssimo Sacramento, mas que abraçará sua vida inteira (cf. 77), levando o católico a dar um testemunho público da própria fé (cf. 82), a ser comprometer com a sociedade em que vive, procurando transformá-la à luz dos critérios evangélicos (cf. 89), a assumir a consciência de ser um missionário (cf. 84), testemunhando sua fé até o derramamento de seu sangue, se for preciso (85).
A Exortação Apostólica Sacramentum caritatis termina lembrando que a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade. Somente tendo uma espiritualidade cristã autenticamente eucarística (94), à semelhança da espiritualidade de Maria, Mulher eucarística (96), conseguiremos atingir nossa meta: apresentar-nos diante do Senhor imaculados, tal como Ele nos quis desde o princípio (Cl 1,22) (96).
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de Florianópolis