Recentemente tive a oportunidade de dialogar com um amigo protestante (batista) que me afirmava que diversos Padres da Igreja, entre eles Santo Agostinho, tinham “posturas protestantes”, especialmente quando interpretavam Mateus 16,18, passagem esta que – segundo ele – importava em rejeição ao entendimento católico atual sobre o primado de Pedro e o Papado.
Quem foi Santo Agostinho?
Santo Agostinho é considerado como um dos maiores Padres da Igreja. Sua influência para a posterioridade foi notável. O bispo de Hipona era teólogo, filósofo, místico, poeta, orador, apologista e escritor. Nascido em 354 d.C., recebeu uma educação cristã desde menino graças à sua mãe; mas aos 19 anos acabou abandonando a fé católica. Estudou Hornêncio, Cícero e chegou a dar ouvidos aos maniqueus, tornando-se um anticatólico convencido. Após uma longa luta interior, acabou por compreender que era necessária a fé para alcançar a sabedoria e que a autoridade em que se apoiava a fé era a Escritura, avalisada e lida pela Igreja. Depois de opor Cristo à Igreja, descobriu que o caminho que levava à Cristo era precisamente a Igreja. Em 391 foi ordenado sacerdote e em 395 (ou 396) tornou-se bispo. Interveio nas controvérsias contra os maniqueus, donatistas, pelagianos, arianos e pagãos. Morreu em 430, deixando-nos uma enorme quantidade de obras, legado que perdura até os dias de hoje.
Qual a Importância das Obras de Santo Agostinho?
Os escritos de Santo Agostinho (assim como os escritos dos Padres da Igreja e outros escritores eclesiásticos) são importantíssimo não apenas para os estudiosos de Patrística e Patrologia mas também para todos os cristãos que têm o interesse de conhecer a fundo o pensamento da Igreja em seus primeiros séculos e a sua forma de interpretar as Escrituras.
Em virtude destas circunstâncias, tive o desejo de estudar os escritos de Santo Agostinho, não apenas nos pontos em que os protestantes costumam citar, mas em sua totalidade, para que assim pudesse fazer uma comparação justa de seu pensamento.
Santo Agostinho e o Primado de Pedro
Os testemunhos de Santo Agostinho sobre o primado de Pedro são bastante numerosos; no entanto, alguns textos de Santo Agostinho são freqüentemente retirados do seu respectivo contexto ao serem citados por protestantes, induzindo um pensamento contrário. Examinemos alguns desses textos e a visão global do santo acerca desse tema:
– “São Pedro, o primeiro dos apóstolos, que amava ardentemente a Cristo e que chegou a ouvir dele estas palavras: ‘Pois eu te digo: tu és Pedro’, havia dito antes: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo’. E Cristo lhe replicou: ‘Pois eu te digo: tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Sobre esta pedra edificarei esta mesma fé que professas. Sobre esta afirmação que tu fizeste, ‘tu és o Messias, o Filho do Deus vivo’, edificarei a minha Igreja, porque tu és Pedro’. ‘Pedro’ é uma palavra que provém de ‘pedra’ e não o contrário. ‘Pedro’ deriva de ‘pedra’, do mesmo modo que ‘cristão’ deriva de ‘Cristo’. O Senhor Jesus, antes de sua Paixão – como sabeis – elegeu aos seus discípulos, a quem conferiu o nome de ‘apóstolos’. Entre eles, Pedro foi o único que representou a totalidade da Igreja em quase todas as partes. Por isso, enquanto ele apenas representava em sua pessoa a totalidade da Igreja, pôde escutar estas palavras: ‘Te darei as chaves do reino dos céus’. Porque estas chaves eram recebidas não por um único homem, mas pela única Igreja. Daí a excelência da pessoa de Pedro, enquanto que ele representava a universalidade e a unidade da Igreja quando lhe foi dito: ‘Eu te entrego’, tratando-se de algo que foi entregue a todos. Portanto, para que saibais que a Igreja recebeu as chaves do reino dos céus, escutai o que diz o Senhor, em outro lugar, a todos os seus apóstolos: ‘Recebei o Espírito Santo’. E continua: ‘Aqueles a quem perdoardes os pecados, estes lhes serão perdoados; aqueles a quem retiverdes [os pecados], estes lhes serão retidos’. Neste mesmo sentido, o Senhor, depois de sua ressurreição, confiou também a Pedro suas ovelhas, para que as apascentasse. Não é que ele fosse o único dos discípulos que tivesse o encargo de apascentar as ovelhas do Senhor; é que Cristo, pelo fato de se referir a apenas um, quer significar com isto a unidade da Igreja. E se se dirige a Pedro com preferência aos demais é porque Pedro é o primeiro entre os apóstolos. Não te entristeças, apóstolo! Responde uma vez, responde duas, reponde três. Vença por três vezes a tua profissão de amor, já que por três vezes o temor vencer a tua presunção. Três vezes deverá ser desatado o que por três vezes havias atado. Desata pelo amor o que havias atado pelo temor. Apesar de sua debilidade, por primeira, por segunda e por terceira vez confiou o Senhor as suas ovelhas a Pedro” (Santo Agostinho, Sermão 295; PL 38,1348-1352).
Santo Agostinho também escreveu:
– “Cristo – como vês – edificou a sua Igreja não sobre um homem, mas sobre a confissão de Pedro. Qual é a confissão de Pedro? ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo’. Aqui está a rocha para vós; aqui o fundamento; aqui encontra-se onde a Igreja foi edificada, contra a qual as portas do inferno não podem conquistar”.
Quando um protestante lê Santo Agostinho dizendo que a pedra sobre a qual se edificará a Igreja é a fé (e não Pedro), assume que tal texto implica em rejeição ao primado de Pedro. Isto ocorre porque eles interpretam que, sendo a fé “a pedra” sobre a qual Cristo edificou a sua Igreja, isto implicaria que qualquer pessoa que confessasse a Cristo como Filho de Deus por revelação divina será também uma pedra em que se edifica a Igreja; com efeito, poderia “ligar e desligar” tal como Pedro. Sob esta ótica, todos os cristãos teriam a mesma autoridade [que Pedro]; os bispos e presbíteros teriam a função de apascentar o rebanho; porém, em última instância, a interpretação final da Escritura repousaria em cada crente.
O Catecismo da Igreja Católica explica a posição católica da seguinte maneira:
– “No colégio dos Doze, Simão Pedro ocupa o primeiro lugar (cf. Mc. 3,16; 9,2; Lc. 24,34; 1Cor. 15,5). Jesus lhe confia uma missão única. Graças à uma revelação do Pai, Pedro confessou: ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo’. Então Nosso Senhor lhe declarou: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Hades não prevalecerão contra ela’ (Mt. 16,18). Cristo, ‘Pedra viva’ (1Ped. 2,4), assegura à sua Igreja, edificada sobre Pedro, a vitória sobre os poderes da morte. Pedro, em razão da fé confessada por ele, será a rocha inquebrantável da Igreja. Terá a missão de custodiar esta fé perante todo desfalecimento e de confirmar nela os seus irmãos (cf. Lc. 22,32)” [CIC 552].
– “Jesus confiou a Pedro uma autoridade específica: ‘A ti te darei as chaves do Reino dos céus; e o ligares na terra será ligado nos céus; e o que desligares na terra será desligado nos céus’ (Mt. 16,19). O poder das chaves designa a autoridade para governar a casa de Deus, que é a Igreja. Jesus, ‘o Bom Pastor’ (Jo. 10,11) confirmou este encargo após sua ressurreição: ‘Apascenta as minhas ovelhas’ (Jo. 21,15-17). O poder de ‘ligar e desligar’ significa a autoridade para absolver os pecados, pronunciar sentenças doutrinárias e tomar decisões disciplinares na Igreja. Jesus confiou esta autoridade à Igreja pelo ministério dos Apóstolos (cf. Mt. 18,18) e particularmente pelo de Pedro, o único a quem foi confiada explicitamente as chaves do Reino” [CIC 553].
– “O Senhor fez de Simão, a quem deu o nome de Pedro, e somente a ele, a pedra de sua Igreja. Lhe entregou as chaves dela (cf. Mt. 16,18-19); o instituiu pastor de todo o rebanho (cf. Jo. 21,15-17). ‘Resta claro que também o Colégio dos Apóstolos, unido à sua Cabeça, recebeu a função de ligar e desligar dada a Pedro’ (LG 22). Este ofício pastoral de Pedro e dos demais Apóstolos pertence aos fundamentos da Igreja. Continua pelos bispos sob o primado do Papa” [CIC 881].
Uma análise detalhada dos textos de Santo Agostinho demonstra que a sua postura, mais do que aproximar-se da postura protestante, concorda com a posição católica, reconhecendo a Pedro, em razão da fé confesssada por ele, como o primeiro dos Apóstolos, como representante da Igreja inteira e portador das chaves do reino dos céus. Os bispos em comunhão com ele também podem ligar e desligar (observe-se que o Santo também relaciona, ao contrário dos protestantes, o poder de ligar e desligar com a autoridade de perdoar os pecados).
Vejamos agora alguns textos adicionais de Santo Agostinho que, comparados com outros, nos dão uma perspectiva real da opinião do Santo:
– “Ainda prescindindo da sincera e genuína sabedoria…, que em vossa opinião não se encontra na Igreja Católica, muitas outras razões me mantém em seu seio: o consentimento dos povos e das gentes; a autoridade, erigida com milagres, nutrida com a esperança, aumentada com a caridade, confirmada pela antigüidade; a sucessão dos bispos desde a própria sé do Apóstolo Pedro, a quem o Senhor confiou, depois da ressurreição, o apascentamento de suas ovelhas até o episcopado de hoje; e, por fim, o próprio apelativo de ‘católica’, que não sem razão apenas a Igreja alcançou… Estes vínculos do nome cristão – tantos, grandiosos e dulcíssimos – mantêm o crente no seio da Igreja católica, apesar de que a verdade, por causa da torpeza de nossa mente e indignidade de nossa vida, ainda não se apresenta” (Santo Agostinho, C. ep. Man. 4,5).
No texto anterior, Santo Agostinho demonstra ver diferença entre a confissão de fé com o ministério do episcopado. Nem todos, por apenas confessar a fé, são bispos; tampouco todos são sucessores do apóstolo Pedro enquanto o seu ministério.
– “Se a sucessão dos bispos for levada em conta, quanto mais certa e benéfica a Igreja que nós reconhecemos chegar até o próprio Pedro, aquele que portou a figura da Igreja inteira, a quem o Senhor disse: ‘Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela’. O sucessor de Pedro foi Lino, e seus sucessores em ordem de sucessão ininterrupta foram estes: Clemente, Anacleto, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telésforo, Higino, Aniceto, Pio, Sótero, Eleutério, Victor, Zeferino, Calisto, Urbano, Ponciano, Antero, Fabiano, Cornélio, Lúcio, Estêvão, Sisto, Dionísio, Félix, Eutiquiano, Caio, Marcelino, Marcelo, Eusébio, Miltíades, Silvestre, Marcos, Júlio, Libério, Dâmaso e Sirício, cujo sucessor é o presente bispo Anastácio. Nesta ordem de sucessão, nenhum bispo donatista é encontrado” (Santo Agostinho, Ep. 53,2).
Novamente aqui vemos o mesmo. Para o santo bispo de Hipona, o ministério concedido a Pedro era desempenhado especificamente pelos bispos de Roma em sucessão ininterrupta. Logo após apresentar este texto a um amigo protestante, ele manteve sua teimosia: “Não vejo aí nenhum Papado”. Atitude particularmente obstinada, para quem lê um texto onde se fala da sucessão apostólica dos bispos de Roma, da sua sucessão no ministério do Apóstolo Pedro e, como não fosse suficiente, da lista dos papas até Anastácio (o Papa da época). Que mais poderia querer? Que fosse apresentado o título de “Papa”? Ora, isto também ocorre em inumeráveis ocasiões, as quais seria muito trabalhoso enumerar; conformemo-nos, pois, em apontar uma delas: na obra, “Sobre o Pecado Original”, aparece 13 vezes nos capítulos 2, 7, 8 e 9. Ali se expressa, com muita reverência, sobre os pontífices e se lêem frases como “o mais bendito papa Zózimo em Roma” (capítulo 2), “o venerável papa Zózimo” (capítulos 8 e 9), “o mais bendito papa Inocêncio” (capítulos 8 e 10), “o mais bendito papa Zózimo” e “o santo papa Inocêncio” (capítulo 9), “o santo papa Zózimo” (capítulos 10 e 19) e “o papa Inocêncio, de bendita memória” (capítulo 19).
Há evidência adicional suficiente para estarmos seguros de ir contrário à tendência que propõe a negação do primado na raiz destas frases existentes nos sermões do Santo. Quem pensa assim deveria explicar se compartilham do mesmo pensamento de Santo Agostinho quando este afirma que a igreja dos donatistas não pode ser a verdadeira por não ser católica, una, santa e apostólica e que quem se afasta da Igreja sacrifica a sua própria salvação (Bapt. 4,17.24). Segundo estas afirmações, bastaria a confissão de fé como fundamento para a edificação da Igreja?
Diferentemente da postura protestante, para Santo Agostinho não havia motivo justo para se realizar a separação da Igreja e criar a própria (seita), separada dela (E. Cp Parm 2,11,25). Santo Agostinho vê na Igreja de Roma aquela in qua semper apostolicae cathedrae viguit principatus [=aquela em que sempre esteve vigente o principado da cátedra apostólica] (Ep 43,7), afirmação que é um reconhecimento claro do primado da Igreja de Roma. Inclusive, atribui a máxima importância às sentenças de Roma em matéria de fé como, por exemplo, quando combate o Pelagianismo. Assim, quando Santo Agostinho disse que as chaves foram recebidas não apenas por Pedro, mas toda a Igreja, está defendendo não apenas o primado petrino, mas também de seus sucessores.
– Sicut enim quaedam dicuntur quae ad apostolum Petrum propriae pertinere videantur, nec tamen habent illustrem intellectum, nisi cum referuntur ad Ecclesiam, cuius ille agnoscitur in figura gestasse personam, propter primatum quem in discipulis habuit [=Algumas coisas – se diz – parecem pertencep propriamente ao apóstolo Pedro; porém (aqueles que assim pensam) não têm um entendimento iluminado, pois devem se referir à Igreja, da que se confessa representada pela figura de sua pessoa em razão do primado que teve entre os discípulos] (In Ps CVIII, t. XXXVII, col 1431).
Para Santo Agostinho, pela comunhão com a Sé Apostólica se obtém a adesão aos apóstolos e, assim, se está na verdadeira Igreja. É de se entender, portanto, que para ele o testemunho da Igreja do Ocidente é decisiva, já que no Ocidente se encontra a Sé do Príncipe dos Apóstolos:
– Puto tibi eam partem orbis sufficere debere, in qua primum apostolorum voluit Dominus gloriosissimo martyrio conorare. Cui Ecclesiae praesidentem beatum Innocentium si audire voluisses, iam tum periculosam iuventutem tuam pelagianis laqueis exuisses [=Creio que deve bastar para ti essa parte do Orbe, na qual o Senhor quis coroar o primeiro dos Apóstolos com um martírio gloriosíssimo. Se quisesses ouvir ao beato Inocêncio, que é quem preside a esta Igreja, livrarias a tua arriscada juventude das armadilhas pelagianas] (Contra Iulianum pelagianum, I, IV, 13 t. XLIV, col 648).
Adicionalmente vemos o bispo de Hipona submeter as suas obras ao papa Bonifácio, não para o instruir, mas para solicitar-lhe sua aprovação e censura caso necessário: Haec ergo quae… respondeo, ad tua potissimum dirigere sanctitatem, non tam discenda quam examinanda, et ubi forsitan aliquid displicuerit emendanda, constitui [=Estas coisas que… respondo, decidi dirigí-las de modo especial à sua santidade, não para instruí-lo, mas para que sejam examinadas e, onde talvez haja algo inconveniente, seja emendado] (Contra duas epist. Pelag. I, 1 t. XLIV, col 549-551).
Logo, é de se entender o porquê de Santo Agostinho também se referir ao bispo de Roma como “o Bispo da Sé Apóstolica”. No livro 6 de sua réplica a Juliano, rebate suas calúnias ao Papa Zózimo:
– “Por que, para persistir em teu erro perverso, acusas de prevaricação ao bispo da Sé Apostólica, Zózimo, de santa memória? Pois em nada se afastou da doutrina de seu predecessor, Inocêncio I, a quem temes pronunciar o nome. Preferes citar Zózimo porque em princípio agiu com certa benevolência em relação a Celéstio…” (Contra Iulianum pelagianum, VI, XII, 37).
Outro detalhe digno de menção constituiu para ele o fato ocorrido em 422, quando o papa Bonifácio I enviou três cartas respectivamente para os bispos de Tesália, da Ilíria e a Rufo, vigário do Pontífice e metropolita de Tesália. O motivo das cartas era a deposição ou exclusão do bispo Patros Perigênio, batizado e educado em Corinto. Os fiéis de Patros não aceitavam [a deposição], os coríntios reclamavam e os bispos de Tesália, por sua vez, tinham eleito Máximo como pastor da cidade. Nas três cartas se aprecia a consciência ou segurança do Vigário de Cristo como juiz ou instância última para os problemas da Igreja.
Inclusive, há teólogos protestantes que têm aceitado a posição de Santo Agostinho em favor do Primado Romano. O dr. Cesar Vidal Manzanares, em seu “Dicionário de Patrística”, exlica:
– “…Eclesiologicamente, Agostinho não é unívoco na utilização do termo ‘igreja’, fazendo referência tanto à comunidade dos fiéis, edificada sobre o fundamento apostólico, como ao conjunto dos predestinados que vivem na feliz imortalidade. Considera herege não ao que erra na fé (Ep. XLIII, I) mas ao que resiste à doutrina católica que lhe é manifestada” (De Bapt. XVI, 23), a qual encontra-se expressa no símbolo batismal, nos concílios (Ep. XLIV, I) e na Sé de Pedro, que sempre desfrutou do primado (Ep. XLIII, 7).
Uma curiosidade: abordando o tema em um foro católico, uma das participantes perguntou ao meu amigo protestante: “Porém… Leste os escritos de Santo Agostinho”; ao que respondeu: “… Não”. Tive que me conter, para não replicar: “Então por que tentas ensinar o pensamento agostiniano?”.
Santo Agostinho, a Igreja e a Tradição
Santo Agostinho adere plenamente à autoridade da fé, a qual é a autoridade Cristo (C. acad. 3,20,43) manifestada na Escritura, na Tradição e na Igreja (nada de ‘sola Scriptura’ e livre interpretação particular, ao estilo protestante!). Inclusive, chega a responder taxativamente aos maniqueus:
– “Eu não creria no Evangelho se a isso não me movesse a autoridade da Igreja Católica” (C. ep. Man. 5,6; cf. C. Faustum 28,2).
Para Santo Agostinho, é a Igreja que estabelece o cânon das Escrituras (De doct. Chr. 2,7,12), transmite a Tradição e interpreta a ambas (De Gen. litt. O . i. l. 1), dirime as controvérsias (De bapt. 2,4,5) e prescreve a regra de fé (De doct. Chr. 3,2,2). Afirma Santo Agostinho: “Permanecerei seguro na Igreja qualquer que seja a dificuldade que se apresente” (De bapt. 3,2,2), pois “Deus assentou a doutrina da verdade na cátedra da unidade” (Ep. 105,16).
Chega a responder aos pelagianos que deve ser tido por verdadeiro tudo o que a Tradição nos transmitiu, mesmo quando não for possível explicar (C. Iul. 6,5,11), pois os Padres “têm ensinado na Igreja aquilo que da Igreja aprenderam” (C. Iul. o. i. 1,117; cf. C. Iul. 2,10,34).
Santo Agostinho e a Virgem Maria
Santo Agostinho é outro firme defensor da Virgindade Perpétua de Maria. Afirma:
– “Virgem concebeu, virgem deu à luz e virgem permaneceu” (Serm. 51,18).
A Volusiano, quando este interpunha as dificuldades da razão, replica:
– “Concedamos que Deus possa fazer alguma coisa que devamos confessar sem indagar. Em tais coisas, toda a razão de fato é o poder de quem pode fazer” (Ep. 137,2,8).
Explica também que Maria emitiu o seu propósito de virgindade antes mesmo da Anunciação, dando início ao ideal cristão da virgindade (Serm. 51,26) e que, embora tenha sempre permanecido virgem, era verdadeiro o matrimônio e o afeto conjugal que a unia a José (De nupt. Et conc. 1,11,12).
Também é um expoente da maternidade divina e não duvida em afirmar que “Deus nasceu de uma mulher” (De Trin. 8,4,7).
– “Como é possível confessar na regra de fé que cremos no Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, se se nascido de Maria foi não o Filho de Deus, mas o Filho do homem? Que cristão nega que dessa mulher nasceu o Filho do homem? Mas, Deus feito homem e, portanto, o homem feito Deus” (Serm. 186,2).
Um episódio em seu conflito com o Pelagianismo deu margem para que Santo Agostinho expressasse a sua opinião acerca do estado imaculado da Virgem Maria. Juliano, discípulo de Pelágio, escreveu a Santo Agostinho: “Tu entregas Maria ao diago em razão do nascimento”; ou seja, se [Agostinho] afirmava que o pecado original era transmitido pela geração natural, Maria teria sido súdita do diabo, porque desta maneira descendeu e deste modo foi concebida por seus pais. A isto contestou Santo Agostinho:
– “Não confiamos Maria ao diabo pela condição de seu nascimento, mas que a condição do nascimento foi eliminada pela graça da regeneração” (C. Iul. O. i. 4,122).
Também declarou a este respeito, falando do pecado:
– “Exceção feita à santa Virgem Maria, a qual, pela honra devida ao Senhor, não tolero em absoluto que se faça menção ao se tratar de pecado” (De nat. et. gr. 36,42).
Assim, na concepção do Santo, Maria é modelo da Igreja, pelo esplendor de suas virtudes e pela graça de ser corporalmente o que a Igreja deve ser espiritualmente, isto é, virgem e mãe; virgem pela integridade da fé, mãe pelo fervor da caridade (Serm. 188,4; 191,4; 192,2).
Resta claro que os protestantes não concordariam com o pensamento do Santo em nenhum dos pontos anteriores…
Santo Agostinho, o Pecado Original e a Necessidade do Batismo
Santo Agostinho é um dos maiores defensores da doutrina do pecado original e da necessidade do batismo. Para ele, todos, inclusive os que nascem de um matrimônio de crentes, devem ser regenerados pelo batismo, ao qual chama “banho de regeneração”, já que diferentemente dos pecados pessoas, o pecado original se contrai do pais:
– “…declararei, segundo a fé católica, que qualquer que seja o seu nascimento, [as crianças] são inocentes no que diz respeito aos pecados pessoais e culpadas em razão do pecado original” (Contra Iulianum Pelagianum III, XXIII, 52).
Para o Santo, a heresia pelagiana é extremamente grave por negar às crianças o revestimento de Cristo.
– “Este nosso adversário, afastando-se da fé apostólica e católica com os pelagianos, não quer que os que nascem estejam sob o domínio do diabo, para que as crianças não sejam levadas a Cristo, arrancadas do poder das trevas e levadas para o Seu reino. E especialmente acusa a Igreja espalhada pelo mundo inteiro, onde todas as crianças durante o batismo recebem em todas as partes o rito da insuflação não por outra razão senão para lançar para fora delas o príncipe do mundo, sob o domínio necessariamente estão os vasos de ira desde que nascem de Adão e não renascem em Cristo; [renascidas em Cristo,] são transladadas para o Seu Reino, já que se tornam vasos de misericórdia pela graça” (Contra Iulianum Pelagianum II, XVIII, 33).
Imerso no pensamento da época, Santo Agostinho tem dificuldades para vislumbrar qual será o estado das crianças nascidas sem o batismo e, inclusive, declara-se ignorante da natureza da pena que poderá ocasionar-lhes este estado:
– “…Não digo que as crianças que morrem sem o batismo de Cristo serão castigadas com uma pena tão grande que mais lhes valeria não terem nascido, porque o Senhor não pronunciou estas palavras fazendo referência a qualquer pecador, mas dos criminosos e ímpios. Se a sentença que pronunciou sobre Sodoma não deve ser entendido somente em relação aos sodomitas, já que no dia do juízo alguns serão castigados mais gravemente que outros, quem pode duvidar que as crianças não batizadas, que morrem sem pecado pessoal algum, apenas com o [pecado] original, sofrerão a pena mais leve de todas? Ignoro qual será a natureza desta pena… porém, vós, que os considerais livres de toda culpa, não queirais pensar na classe de penas a que condenais [essas crianças], privando da vida e do reino de Deus a tantas imagens suas, separando-as de seus piedosos pais, a quem tão claramente exortais a procriar. É injusto que as crianças sofram castigo se não tiverem pecado; porém, se seu castigo é justo, é necessário reconhecer nelas a existência do pecado orginal” (Contra Iulianum Pelagianum III, XI, 44).
Em sua carta a São Jerônimo, escreveu:
– “Sou vítima de grandes angústias, acreditai, quando se toca neste ponto sobre o castigo das crianças e não sei absolutamente o que responder” (Ep. 166,6,16: PL 33,727).
A Igreja hoje reconhece a necessidade do batismo para a salvação, mas também reconhece que é possível haver salvação para as crianças não batizadas, por “caminhos desconhecidos por ela”.
Antes de comparar a posição de Santo Agostinho com o mundo protestante, temos que esclarecer que entre estes há duas posturas dissonantes. Os anabatistas (maioria atualmente), que negam a existência do pecado original e a necessidade do batismo das crianças e os de tendência luterana e calvinista, que confessam crer na doutrina do pecado original. Em suas confissões de fé – como a de Augsburgo de 1530 – se lêem condenações à posição anabatista e se professa a necessidade de batizar as crianças para que estas se salvem; a confissão de Westminster reconhece a necessidade do batismo e considera pecado grave o descuido e menosprezo do sacramento (no entanto, admite que é possível alguém obter a salvação sem que tenha sido batizado). Com efeito, pode-se dizer que a posição de Santo Agostinho é radicalmente oposta à majoritária tendência anabatista e eu me atreveria a afirmar que ele a combateria com o mesmo fervor e eficácia com que combateu ao Pelagianismo.
É curioso que tenham sido as denominações protestantes que ressuscitaram a heresia da negação do pecado original, pois isto implica na depreciação da necessidade da obra redentora de Cristo, explicada claramente pelo apóstolo São Paulo no capítulo 5 da epístola aos Romanos.
Conclusão
Santo Agostinho era protestante? Se sim, deve-se contestar as seguintes perguntas:
1. Os protestantes crêem que os bispos de Roma são os sucessores do apóstolo Pedro e a Sé Apostólica é a Igreja de Roma? Reconhecem as determinações do Papa em matéria de fé e se submetem à sua censura?
2. Os protestantes crêem que não é herege quem erra na fé, mas aquele que resiste à doutrina católica que lhe é manifestada?
3. Os protestantes opinam que não creriam no Evangelho se não lhes movesse a autoridade da Igreja Católica?
4. Os protestantes crêem que é a Igreja Católica quem transmite a Tradição e a interpreta, resolve as controvérsias e prescreve a regra de fé?
5. Os protestantes crêem que deve-se permanecer seguro na Igreja qualquer que seja a dificuldade que se lhes apresente?
6. Os protestantes crêem que Deus assentou a doutrina da verdade na cátedra da unidade?
7. Os protestantes crêem que Maria permaneceu Virgem por toda a vida?
8. Os protestantes crêem que Deus nasceu de uma mulher?
9. Os protestantes crêem que, no que tange a Maria, é intolerável que se fale de pecado?
10. Os protestantes crêem que o batismo é necessário para a salvação, removendo o pecado original e os demais pecados?
11. Os protestantes crêem que é imoral negar o batismo às criança, já que se lhes impede de revestirem-se de Cristo e nascer novamente?
Se a todas essas questões você puder responder com um “sim”, então Santo Agostinho era protestante (e se fosse assim, quem nos dera que tivéssemos mais protestantes assim!).
_________
BIBLIOGRAFIA:
1. BAC 422. Patrología III, Instituto Patriótico Augustinianum.
2. BAC 457. Obras Completas de San Agustín, XXXV.
3. Catecismo Oficial da Igreja Católica.
4. Diccionario de patrística, Cesar Vidal Manzanares.
5. Mariología, José C. R. García Paredes.
6. Early Church Fathers [CCEL].
- Fonte: Apologética Católica
- Tradução: Carlos Martins Nabeto