Sedevacantismo, uma ideia impossível

Por Alessandro Lima

Em um trabalho anterior [1] analisamos a possibilidade do sedevacantismo tendo em vista a constituição da Igreja como sociedade visível e perfeita. Concluímos naquela oportunidade, dentre outros motivos, que o sedevacantismo é uma ideia que não se sustenta pois se supostamente não existem cardeais na Igreja, esta não teria como suprir a suposta vacância da Sé Apostólica, o que estaria em contradição com o fato da Igreja ser uma sociedade perfeita, ou seja, que tem por si própria todos os meios para atingir o seu fim, o que incluiu a eleição de um pontífice. Mostramos também que os fatos numa sociedade visível como é a Igreja devem ser públicos e notórios, ou seja, de conhecimento de todo corpo social, o que inclui por óbvio a eleição ou de deposição de um Papa, fato que não pode estar restrito apenas ao parecer do simples fiel.

Neste trabalho analisaremos a questão sedevacantista por uma outra ótica, a questão da Jurisdição Eclesiástica.

1. A Exposição da Questão

Os sedevacantistas acreditam que a Sé Apostólica está vacante porque segundo eles, os Papas posteriores a Pio XII [2] foram hereges por confirmarem os ensinamentos do Concílio Vaticano II e consequentemente perderam ipso facto o seu pontificado. Acreditam que este modo de pensar está fundamentado no parecer [3] do Santo Doutor São Roberto Belarmino, quando este escreve sobre a hipótese teológica de um Papa ser herege, e em caso afirmativo o que aconteceria com o seu pontificado. Não nos ocuparemos aqui com a refutação desta questão em específico. Publicamos recentemente um trabalho no qual acreditamos que o faz de forma cirúrgica [4].

Supondo que os sedevacantistas estão certos, a consequência lógica é a de que a Jurisdição Eclesiástica, o Poder das Chaves que a Igreja possui desapareceu, pois a jurisdição dos Bispos é dada através do Papa. Se não há papas legítimos depois de Pio XII, não há Bispos com jurisdição na Igreja [5].

Poderia a Igreja existir nesta situação?

2. A Jurisdição Eclesiástica segundo a Summa Theologica

2.1 O Poder das Chaves

No suplemento da Summa Theologica de Santo Tomás o Poder das Chaves que a Igreja possui e que foi dado por Nosso Senhor Jesus Cristo é abordado na Questão 17, grifos meus:

“Ora, o reino dos céus nos foi fechado pelo pecado, tanto quanto à mácula como quanto ao reato da pena. Por isso, o poder que remove este obstáculo se chama poder das chaves. Ora, esse poder o tem, pela sua autoridade, a Divina Trindade; onde o dizem certos [autores], que tem a chave da autoridade. Mas, Cristo homem, teve o poder de remover o referido obstáculo pelo mérito da paixão, poder também chamado o de abrir a porta. Por isso certos [autores] dizem que ele tem as chaves da excelência. E como os lados de Cristo morto na cruz, manaram os sacramentos, pelos quais foi a Igreja instituída, por isso nos sacramentos da Igreja permanece a eficácia da paixão. Por onde, foi conferido também aos ministros da Igreja instituída, por isso nos sacramentos um certo poder de remover o referido obstáculo, não por virtude própria, mas por virtude divina e da paixão de Cristo. E esse poder se chama metaforicamente poder das chaves da Igreja, que é o ministério das chaves” (Suma Th. Supl, q. 17, art1, solução).

“Mas, a chave do Reino [dos céus] é o poder de perdoar também o reato da pena, que nos impede de aí entrar” (Summa Th, Supl. q. 17, art 1, resp.3a).

Até aqui Santo Tomás ensina que possui a Igreja o poder das chaves, “poder de remover o referido obstáculo” que impede alguém de entrar no Reino dos Céus. Este poder ela tem, “não por virtude própria, mas por virtude divina e da paixão de Cristo”. Disto segue que quis Deus que o homem entrasse no céu através da Igreja que detém por Sua vontade o poder das chaves.

“Em todos os agentes ordenados, o último fim é o do agente principal, não o do agente instrumental. Ora, o agente principal da salvação do homem é Deus. Logo, a ele pertence admitir no Reino [dos céus], que é o fim último [do homem]: e não a quem tem o poder das chaves, que é como o instrumento ou ministro.” (Summa Th., Supl. q. 17, art. 2, n.5).

“Ora, o poder das chaves, que nós [os sacerdotes] temos, assim como o de conferir os outros sacramentos é um poder instrumental. Mas Cristo o tem como agente principal da nossa salvação, pela sua autoridade, como Deus; e pelo seu mérito como homem.” (Summa Th., Supl. q. 17, art. 2, solução).

O Doutor Angélico ensina que este poder é instrumental, isto é, os sacerdotes da Igreja agem como instrumentos de Deus que é o agente principal do poder das chaves.

2.3 Quem na Igreja pode exercer o Poder das Chaves

Mais adiante Nosso Doutor Comum nos ensina quem pode exercer o Poder das Chaves na Igreja, grifos meus:

“Juiz eclesiástico só é considerado aquele que tem jurisdição, e esta não é dada simultaneamente com a ordem” (Summa Th., Supl. q. 17, art 2, n.2)

Santo Tomás refere-se ao Juiz eclesiástico porque o poder das chaves é um poder judicial: condenar ou absolver. Embora o sacerdote quando é ordenado receba o poder das chaves em potência, ou seja, está apto a receber a jurisdição para que de fato seja juíz, mas ainda não a tem, grifos meus:

“Todo poder espiritual é dado junto com alguma consagração. Por isso o poder das chaves é dado em conjunto com a ordem. Mas a execução do poder das chaves precisa da matéria devida, que é o povo sujeito à jurisdição. Por isso, antes de ter jurisdição, o sacerdote tem o poder das chaves, embora não tenha em ato. E como esse poder se define pelo seu ato, por isso na definição dele se introduz um elemento pertinente à jurisdição.” (Summa Th. Supl, q.17, a.2, r.2)

“Uma potência se ordena a dois fins, dos quais um é causa do outro; assim o calor do fogo se ordena a aquecer e a dissolver. E como toda graça e todo perdão, num corpo místico, vêm da sua cabeça, pelo mesmo poder essencial o sacerdote pode consagrar, absolver e ligar, desde que tenha jurisdição; […]” (Summa Th. Supl, q.17, a.2, r.1)

O Aquinate ensina que embora o sacerdote receba com a ordem o poder das chaves, o recebe apenas potencialmente, isto é, com capacidades para levar este poder ao seu ato, o que é feito quando ele recebe a jurisdição. Um litro de água dentro de uma chaleira sobre fogo quente aquece até atingir a ebulição. Mas a água só esquenta porque ela tem potência para o calor, caso contrário não esquentaria. Em outras palavras, o que Nosso Doutor Comum explica é que, o sacerdote quando recebe a ordem é como se fosse uma água fria, mas que tem potência para ficar quente. Quando este recebe a jurisdição, a potência do poder das chaves é elevada a ato, ou seja, a capacidade de aquecer da sua água (poder das chaves) é levada a ato (água quente).

Outra coisa a qual devemos prestar a atenção é que o poder de jurisdição (poder das chaves em ato) “num corpo místico [como é a Igreja], vêm da sua cabeça”.

A cabeça em absoluto da Igreja é Cristo. Com efeito, foi Ele quem deu jurisdição aos apóstolos após a Sua ressurreição (cf. Mt 28,19-20; Jo 20,22-23), mostrando que são os Bispos os detentores ordinários da jurisdição eclesiástica [6].

O Pontífice Romano é a cabeça participada da Igreja, a cabeça visível e é por isso que toda jurisdição eclesiástica depende dele, isto é, os Bispos recebem a sua jurisdição do Papa. De forma análoga, o Bispo é a cabeça da sua igreja local e por este motivo todos os presbíteros que colaboram como ele na administração sagrada, recebem dele a sua jurisdição.

Santo Tomás vai aprofundar a questão da Jurisdição Eclesiástica nas questões 18 a 24 da Summa Th. Suplementos. A Enciclopédia Católica resumiu bem essas questões todas e vamos apreciar adiante.

3. A Jurisdição Eclesiástica segundo a Enciclopédia Católica

Assim explica a Enciclopédia Católica sobre a Jurisdição Eclesiástica [7], grifos meus:

A Igreja fundada por Cristo para a salvação dos homens precisa, como toda sociedade, de um poder regulador (a autoridade da Igreja). Este poder que Cristo concedeu a ela. Diretamente antes de Sua Ascensão, Ele deu aos Apóstolos coletivamente a missão, e com ela, a autoridade, para proclamar Sua doutrina a todas as nações, batizá-las e ensiná-las a observar todas as coisas que Ele havia ordenado (Mateus 28,18). 

Pode-se notar aqui que o Decreto “Lamentabili sane”, de 3 de julho de 1907, rejeita (n. 52) a doutrina de que Cristo não desejava fundar uma Igreja permanente e imutável dotada de autoridade. É costume falar de um múnus triplo da Igreja: o múnus de ensinar (o cargo profético), o múnus sacerdotal e o múnus pastoral (ofício de governo), também, portanto, da autoridade tripla da Igreja, ou seja, a autoridade de ensino, a autoridade ministerial e a autoridade legal ou de governo. 

[…]

Por autoridade legal, que é conferida à Igreja (missio canonica, missão canônica), entende-se a autoridade para guiar e governar a Igreja de Deus. A jurisdição, na medida em que abrange as relações do homem com Deus, é chamada de jurisdição do fórum interno ou jurisdição do fórum do Céu (jurisdictio poli). Isso novamente é sacramental ou penitencial, na medida em que é usado no Sacramento da Penitência, ou extra-sacramental, por exemplo, na concessão de dispensas, votos privados. Jurisdição, na medida em que regula as relações eclesiásticas externas, é chamada de jurisdição do fórum externo, ou brevemente jurisdictio fori. Esta jurisdição, o poder real de decisão é legislativo, judicial ou coativo.

A jurisdição pode ser possuída em graus variados. Também pode ser realizada para ambos os fóruns, ou apenas para o fórum interno, por exemplo, pelo pároco. A jurisdição pode ser subdividida em: jurisdição ordinária, quase ordinária e delegada. A jurisdição ordinária é aquela que está permanentemente vinculada, por lei divina ou humana, a um cargo eclesiástico permanente. Seu possuidor é chamado de juiz comum. Pela lei divina, o papa tem jurisdição comum para toda a Igreja e um bispo para sua diocese. Pelo direito eclesiástico, essa jurisdição é possuída pelos cardeais, funcionários da Cúria e congregações de cardeais, patriarcas, primazes, metropolitas, arcebispos, os praelati nullius e prelados com jurisdição quase episcopal, os capítulos de ordens ou, respectivamente, os chefes de ordens, capítulos da catedral em referência aos seus próprios assuntos, o arquidiaconato na Idade Média e os sacerdotes paroquiais no fórum interno. Se, no entanto, a jurisdição estiver permanentemente conectada a um ofício, mas o próprio ofício for considerado quase ordinário, chama-se jurisdictio vicaria. Essa forma de jurisdição é possuída, por exemplo, por um vigário geral. O exercício temporário da jurisdição ordinária e quase-ordinária pode ser concedido, em graus variados, a outro como representante, sem conferir a ele um cargo propriamente dito. Nesta forma transitória, a jurisdição é chamada de delegada ou extraordinária e, em relação a ela, o direito canônico, seguindo o direito romano, desenvolveu disposições exaustivas. Esse desenvolvimento começou quando os papas, especialmente desde Alexandre III (1159-81), se viram obrigados, pelo enorme volume de negócios legais que lhes veio de todos os lados como os “judices ordinarii omnium” a entregar, com instrução adequada, um grande número de casos a terceiros para decisão, especialmente em questões de jurisdição contenciosa.”

Como se pode ver nos textos e explicações dados até aqui, a Jurisdição Eclesiástica não é algo acessório à Igreja, mas extremamente necessário, pois é um poder dado à Igreja pelo qual Deus governa seu rebanho, sendo Ele o agente principal e a Igreja o agente instrumental. Sobre necessidade da existência da Jurisdição Eclesiástica na Igreja (desculpem-me o pleonasmo), ainda lemos na Enciclopédia Católica, grifos meus:

“A Igreja tem o direito, como uma sociedade perfeita e independente, que possui todos os meios para alcançar seu fim, de decidir de acordo com suas leis disputas decorrentes de seus assuntos internos, especialmente quanto aos direitos eclesiásticos de seus membros, também de realizar sua decisão, se necessário, por meios adequados de compulsão, jurisdição contenciosa ou civil. Tem, portanto, o direito de admoestar ou alertar seus membros, eclesiásticos ou leigos, que não se conformaram com suas leis e também, se necessário, puni-los por meios físicos, ou seja, jurisdição coercitiva”.

Aqui há um importante elemento que tem relação com o que abordamos em nosso artigo anterior: a Igreja ser uma sociedade perfeita. Notem, como ensina a Enciclopédia Católica, sendo a Igreja uma sociedade perfeita, ela também deve possuir os meios “de decidir de acordo com as suas leis disputas decorrentes de seus assuntos internos, especialmente quanto aos direitos eclesiásticos de seus membros” etc. Ou seja, se o sedevacantismo está correto, a Igreja não tem os meios para instituir tribunais eclesiásticos para cuidar de seus assuntos internos ou externos!

Ora, isso decorre do fato que a forma (o que dá a essência do ser) de toda sociedade é a Autoridade. Uma sociedade em que seus membros não estão submetidos a uma hierarquia onde uns governam outros e estão todos submetidos a algum poder judicial, simplesmente não existe. 

4. A Jurisdição Eclesiástica segundo o Catecismo Católico Popular

O Catecismo Católico Popular [8], consagrada fonte tradicional de ensino da Doutrina Católica também trata da Jurisdição Eclesiástica e escolhemos destacar no presente trabalho algumas de suas apreciações, grifos meus:

“4. O Papa tem no episcopado um primado de honra e a jurisdição suprema sobre toda a Igreja (Con. Vat. 4. X, 83) [p. 318]”.

“Os bispos ocupam o lugar dos Apóstolos (Conc. Vat.). Os bispos estão unidos aos apóstolos pela sua ordenação como o último anel de uma cadeia está unido ao primeiro. – Os bispos não se distinguem dos apóstolos senão pelos limites da sua jurisdição: estes tinham como campo de ação toda a terra; aqueles não têm senão a sua diocese: além disso, os apóstolos estavam revestidos de uma infalibilidade pessoal que os bispos não têm. Isto explica-se pela missão extraordinária dos apóstolos que careciam de poderes e dons extraordinários, como o dom dos milagres, das línguas e a infalibilidade.” [p. 324].

“Os apóstolos Já no seu tempo marcaram aos bispos determinadas regiões. Creta por exemplo a Tito, como diz S. Paulo (Tit. 1, 5). A região confiada a um bispo chama-se diocese. O bispo exerce a sua autoridade pastoral e doutrinal, aceitando e educando candidatos ao sacerdócio, constituindo e conferindo cargos eclesiásticos, dando jurisdição aos confessores e a missão aos catequistas (eclesiásticos ou leigos), aprovando livros, promulgando as pastorais da quaresma, etc.” [p. 324]

“Os bispos têm uma jurisdição, uma autoridade própria na Igreja; são verdadeiramente pastores do rebanho que lhes foi confiado (Conc. Vat. IV, 3), porque são ‘constituídos pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus’ (Act. Ap. XX, 28). […] Por terem a jurisdição, a autoridade ordinária imediata, são também chamados Ordinários.” [p. 325]

O papa confere aos bispos o poder de jurisdição; ele é a raiz de que os ramos tiram a seiva. Nenhum bispo pode portanto exercer a sua autoridade antes de ter recebido do papa a instituição canónica.” [p. 325]

“I. No sacramento da Penitência, o cristão arrependido confessa os seus pecados a um padre a quem o bispo da respectiva diocese tenha concedido jurisdição e este fazendo as vezes de Deus e perdoa-lhe os pecados pela absolvição.” (Vol II, p. 157).

5. A Jurisdição Eclesiástica no ensinamento dos Papas

Os Papas em algumas oportunidades também ensinaram sobre a jurisdição eclesiástica, grifos nossos:

“O Papa, como dever de seu ofício, nomeia bispos para cada uma das igrejas, e nenhuma consagração legítima pode ocorrer em toda a Igreja Católica sem a ordem da Sé Apostólica.” (Papa Pio VI, Charitas, 13 de abril de 1791, no. 18).

“O Poder de jurisdição, que é conferido diretamente ao Sumo Pontífice por direito divino, deriva aos Bispos pelo mesmo direito, mas somente mediante o Sucessor de São Pedro, ao qual estão constantemente submetidos e ligados pelo obséquio da obediência e pelo vínculo da unidade, não somente os simples fiéis, mas também todos os Bispos.” (Papa Pio XII, Ad Sinarum gentem).

6. Pode a Igreja existir sem o Poder de Jurisdição?

O que nos interessa saber sobre a Jurisdição Eclesiástica para o nosso tema é:

  1. É um poder judicial, próprio do múnus de governar da Igreja;
  2. Esse poder é transmitido ordinariamente pela cabeça da Igreja (Cristo absolutamente e o Papa instrumentalmente);
  3. Os Bispos recebem a sua jurisdição do Papa;
  4. Os Bispos como cabeças de suas igrejas locais podem delegar a jurisdição aos sacerdotes a ele sujeitos;
  5. Sem a jurisdição eclesiástica não há o perdão dos pecados;

Tudo isso que expomos até aqui, pasmem, é de conhecimento dos sedevacantistas mais experientes. A pergunta é: como eles conseguem conceber a existência da Igreja sem o seu poder de jurisdição? Dissemos anteriormente que uma sociedade sem autoridade é um corpo sem alma.

Pois se o sedevacantismo estivesse correto, isso implicaria no fato de que a Jurisdição na Igreja acabou. Pois se o último Papa foi Pio XII, os bispos por ele indicados já são falecidos, logo não há na face da terra desde então um só pecado perdoado! Nenhum casamento possui validade canônica, não há juízes para cuidar dos casos de foro interno e externo, e o efeito dominó não pára por aí…

Se o poder judicial não pode faltar ao Estado (que também é uma sociedade perfeita, porém de outra natureza), como ele poderia faltar à Igreja?

6.1 A Jurisdição de Suplência

Todos aqueles que não estão ligados à hierarquia da “Igreja oficial”  (existe outra?) procuram sair deste problema pela tangente da jurisdição de suplência. 

A jurisdição de suplência é quando o Poder das Chaves pode ser utilizado fora das situações corriqueiras, ordinárias ou normais. Por exemplo, um padre sem jurisdição (excomungado, por exemplo) ordinária pode ouvir e absolver os pecados de um fiel católico em perigo de morte (periculum mortis), ou em um país onde não há padres, por exemplo. Neste exemplo a jurisdição é suprida pela Igreja. 

Os sedevacantistas alegam que seus bispos e padres (que não possuem jurisdição ordinária como eles mesmo sabem), possuem jurisdição de suplência, ou seja, que a Igreja supostamente supre a jurisdição de seus clérigos.

As condições para o uso da jurisdição de suplência foram previstas no Código de Direito Canônico de 1917, como também no novo de 1983 (que os sedevacantistas não reconhecem), grifos nossos:

“Em caso de erro comum ou dúvida positiva e provável, tanto da lei quanto de fato, a igreja supre a jurisdição tanto no foro externo quanto interno” (can 209, CIC 1917). Ver também no novo Código de 1983 no. 144.

Outras razões para a jurisdição de suplência: a) desconhecimento do fato de que a jurisdição havia expirado: CIC 1917, n. 207. b) perigo de morte: CIC 1917, n. 882 e n. 2252 (Ver CIC 1983 n. 976 e n. 1357).

Com base nisto, podemos afirmar que a Igreja supre a jurisdição de um clérigo que não a tenha, nas seguintes situações: aos sacerdotes que não têm a faculdade comum de confissão em apenas três cenários: (1) perigo de morte; (2) erro comum; e, (3) dúvida positiva e provável. Não há uma quarta categoria de um “estado de necessidade” generalizado e contínuo que desencadeie a jurisdição de suplência, como veremos adiante.

Padre Miaskewicz, J.C.L, uma autoridade em direito canônico, escreveu uma extensa dissertação sobre o cânone 209 em 1940 [9], destaca o quão restritivas são as regras da Igreja no fornecimento de jurisdição de suplência, grifos meus: 

“[Na suplência de jurisdição …] a Igreja delimita cuidadosamente a extensão da concessão e as condições da sua eficácia. Fora destes limites, não existe nenhum título de  jurisdição”. E ainda: “não se segue que a Igreja forneça em todos os casos em que ela pode fornecer. A Igreja fornece exclusivamente nos casos em que ela expressamente, ou pelo menos tacitamente, manifesta sua vontade de fornecer.”. 

Diante do exposto, perceba o caro leitor que:

  1. A concessão de jurisdição de suplência é um ato de direito eclesiástico e não de direito divino;
  2. O Direito Eclesiástico “delimita cuidadosamente a extensão da concessão e as condições da sua eficácia”;

Os bispos sedevacantistas não podem ouvir confissões e absolver ou governar os sedevacantistas porque a jurisdição de suplência não prevê o caso de sagração episcopal, que como ensinou Pio XII é de direito divino, ou seja, o Bispo só tem jurisdição se esta for dada pelo Papa, caso contrário não a tem, nem mesmo jurisdição de suplência, pois a Igreja não definiu esta circunstância em seu direito.

Os clérigos sedevacantistas também não podem ouvir confissões e absolver, pois as circunstâncias nas quais os incautos que os procuram não são previstas no direito eclesiástico para a suplência de jurisdição, visto que poderiam se confessar com padres com jurisdição ordinária.

Pelo mesmo raciocínio (a jurisdição de suplência é um dispositivo de direito eclesiástico e não de direito divino), a Igreja não supre situações como o genérico “estado de necessidade”, não estão previstas em seu ordenamento jurídico.

Os sedevacantistas reinterpretam o cânon 209 (CIC 1917) reinventando a tradição canônica em total desacordo com a jurisprudência tradicional.

Dr. Arnaldo da Silveira, faz uma observação muito interessante para o nosso tema:

“Normalmente se diz, que em certos casos previstos pelo Direito, a jurisdição de quem não a tem é ‘suprida’ pelo Papa ou pela Igreja. Na hipótese de erro comum, por exemplo, a Igreja ‘supre’ a jurisdição inexistente, conforme dispõe o cânon 209. – Entretanto segundo ensinam os autores, a jurisdição ‘suprida’ só existe como ato, e não como hábito (Lehmkuhl, Theologia Moralis, vol. II, p. 281, n. 387; Wernz-Vidal, Ius Canonicum, tom. II p. 439; Vermeerch-Creusen, Epit. Iuris Can., tom. I p. 278)” [10]

Isso significa dizer que a jurisdição de suplência não poderia se tornar o uso habitual [hábito], comum da jurisdição eclesiástica, mas que só existe e pode ser usada de forma pontual [ato], em situações específicas, como já indicamos. Caso contrário, é como se os fiéis católicos só pudessem receber validamente os sacramentos em perigo de morte, por exemplo.

Uma coisa é a lastimosa situação atual da Igreja, gerada por uma crise de fé e litúrgica. Outra coisa é um falso funcionamento da constituição mesma da Igreja. Apesar da crise atual ser sem precedentes, o seu gênero de problemas não é novo na história. Já o segundo caso, é conceber que a Igreja deixou de funcionar como Deus a fundou, o que é uma ideia totalmente absurda. Uma coisa é um relógio que está funcionando mal, mas ainda possui as engrenagens conforme projetou o fabricante. Outra coisa é conceber que as engrenagens que o fabricante concebeu são outras e criar a ilusão de reinventá-las de modo totalmente diverso. Este último caso é o que fazem os sedevacantistas.

Para saber mais sobre a usurpação indevida de clérigos sedevacantistas da jurisdição eclesiástica, recomendamos a leitura de um trabalho de John Salsa [11], que desenvolveu bem esta questão.

Em tempo, há também a questão das indulgências que só podem ser lucradas por fiéis que a receberam [conforme as condições determinadas pela Igreja] de um ministro com jurisdição ordinária, grifos nossos:

“5. Os detentores do poder de conceder as indulgências. – A concessão das indulgências é um ato de jurisdição, não um ato sacramental. Esta é a razão porque os detetores do poder de conceder indulgências são os possuidores do poder jurisdicional e não os que têm o poder de Ordem. Em plena conformidade com esse princípio, o Papa tem o poder absoluto sobre as indulgências porque tem a suprema jurisdição; o bispo, ao invés, goza de um poder limitado, justamente porque possui apenas uma jurisdição limitada.” [12]

Vimos no item 6.2 que o caso das indulgências não está previsto entre os casos de jurisdição de suplência, logo, se o sedevacantismo for correto, nenhum fiel católico da face da terra poderá ter esse socorro dos bens da Igreja. Dá para acreditar?

A forma como os sedevacantistas concebem o uso da jurisdição eclesiástica vai contra a eclesiologia da Igreja.

6.2 À Igreja não pode faltar a Jurisdição ordinária

O grande teólogo tomista brasileiro, Pe. Maurílio Texeira-Leite Penido, publicou na década de 1940 uma importante obra intitulada “O Corpo Místico” [15], onde procura explicar aos simples fiéis o conteúdo da encíclica Mysticis Corporis [16] do Papa Pio XII.

Sobre a visibilidade da Igreja, ele ensina que “também é visível a existência dum corpo social dotado de instituições jurídicas, morais, litúrgicas, denominado ‘Igreja Católica’”, [p. 170] e “o poder espiritual e invisível de reger as almas patenteia-se externamente pelas instituições jurídico-sociais” [p. 171], grifos nossos.

O que o grande tomista de saudosa memória está ensinando é que as instituições jurídicas da Igreja (tribunais eclesiásticos, tribunal da rota romana etc) são elementos constituintes da visibilidade da Igreja, logo não lhes pode faltar!

Isso corrobora com o que encontramos na Enciclopédia Católica (ver item 3). Ora, as “instituições jurídico-sociais” da Igreja não são supérfluas, existem porque são necessárias à vida do organismo social eclesiástico. Aliás já estavam presentes mesmo no Antigo Testamento (cf. 1Sm 8, 5; 2Sm 8, 5; 2Sm 8, 15; 2Sm 12, 1-6; 14, 4-11; 1Rs 3, 9.16-28; 2Rs 8, 3).

Ou seja, se o sedevacantismo fosse verdadeiro, a Igreja estaria reduzida a algo pior que o Antigo Israel. O que é impossível!

7. Razões do Sedevacantismo ter nascido sedeprivacionista

A vertente do sedevacantismo mais difundida e conhecida é aquela que acredita que um Papa se cair no erro da heresia, perde ipso facto o seu pontificado, deixando a Sé Apostólica vacante. Esta vertente é baseada numa má interpretação do comentário de São Roberto Belarmino sobre a quinta opinião que ele discute em sua obra De Romano Pontifice [12]. Por esta razão é também conhecida como sedevacantismo belarmino.

Porém esta vertente não é a original. O sedevacantismo original é também conhecido como sedeprivacionismo. Ou seja, a Sé Apostólica não está vacante, mas privada da forma, da autoridade do pontificado papal.

O sedeprivacionismo, também conhecido como Tese de Cacissiacum [13], foi idealizado por Mons. Guérard Des Lauriers, um renomado teólogo dominicano que prestou grandes serviços à Santa Igreja, em especial no pontificado de Pio XII.

Diante da perplexidade do que ocorreu após a realização do Concílio Vaticano II, Mons. Guérard procurou na teologia e filosofia da Igreja algo que pudesse dar uma resposta ao que estava ocorrendo.

Como grande tomista que era, sabia que qualquer explicação sobre a Crise não poderia ignorar pelo menos 3 pilares:

  1. A Igreja é uma sociedade visível. Logo a eleição ou remoção de um Papa da Sé Apostólica é um ato público e notório, de conhecimento de todo corpo social, isto é, todos os fiéis. Consequentemente, os eleitores do Papa não pode faltar à Igreja, que são os cardeais;
  2. A Igreja é uma sociedade perfeita. Logo, ela possui todos os meios para cumprir a sua missão, o que inclui a eleição de novo papa;
  3. A jurisdição eclesiástica emana do Papa e não pode faltar à Igreja, pois a forma de toda sociedade é sua autoridade, o que inclui fundamentalmente o poder judicial (poder das chaves);

Aos três itens acima, acrescentamos que Mon. Guérard não interpretava a quinta opinião comentada por São Roberto, como se o Papa perdesse ipso facto o pontificado caso fosse herege.  Quem o diz é o conhecido sedevacantista John Daly [14]. Com efeito, Mons. Guérard sabia que a Igreja é uma sociedade hierárquica e o parecer se há ou não um pontífice sentado no Trono de São Pedro, cabe à sua hierarquia e não a qualquer fiel no fundo de seu quintal…

Toda explicação católica para a crise não pode deixar de considerar todos os pontos levantados acima, pois tratam da constituição mesma da Santa Igreja. E então no que pensou Mons. Guérard?

Ele inventou que quando a Igreja indicasse o eleito ao papado (matéria), Cristo poderia não dar Autoridade Pontifícia (forma), caso o eleito fosse um herege. Neste caso, o novo Papa não seria papa formal, mas apenas material. Ele seria capaz de eleger cardeais, criar leis e outros atos. Porém, não conseguiria agir com a autoridade Papal, por defeito de forma, seria incapaz de definir um dogma, por exemplo.

Este é um parecer sem precedentes na teologia, como tantas coisas próprias do sedevacantismo. Porém, ele procura respeitar os elementos constitutivos da Igreja, mas errou quanto aos elementos constitutivos do papado, pois um ente é constituído de matéria e forma, não pode existir apenas materialmente. Os atos podem ser desprovidos de forma (como o é a heresia, tanto que existe a heresia material e formal), não entes. O sedevacantismo falsamente belarmino, que recusou a Tese de Cacissiacum, conseguiu piorar muito o que já nasceu ruim.

A Tese de Cacissiacum foi concebida por um teólogo preparado, um tomista de grande renome, que também errou. Já o sedevacantismo falsamente belarmino é fruto de aventureiros que mal sabem compreender a teologia católica.

Conclusão

Deus concebeu a Igreja como uma sociedade porque concebeu o homem como um animal social. O homem necessita de viver com outros homens para que juntos possam colaborar para o bem comum. No caso da Igreja, este bem comum é a salvação de todos.

O Doutor Angélico ensinou isso:

“E o mesmo deve passar no governo da Igreja militante, de modo que a certos caiba governar indistintamente a todos; e abaixo desses exerçam outros um poder distinto sobre diversos.” (Summa Th., Supl. Q.20, a.1).

Deus concebeu a vida da Igreja militante como uma vida social, onde esta Igreja constitui uma sociedade e logo não lhe pode faltar o poder judicial que é um dos elementos constitutivos da sua visiblidade, muito menos os meios de remover o pecado (poder das chaves, que só se pode usar com jurisdição ordinária e ou suprida nas situações em que a Igreja a supre e que estão definidas em seu ordenamento jurídico).

A jurisdição de suplência não pode ser o hábito da Igreja, mas apenas ato, como já indicamos, do contrário significaria que a constituição da Igreja entrou em desordem, o que seria impossível, pois é a Igreja o Corpo Místico do Salvador.

Logo, o Sedevacantismo não passa de um erro eclesiológico moderno, uma ideia impossivel.

Notas

[1] LIMA, Alessandro. Sedevacantismo, uma ideia caduca. Site Veritatis Splendor: https://www.veritatis.com.br/sedevacantismo-uma-ideia-caduca/

[2] No entanto há sedevacantistas que consideram João XXIII o último papa da Igreja Católica.

[3] O que expôs São Roberto Belarmino sobre a questão pode ser encontrado em português nas obras abaixo:

BELARMINO, São Roberto. Disputas sobre a Fé cristã: Sobre o Sumo Pontífice. Tradução Rafael Marcos Formolo. – Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2021. Livro II, Cap XXX.

SILVEIRA, Arnaldo Vidigal Xavier da. A Hipótese Teológica de um Papa Herege. – Brasília: Edições Veritatis Splendor, 2022.

[4] SISCOE-SALSA. O Verdadeiro significado do Ipso Facto de São Roberto Belarmino sobre a Hipótese de um Papa Herético perder o seu pontificado. Tradução e adaptação: Alessandro Lima. Site Veritatis Splendor: https://www.veritatis.com.br/o-verdadeiro-significado-do-ipso-facto-de-sao-roberto-sao-roberto-belarmino-sobre-a-hipotese-de-um-papa-heretico-perder-o-seu-pontificado/

[5] A Tese de Cassiciacum ou Sedeprivacionismo é uma variação do sedevacantismo que tenta dar uma solução para esta questão. Trataremos desta tese em um trabalho futuro.

[6] Desenvolvo este assunto uma controvérsia sobre se Judas Iscariotes por ter sido apóstolo foi também bispo. 

LIMA, Alessandro. O Apóstolo Judas Iscariotes foi bispo? Site Veritatis Splendor: https://www.veritatis.com.br/o-apostolo-judas-iscariotes-foi-bispo/

[7] O texto citado é uma tradução livre que fiz. O texto original disponível em https://www.newadvent.org/cathen/08567a.htm

[8] Catecismo Católico Popular Volume I e II.

[9]  MIASKIEWICZ, Francis Sigismund. Supplied Jurisdiction According to Canon 209. Disponível em:

https://isidore.co/misc/Res%20pro%20Deo/Supplied%20Jurisdiction/Miaskiewicz–Supplied%20Jurisdiction%20according%20to%20Canon%20209.pdf

[10] SILVEIRA, Arnaldo Vidigal Xavier da. A hipótese teológica de um papa herege. 2a edição. – Brasília: Edições Veritatis Splendor, 2022. Pg 100 nota 18.

[11] SALSA, John. Against Sedevacantism: Errors Concerning Supplied Jurisdiction. Disponível em

https://onepeterfive.com/against-sedevacantism-errors-supplied-jurisdiction/

[12] BARTMANN, Bernardo. Teologia Dogmática. Vol. III – Sacramentos  – Escatologia. Tradução: Pe. Vicente Pedroso. São Paulo: Edições Paulinas, 1962. Pg 337.

[12] SALSA, John; SISCOE Robert. O Verdadeiro Significado do Ipso Facto de São Roberto São Roberto Belarmino sobre a Hipótese de um Papa Herético perder o seu Pontificado. Tradução e adaptação Alessandro Lima. Site Veritatis Splendor: https://www.veritatis.com.br/o-verdadeiro-significado-do-ipso-facto-de-sao-roberto-sao-roberto-belarmino-sobre-a-hipotese-de-um-papa-heretico-perder-o-seu-pontificado/

[13] https://www.veritasetsapientia.org/post/a-tese-de-cassiciacum-uma-breve-exposi%C3%A7%C3%A3o

[14] DALY, John. Alguns comentários à tese do Pe. Guérard de Lauriers, O.P. Blog Acies Ordinata. Tradução de Felipe Coelho, 17 de junho de 2009. Item 5.

[15] PENIDO, Pe. Murílio Texeira-Leite Penido. O Corpo Místico. Petrópolis: Editora Vozes, 1944.

[16] Pio XII, Papa. Mysticis Corporis. Site Vaticano. Em português em https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-corporis-christi.html

 

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