Em síntese: O livro de Paul Salaün é uma coletânea de depoimentos de pessoas infelizes em seu casamento, mas fiéis ao mesmo, apesar da separação e do divórcio civil. O próprio autor do livro propõe seu testemunho pessoal e se estende em considerações sobre as razões alegadas (sem consistência) para fundamentar nova união de pessoas divorciadas. Percebe-se, através de suas páginas, o caráter de um cristão fiel, corajoso e humilde, acompanhado de muitos homens e mulheres que compartilham seu modo de ver.
A leitura de tais depoimentos, como também de cada página de Paul Salaün, é rica em sugestões e abre ao leitor horizontes ignorados, pois o que mais salta aos olhos de quem acompanha a sociedade de hoje, são sombras e lacunas; é realmente gratificante averiguar que, ao lado delas, existem focos de verdadeiro amor, fiel até a morte, amor, porém, que não faz o alarde que o mal costuma fazer.
Paul Salaün é um fiel católico leigo francês, que fez a experiência de um casamento infeliz, o qual acabou em divórcio civil no ano de 1979, nove anos após contraído; tinha então trinta anos de idade. O sofrimento foi grande, mas Paul encontrou em Deus a força para manter fidelidade ao vínculo sacramental, que o divórcio civil não rompeu. Foi procurar reconforto na Abadia de Timadeuc (Morbihan), onde o pe. Guilherme lhe assistiu valiosamente a ponto de chegarem a fundar com outros divorciados não recasados a “Comunhão Nossa Senhora da Aliança”. Após seis anos de existência, esse grupo contava mais de um centena de membros (dos quais um terço de homens) provenientes da França mesma e da Bélgica.
O autor relata num livro precioso(1) a sua experiência pessoal, assemelhando-a à da Paixão de Cristo (p. 25-69); a seguir, apresenta eloqüentes testemunhos de pessoas que também passaram por experiência conjugal infeliz e guardaram fidelidade ao vínculo sacramental (p. 71-136); por fim, tece considerações, citas outros textos e testemunhos sobre cristãos separados e divorciados que continuam a sua vida de cristãos na Igreja Católica (p. 137-209). Encerra a obra com indicações bibliográficas e orações (p. 211-220).
O livro é precioso. Revela fé, coragem e lealdade não somente do autor, mas de muitas pessoas que por ele falam e que são desconhecidas, pois em nossos dias o que mais salta aos olhos é a dissolução de uniões matrimoniais, às quais outras se sucedem, nem sempre felizes, provocando o drama tanto dos cônjuges como dos filhos do primeiro, do segundo, do terceiro… casamento. É realmente interessante tomar conhecimento de quanto escreve ou transcreve o autor. As ponderações que este faz, analisando os argumentos em prol de sucessivas uniões, evidenciam lucidez de mente, clara escala de valores e intrepidez na vivência da fé católica.
Não sendo possível comentar todos os aspectos positivos dessa obra, deter-nos-emos, nas páginas seguintes, em alguns traços especialmente significativos.
1. Dados Numéricos
Com relação à França, o autor afirma que em vinte e cinco anos o número de divórcios se triplicou, passando de 35 mil em 1965 a cerca de 110 mil… O problema é cada vez mais amplo, afetando numerosos cristãos; cf. p. 177. A pressão social em favor de novo casamento dos separados é muito forte, dificultando a fidelidade não somente na sociedade civil, mas também no interior da Igreja. Aos 22/04/1987, o jornal La Croix publicou os resultados de uma sondagem segundo a qual 69% dos católicos desejavam que a Igreja autorizasse os divorciados a se casar de novo sacramentalmente, se o desejassem; só 22% não queriam que mudasse sua posição.
O autor refere-se também a um questionário que perguntava a separados ou divorciados se tinham sido aconselhados a se casar de novo. Vinte dentre eles (um terço) responderam que sim, nove vezes por um padre, onze vezes por outras pessoas. É da família que, antes do mais, parte o convite; dizia alguém:
“Foram membros da minha família ou da de meu sogro que me falaram em novo casamento, sem dúvida, para se desculpabilizar e para que eu me casasse e os deixasse tranqüilos” (p. 191).
Também os filhos fazem a mesma proposta: “Minha filha mais velha me aconselhou a assumir alguém” (p. 191).
Os amigos “bem intencionados” diziam o mesmo: “Algumas amigas me estimularam a refazer a minha vida, dizendo-me: ‘Não é culpa tua, se estás só; foi ele que te deixou cair'”(p. 192).
Em idêntico sentido falam pessoas que projetam seus próprios problemas: pessoas solitárias, divorciadas, pessoas que têm familiares recasados. Prescindem da fé e valem-se de argumentos meramente humanos.
A esta altura é de notar que à Igreja não é lícito modificar os escritos do Novo Testamento, que são peremptórios ao afirmar a indissolubilidade do casamento; cf. Mc 10,11s; Lc 16,18; 1Cor 7,10s; Mt 5,31s; 19,9.1 Por isto também não compete aos padres aconselhar novas núpcias aos cônjuges separados; nem mesmo a compaixão bem intencionada pode prevalecer sobre a disposição da lei de Deus. De resto, o autor refere outrossim a atitude de padres que estimulam a fidelidade matrimonial; apoiam-na também os grupos de Oração, os Focolares, Religiosas, casais cristãos.
Paul Salaün analisa alguns dos argumentos aduzidos em prol do recasamento:
2. O Problema da Solidão
A solidão como tal é penosa para muitos divorciados. O problema se torna mais grave quando acompanhado de poucos recursos materiais, dificuldades para conseguir emprego, fadiga do trabalho fora de casa e em casa, ausência de parceiro (a) para educar os filhos (“eles precisam de presença masculina/feminina”). Há psicólogos que recomendam novo casamento como necessário para o desabrochamento sexual da pessoa.
O problema se torna ainda mais pungente quando a separação ocorre em idade ainda jovem: “Tu és jovem (27 anos), podes refazer tua vida”; “Tu és jovem, acaba com tua solidão, casando-te de novo”; “Pensa em teus dias de velhice”; “Tu não podes envelhecer na solidão” (p. 113).
Responde Paul Salaün:
“Os que dão mais conselhos projetam sua própria angústia e têm tendência de confundir solidão e isolamento. Está-se só em nossas cidades superpovoadas, mas o eremita em seu deserto não está só, porque está em comunhão com Deus e, misticamente, com toda a humanidade. De fato, tudo está na maneira de viver a solidão: ‘Pessoalmente, não acho que seja difícil viver só. Sinto-me agora mais feliz, mais equilibrada, mais bem acompanhada, mais bem abastecida na vida de oração e na Eucaristia freqüente. Faço catequese e distribuo a Comunhão aos membros da Fraternidade dos doentes’.
Acontece mesmo que a situação se inverte: ‘Com muita gentileza, alguns amigos temiam que a solidão para mim fosse muito difícil de ser vivida. Doravante o problema se inverteu: acontece-me refletir com casais para ajudá-los a acabar com… a solidão!'”(p. 193s.).
3. O Direito à Felicidade
O segundo grande argumento apresentado para justificar o recasamento é o do direito à felicidade: “Um padre me disse que Deus quer a felicidade dos homens e que Ele não pode aceitar tal sofrimento. Ele me aconselhou a casar-me de novo e foi por isto que o fiz. Mas foi um novo fracasso” (p. 194).
O autor nota que “o nosso mundo fez da vida sexual uma condição sine qua non da felicidade; é uma forma de idolatria” (p. 196).
“Nosso mundo diz: ‘Felizes os que têm vida sexual bem sucedida'”. Hoje muitos imaginam que, para ser feliz, basta trocar o Evangelho pelas obras de Freud ou de seus discípulos, os livros de moralistas pelos dos sexólogos… Mas, se as pessoas são liberadas em relação à sexualidade, nem por isto são felizes, e o número impressionante dos divorciados aí está para confirmar” (p. 9s.).
Paul Salaün nota que a felicidade verdadeira está, antes do mais, em manter fidelidade a Deus. Este não se subtrai jamais a quem o procura; promete até “a bem-aventurança aos que têm um coração puro, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Há testemunhos muito eloqüentes neste sentido: “Quando me encontram serena, surpreendem-se por ver que vivo sozinha há dezesseis anos e que jamais tive amante, meu amor é o Cristo Ressuscitado” (p. 197).
Há quem alegue o direito ao erro e a obrigação de cada um ser fiel a si mesmo. São duas alegações ambíguas.
Está claro que todo ser humano é falível e está sujeito a errar, mas isto não quer dizer que tenha sempre o direito de recomeçar. Quando, por exemplo, alguém em juventude estraga a sua saúde, com ou sem culpa própria, não tem como recomeçar a ser jovem e sadio. ? A fidelidade de alguém a si mesmo geralmente é entendida em sentido subjetivo e egocêntrico ? o que não acarreta felicidade a ninguém. Com efeito; ninguém é suficiente referencial para si mesmo. Todo ser humano é pequeno demais para as capacidades do coração humano, de modo que, se alguém faz de seus interesses o critério de seu comportamento, cedo ou tarde experimentará tédio e dolorosa frustração.
O Santo Padre João Paulo II, em York (Grã-Bretanha), aos 31/05/1982, assim se expressou a propósito:
“O próprio Cristo, fonte viva de graça e de misericórdia, está perto daqueles cujo casamento conheceu a provação, o sofrimento, a angústia. No decurso dos séculos, inúmeros esposos hauriram no mistério pascal da Cruz do Cristo e de sua Ressurreição a força de dar como cristãos ? às vezes em momentos muitos difíceis ? o testemunho da indissolubilidade do casamento cristão. E todos esses esforços do povo cristão para testemunhar fielmente a lei de Deus não foram em vão. Esses esforços são a resposta humana dada com o auxílio da graça a um Deus que nos amou primeiro e que se deu por nós.
Como já expliquei em minha Exortação Apostólica Familiaris consortio, a Igreja sente-se envolvida de maneira vital pelo cuidado pastoral da família nos casos difíceis. Devemos inclinar-nos com amor ? o amor do Cristo ? sobre os que conhecem o sofrimento do fracasso no casamento, sobre os que conhecem a solidão quando é preciso educar sozinho uma família, sobre aqueles cuja vida familiar é dominada pela tragédia ou pelas doenças do espírito ou do corpo. Louvo todos os que ajudam as pessoas feridas pelo fracasso de seu casamento, mostrando-lhes a compaixão do Cristo e aconselhando-os segundo a verdade” (p. 150).
4. A Severidade da Igreja
Eis alguns títulos de acusação feita à Igreja:
1) A Igreja é tida como “desumana”, intransigente, retrógrada. “A fidelidade está ultrapassada; estamos no século XX” (p. 197). Ao contrário, Deus seria todo misericórdia e perdão.
Em resposta, lembra Paul Salaün que hoje há quem atribua a Deus uma misericórdia que desdenha as leis que ele mesmo estabeleceu. Jesus nunca separou Amor e Verdade; não condenou a mulher adúltera, mas nem por isto aprovou o adultério, pois lhe disse: “vai e não peques mais” (Jo 8,1-11). De resto, a Igreja tem manifestado especial solicitude para com os divorciados e recasados.
Refere o autor o seguinte episódio:
“Um homem, tendo ficado só com os filhos novos depois da saída de sua esposa, vivia em
coabitação com uma mulher, mas sentia uma culpabilidade que não podia evitar. Esperava do padre uma atitude firme; ora, seu pároco, achando a Igreja severa demais, aprovava sua coabitação e o escusava, ‘já que tinha sido abandonado por sua esposa, que partiu com um outro’. Mas este homem não estava convencido por este falso argumento: ‘Para mim, em toda ruptura de casal, os dois cônjuges têm sua parte de responsabilidade’ “ (p. 198s.).
2) Há também quem acuse a Igreja de ser mais intransigente do que os cristãos ortodoxos e protestantes.
Pode-se reconhecer a veracidade de tal alegação. Mas observa Salaün que os “irmãos ortodoxos ou protestantes ficam muitas vezes irritados com reflexões simplistas dos que os interpelam sobre este assunto: eles mantêm a fidelidade em alta estima e não aceitam o recasamento senão como uma concessão à fraqueza humana. Além disso, entre os ortodoxos, o ritual das segundas núpcias traz orações de penitência” (p. 199).
3) Também acusam a Igreja de fazer discriminação, pois aceita o casamento religioso dos padres reduzidos ao estado laical.
Em resposta, é de notar que o sacramento da Ordem não é, por si, incompatível com o do Matrimônio; no Oriente o clero católico é casado (casa-se antes de receber o sacerdócio, não depois). Ao contrário, o sacramento do Matrimônio é, por sua própria índole, indissolúvel. A Igreja pode reconhecer a nulidade de um casamento, desde que se evidencie que foi contraído com algum impedimento dirimente (disparidade de culto, profissão religiosa, dolo…); mas nunca anula um casamento validamente contraído e consumado, pois isto escaparia à sua jurisdição.
“Os cristãos que escolhem a fidelidade são mais numerosos do que se crê, e, como sublinha João Paulo II, seu testemunho tem um valor profético. Sua atitude de perdão interpela seu círculo de relações. ‘Não se compreende que eu não tenha rancor de meu marido nem de sua amante por suas ofensas à minha pessoa. Muitos gostariam que eu tivesse uma atitude mais violenta’. Seu testemunho de fidelidade atualiza a missão de Oséias e, se alguns não a compreendem, ao menos a respeitam” (p. 201).
“Os separados e divorciados não recasados não só tem o direito de comungar, mas podem ainda exercer todas as funções abertas aos leigos: animação, leitura, distribuição da comunhão, coral.
Como todos os batizados, eles podem também participar na manutenção da igreja e nos serviços, visitar os doentes, fazer a catequese, peregrinações, ser membros de equipes de ação católica e de grupos de oração…
Bem mais, no seio da comunidade, dão ‘um autêntico testemunho de fidelidade’ (João Paulo II, Familiaris consortio, 20,6) e muitos foram convidados a manifestar publicamente ou a professar este testemunho: diante dos jovens que se preparam para a Crisma; num encontro de A. C. O. (Ação Católica Operária); por ocasião de uma reunião de casais; num fim de semana diocesano das Equipes de Nossa Senhora; numa assembléia diocesana de oração pelas famílias; em reuniões da Renovação; num lar de Caridade; diante de um grupo de padres…” (p. 186).
5. O Drama dos Filhos
“Hoje, 1,5 milhão de crianças vivem divididas entre seu pai e sua mãe.
Quando seus pais separados se encontram e discutem diante dele, um menino se interpõe e diz: ‘Parem de brigar, vocês dois!’
Crianças, morando em Brest, não vêem senão cada dois anos seu pai que mora em Toulon.
Três adolescentes, cujos pais estão separados há sete anos, jamais reviram seu pai, que mora muito perto, mas não se interessa por eles.
Um rapaz explode em soluços diante de um lar unido, porque o marido tem o mesmo nome e exerce o mesmo ofício que seu pai.
Uma adolescente diz a seus pais: ‘Sou vossa filha e vós me cortastes em duas; mas não escutais meus gritos’.
‘Muitas crianças apresentam distúrbios de comportamento: enurese, distúrbios intestinais, insônia, retardamento escolar e até cleptomania para compensar seu sentimento de abandono’ (uma juíza).
‘Os filhos de divorciados têm muita dificuldade de se imaginar mais tarde como um casal feliz’ (uma psicanalista).
‘Muitas crianças cujos pais são separados, vivem um episódio depressivo nos anos que seguem’ (uma psicóloga).
O divórcio não é acolhido como um alívio senão quando põe fim a uma situação anterior intolerável (alcoolismo, violência…).
Para ajudar o filho, a atitude dos pais é essencial. Ora, eles mesmo estão extremamente perturbados ou ausentes… Duas atitudes negativas os espreitam: ou o abandono, que é mais freqüentemente o caso dos pais; ou uma atitude possessiva, que mais comumente é o caso das mães. Algumas, com efeito, levantam seus filhos contra o pai, exigem que escolham entre ele e elas e às vezes reconstituem uma espécie de casal com um filho ou de casulo com os filhos, onde o pai não tem lugar.
É preciso que o filho possa ver regularmente cada um dos pais, fora do clima de tensão; e que receba de cada um deles a afeição de que tem sede. Efetivamente, o maior temor do filho quando da ruptura do casal é de se sentir abandonado por seus pais e às vezes ele até se sente culpado por esta ruptura; então, tem necessidade de ser tranqüilizado!” (p. 21s).
6. Dois Depoimentos eloqüentes
Por último, extraímos do livro de Paul Salaün dois depoimentos altamente expressivos de dor, coragem e vitória dos valores cristãos.
6.1. “Preferi a Eucaristia ao Recasamento
Encontrei-me só aos trinta e um anos, com dois filhos para cuidar (oito e nove anos). Sem ajuda financeira, porque separada de fato, com meu marido quase sempre sem trabalho ou tendo poucos rendimentos. Nada de resposta aos meus cartões de festas, aos convites da escola etc. Era duro. Uma ou duas vezes por ano, uma visita de um ou dois dias e era tudo. Recebíamos meu marido do melhor modo, os filhos tendo aceitado (a contragosto) este pai que vivia longe deles. Contudo, eles o tratavam com carinho, tendo aprendido, com a graça de Deus, a amar sem julgar.
Assim se foram os anos, com o desejo de guardar fielmente a imagem da felicidade fugida. Mas, a separação de corpos tendo vindo depressa, veio também a tomada de consciência mais profunda de um não-retorno. Neste momento, porque eu era mais vulnerável, ou talvez porque o amor tivesse desaparecido, eis que um outro homem entrou em minha vida. Foi rápido, inesperado, desconcertante.
Ele me propunha o casamento, o conforto, a ternura. Era um homem decidido, que contrariamente a meu marido, tinha fé, podia partilhar comigo uma dimensão espiritual. Era aberto e aceitava meus filhos. Ele mesmo era divorciado, mas não se colocava nenhum problema quanto à sua prática religiosa.
Eu me pus a amá-lo (não era senão paixão, soube-o mais tarde); mas como, na esperança reencontrada (eu diria agora: no sonho), analisar seus próprios sentimentos? Não coabitávamos, pois este homem vivia ainda por alguns meses no estrangeiro; mas nos escrevíamos de dois em dois dias, às vezes todos os dias. Minhas cartas eram totalmente cheias de alegria e de esperança ou cheias de dúvida, de tristeza, de desejo de abandonar este projeto de vida futura. Ele compreendia que eu estava muito indecisa, dava-me mil razões para acalmar minha consciência, escrevendo-me às vezes duas cartas por dia.
Por que eu não era feliz? Por causa de minha fé! A fidelidade ao sacramento do casamento tinha alimentado minha vida durante tanto tempo que renunciar a ela era para mim uma dilaceração. Porém, outras vezes, me parecia uma dilaceração mais profunda ainda abandonar esse novo amor. Eu estava tão perturbada que meus filhos, percebendo-o, me pediam que resolvesse a questão de uma vez por todas: ‘Se amas e pensas ser feliz, então não penses mais no passado, mamãe’; ou ‘Se tens medo de ser infeliz, então é preciso romper, mas não esperes mais, mamãe, porque estás te destruindo’. Caros filhos, como os amava! Eu tinha-lhes ensinado a amar seu pai sem o julgar, como eu os amava por sua delicadeza e sua abnegação!
Então escrevi a amigos, a todos os meus amigos padres, a Roma, de onde recebi uma resposta por intermédio do bispado e de meu pároco. Nenhuma resposta definitiva: remetiam-me à minha consciência e isso era bem mais terrível. À minha consciência, isto é, à minha verdadeira relação com o Senhor.
Então tomei uma decisão. Eu conhecia a posição da Igreja diante do casamento; sabia que não se pode ir comungar em sua própria paróquia sem dar um mau testemunho; e eu não queria causar um mal à Igreja da qual era uma filha querida, sobretudo durante meu sofrimento nesse período.
E o que sabia, sobretudo, é que me era impossível viver sem Jesus. Para mim Jesus não estava nas nuvens nem era alguém que eu aceitava como amigo, com a condição de que não me incomodasse demais. Oh! não; para mim Jesus era ‘o Vivente’ presente junto de mim; eu tinha necessidade do alimento que ele me dava em seu Corpo e Sangue, tinha necessidade desse alimento ao mesmo tempo espiritual e concreto. E de repente compreendi que era esse Corpo Sagrado que era minha vida, meu essencial. Só ele podia fazer inclinar a balança da decisão que eu tinha de tomar.
Certamente, não foi fácil; rezei a Deus, chamei-o em socorro de todas as minhas forças. Eu sabia que, se me casasse de novo, não poderia mais comungar. Então, para saber se poderia viver sem receber a Eucaristia, vários domingos em seguida tentei assistir à Missa sem comungar; aplicava-me a rezar mais, a comungar espiritualmente… Foi preciso que me rendesse à evidência: não poderia, todo o resto de minha vida, suportar os sofrimentos da separação sem meu Jesus na Eucaristia. Ir comungar às escondidas em uma outra paróquia… de que me serviria? Meu coração não estaria em paz. Meu amor era Jesus-Hóstia e, esse amor, eu queria poder vivê-lo às claras.
Então tomei minha decisão; escrevi minha carta de ruptura. O homem não ficou, apesar de tudo, por demais decepcionado: tinha aprendido a me conhecer e, já havia muito tempo, duvidava um pouco de minha escolha, embora guardando um tanto de esperança.
Essa renúncia não foi tão fácil como talvez pareça nestas linhas. Mas quantas graças me foram dadas após essa renúncia! É-me impossível narrá-las todas para vós. Dizer-vos a alegria de meu marido, também não posso dizer.
Mas o que posso dizer-vos é que não a lamentei jamais. E dou graças ao Senhor pela ternura profunda que nasceu entre mim e meu marido, para nossos encontros, para nossos telefonemas, para nossa confiança mútua. Ele nos admira, meus filhos, meus netos e a mim mesma, mas ele, não obstante seu re-casamento, não é muito feliz; é possível? Rezo sobretudo para que meu marido tenha um dia a alegria de conhecer o Senhor.
Em todo o caso, a Eucaristia é verdadeiramente ‘o caminho, a verdade e a vida’.
6.2. “Encontrei o Amor Verdadeiro
Penso que no fim de dezessete anos de separação de Cláudio, depois de altos e baixos, é-me necessário precisar a situação para que, através destes anos que Deus me deu, eu possa louvá-lo e agradecer-lhe todos os benefícios de que me cumulou.
Tudo remonta, penso, a agosto de 1954, quando, após um acidente, nosso pequeno Bernardo, segundo filho, voltou para seu Criador. Esperando Maria Paula, eu me agarrei física e moralmente a Cláudio, como uma tábua de salvação. Oito meses de cama, uma criança doente treze meses, o nascimento de uma outra criança doente: tive de cuidar deles durante muitos anos. Custei muito a me recuperar do desaparecimento de Bernardo, apegando-me a Cláudio, mas apesar de tudo rezava sempre, ou melhor, exercitava-me.
Vivemos nossa vida de casal no meio de múltiplas dificuldades de filhos e de trabalho: Cláudio estava terminando seus estudos, depois veio o serviço militar, depois mais estudos, depois dois anos como médico, três anos em duas residências médicas, depois uma doença que o obrigou a mudar de profissão, depois mais estudos em diversos lugares. Depois do diploma, um emprego de três anos, depois outro.
Tudo isso nos leva a maio de 1968!
Eu havia aceitado essas mudanças por amor a Cláudio, como o sentimento de que era a vontade de Deus para nós.
Não me haviam dito: ‘Deus não pede mais do que podemos suportar; é uma graça do Senhor que nos prova assim seu Amor por nós; é preciso ganhar o seu Céu sobre a Terra’ etc.
Estávamos verdadeiramente cheios de graças!
Mas, infelizmente, as confusões de maio de 68 iam fazer soar o golpe de graça de nosso casamento com a chegada em nossa casa de uma prima em dificuldades, com três filhos de quatro anos a dezoito meses; espancada por seu marido, ela havia fugido de seu lar e nós podíamos arranjar-lhe trabalho, comida e teto, e eu podia ocupar-me com seus filhos. Essa prima, pouco tempo depois, encontrou Cláudio para consolá-la…
Penso agora (sem por isso o aprovar) que ela fez Cláudio despertar de um longo sono, ou que ele saiu de nossa relação como um cão sai da água bufando. Tinha eu um amor demasiado manipulador? fechando nosso casamento sobre si mesmo e sobre os filhos? com problemas de saúde e de trabalho? na rotina de uma vida monótona? Diante desta ruína, na qual meu amor e minha boa vontade tinham também sua responsabilidade, fiz três tentativas de suicídio, crendo que meu desaparecimento, devolvendo a Cláudio sua liberdade, lhe permitiria ocupar-se enfim com os meninos. Infelizmente, extasiado com suas novas descobertas, ele nos abandonou.
Eu estava ao mesmo tempo no fundo do poço e no início de minha luta pela vida e por eles: ‘Pegar o touro pelos chifres ou morrer, não há outra solução’.
Legalmente, pedi apenas a separação de corpos em 1972, e continua sempre assim. Luto com mais baixos do que altos, mais desespero que alegria; mas, graças ao Padre Pascal, pude começar a transformar meu amor, perdoando o melhor possível a Cláudio, decidindo ficar-lhe fiel e tentando cumprir sozinha o que tinha prometido diante de Deus ao me casar ‘para o melhor e para o pior’. Eu estava com Jesus no Jardim das Oliveiras, meditação que foi a minha durante muitos anos em que, única oração com a Eucaristia, eu oferecia ao Senhor minha impossibilidade de amar meu esposo, meus filhos, e de rezar por eles. Eu era ‘5’ sozinha.
Por ocasião de um retiro, encontrei meu antigo assistente da ENS (Equipes de Nossa Senhora); depois que lhe contei o que eu tentava viver e disse que não tinha encontrado na ACGF e na “Renascença” (Ação Católica Geral Feminina e “Renascença”: Movimento cristão de mulheres separadas, divorciadas) as exigências espirituais de que tinha necessidade, ele me aconselhou a tentar entrar de novo numa equipe de Nossa Senhora. Obediente, passei uma tarde na casa de um casal responsável pelas equipes.
Conhecia Ana Maria desde 1981, na “Renascença”, já à procura do que seria mais tarde a “Comunhão Nossa Senhora da Aliança”.
Primeiramente encontrei minha unidade no Senhor. ‘O Senhor te escolheu, ele te chamou por teu nome, ele te fez caminhar em seus caminhos’. ‘Com a menor das sementes o Senhor faz brotar a mais bela das árvores’. ‘Se tivesses a Fé, grande como uma semente de mostarda, deslocarias as montanhas’. ‘Se o grão não morrer…’ (Retiro de Délémont na Suíça, pregado para divorciadas; éramos 15).
Em seguida, encontrei a liberdade dos filhos de Deus. Os meus, que tanto amo, tinham acabado de me sufocar.
No nascimento da ‘Comunhão Nossa Senhora da Aliança’, quando Ana Maria me propôs fazer parte, pulei de alegria porque tinha enfim encontrado o que procurava havia muito tempo: um lugar de reabastecimento espiritual e de trocas com meus semelhantes, irmãos e irmãs na separação e no divórcio.
Graças à oração e a numerosos pequenos sinais, reencontrei o Amor verdadeiro, Amor humano e divino, mesmo com um passo atrás, dois à frente!
Estou numa Paz profunda e agradeço todos os dias ao Senhor num Magnificat, imperfeito certamente, mas sincero.
Que seria de mim se não tivesse tido este sofrimento? Não sou eu que o posso dizer. Mas penso, malgrado tudo, que por meio dele reencontrei um sentido para o Amor, uma liberdade total, um sentido profundo de minha vocação de esposa diante de Deus, de mãe e agora de avó, numa alegria que não tinha experimentado antes e que vivo agora plenamente.
Desejo a todos e a todas que reencontrem, gastando menos tempo que eu, este Amor, esta Paz, esta unidade, esta liberdade que Deus nos dá, mesmo e sobretudo nas situações mais penosas ou difíceis.
A leitura de tais depoimentos, como também de cada página do livro de P. Salaün, é rica em sugestões e abre ao leitor horizontes ignorados, pois o que mais salta aos olhos de quem acompanha a sociedade de hoje são sombras e lacunas; é realmente gratificante averiguar que, ao lado delas, existem focos de verdadeiro amor, fiel até a morte, amor, porém, que não faz o alarde que o mal costuma fazer.