Por Joathas Bello
1. Breve História da Liturgia Romana até o Concílio de Trento
Como afirma Michael Davies, a Bula Quo Primum Tempore de S. Pio V
“não legislava sobre como a Missa deveria ser celebrada, mas dava sanção legal à maneira como a Missa já estava sendo celebrada. A característica primária do desenvolvimento litúrgico até o Vaticano II era que a legislação codificava o desenvolvimento, não que o desenvolvimento fosse iniciado pela legislação”[1].
Até o quarto século, não era usado livro litúrgico durante a Missa, com exceção das Escrituras, de onde eram tiradas as leituras. Como informa M. Davies, a Missa tinha duas partes divinas, a primeira, um “rito cristianizado de orações da sinagoga, leituras e um sermão” (“Missa dos Catecúmenos”, após a qual os fiéis não batizados tinham que sair, e que corresponde à atual “Liturgia da Palavra”); e a segunda parte, o “Mistério Cristão, a Eucaristia”, que era “uma celebração espontânea do bispo, mas que, desde os tempos apostólicos, já tinha adquirido formas fixas”. Quando S. Paulo lembra as Palavras da Instituição, cita uma fórmula estabelecida. Os fiéis participavam com hinos e respostas apropriadas, “algo que não poderiam ter feito sem fórmulas fixas”[2].
Quando um missionário fundava uma nova Igreja, “usava os ritos com os quais estava familiarizado”; e “o movimento constante de cristãos entre diferentes Igrejas garantia um padrão geral razoavelmente uniforme”, que é a “base de todos os ritos antigos ainda em uso hoje”[3] como está claro na descrição da liturgia feita por S. Justino Mártir (+ ca. de 164):
“No dia que chamam Dia do Sol, realiza-se a reunião num mesmo lugar de todos os que habitam a cidade ou o campo.
Lêem-se as memórias dos Apóstolos e os escritos dos Profetas, tanto quanto o tempo o permite.
Quando o leitor acabou, aquele que preside toma a palavra para incitar e exortar à imitação dessas belas coisas.
Em seguida, levantamo-nos todos juntamente e fazemos orações» (175) «por nós mesmos […] e por todos os outros, […] onde quer que estejam, para que sejamos encontrados justos por nossa vida e acções, e fiéis aos mandamentos, e assim obtenhamos a salvação eterna.
Terminadas as orações, damo-nos um ósculo uns aos outros.
Depois, apresenta-se àquele que preside aos irmãos pão e uma taça de água e vinho misturados.
Ele toma-os e faz subir louvor e glória ao Pai do universo, pelo nome do Filho e do Espírito Santo, e dá graças (em grego: eucharistian) longamente, por termos sido julgados dignos destes dons.
Quando ele termina as orações e acções de graças, todo o povo presente aclama: Ámen.
[…] Depois de aquele que preside ter feito a acção de graças e de o povo ter respondido, aqueles a que entre nós chamamos diáconos distribuem a todos os que estão presentes pão, vinho e água “eucaristizados” e também os levam aos ausentes” (São Justino, Apologia, 1. 65)[4].
Segue Davies dizendo que “o padrão mais ou menos uniforme previamente utilizado cristalizou-se em quatro ritos principais, dos quais todos os outros derivaram”:
Três dos quatro rios principais derivaram dos três antigos patriarcados de Roma, Alexandria e Antioquia, reconhecidos pelo Concílio de Niceia (325) […] Jerusalém e Constantinopla foram reconhecidas como patriarcados pelo Concílio de Calcedônia (451), mas suas liturgias foram derivadas da de Antioquia[5].
O prestígio das sedes patriarcais fez com que “suas liturgias fossem gradualmente adotadas por cidades vizinhas até se espalharem por todo o patriarcado”. Havia um quarto rito, o Rito Galicano, não derivado de uma sede patriarcal; era usado pela maior parte da Europa Ocidental – do qual o Papa é o Patriarca –, a qual não usava o Rito Romano: norte da Itália (cujo centro era Milão), a Gália, a Germânia, a Espanha, a Bretanha e a Irlanda tinham todas suas próprias liturgias, que “eram todas modificações de um tipo comum e são referidas como o Rito Galicano”, que é “obviamente Oriental em sua origem e pode derivar de Antioquia, apesar de haver aí controvérsia”; este rito foi sujeito a variações e adaptações locais ao espalhar-se pela Europa Ocidental[6].
Do século VI em diante a história da liturgia é a “de uma gradual suplantação do Rito Galicano pelo Romano, mas isso não foi obra dos papas, e sim de bispos ou monarcas locais que desejaram se conformar ao uso da Sé Apostólica”. Do século V em diante, as tradições e costumes litúrgicos foram registrados em livros chamados Sacramentários: “um Sacramentário não corresponde ao Missal moderno, pois contém apenas as partes da liturgia ditas pelo sacerdote no altar, isto é, as Orações Coleta, Prefácio, Cânon, mas não as leituras ou os cantos”[7]. O mais importante desses foi o Sacramentário Gregoriano, atribuído a São Gregório Magno, cuja cópia sobrevivente mais antiga é de cerca de 811 ou 812. Esse Sacramentário
fornece a base para o Missal de São Pio V e fixa o calendário litúrgico. Em 785 ou 786, Carlos Magno obteve uma cópia desse Sacramentário do Papa Adriano I, para conseguir uma liturgia mais uniforme dentro de seu império. O Sacramentário estava incompleto e não incluía as Missas comuns dos domingos. Carlos Magno confiou sua reforma litúrgica à direção de um monge anglo-saxão, Alcuíno de York (c. 735-804). Alcuíno ficou com a tarefa de completar o Sacramentário Gregoriano, o que ele fez com Missas e orações extraídas de fontes galicanas. Seu missal tornou-se o livro oficial da Missa para a Igreja Franca e espalhou-se pela Europa, sendo altamente responsável pelo alcance do alto grau de uniformidade que existiu na Europa pré-Reforma. Mas apesar de a Liturgia Galicana ter sido ao fim suplantada pela Liturgia Romana, esta última passou a conter elementos distintivamente galicanos[8].
Quando o Rito Romano suplanta o Galicano, por volta dos séculos X ou XI – exceto na sede de Milão (rito ambrosiano) e de Toledo (rito moçárabe) –, é um Rito Romano galicanizado:
Os elementos romanos são sóbrios, contidos e respeitáveis, enquanto que os elementos galicanos são mais exuberantes e contribuem para a variedade e a emoção que exercem um papel vital ao deixar a Missa Romana tão próxima da perfeição quanto possível para uma liturgia terrena[9].
Durante o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), os franciscanos decidiram adotar o Missal de acordo com o Rito da Cúria Romana (abreviado como Missale Romanum),
e os frades viajantes acabaram por levá-lo a todo o mundo. Em breve, havia se tornado o livro predominante para a Missa na cristandade e pavimentou o caminho para a reforma de São Pio V, apesar de que alguns desenvolvimentos ainda estivessem por surgir, por exemplo, as orações ao pé do altar, as orações do Ofertório feitas pelo sacerdote e o Último Evangelho. O Papa Nicolau III (1277-1280) estabeleceu para a diocese de Roma uma versão modificada da versão franciscana do Missal da Cúria, que é, em todos os aspectos importantes, a forma encontrada no Missal de São Pio V. O primeiro Missal Romano impresso foi publicado em Milão em 1474; nele, o Ordo da Missa é praticamente idêntico ao contido no Missal de 1570. Apesar de o Rito Romano de ter sido usado por toda parte no Patriarcado de Roma antes da reforma de 1570, havia consideráveis variações locais, não apenas de país para país, mas de diocese para diocese. Vários missais eram usados na Grã-Bretanha antes da Reforma, mas não constituíam ritos independente (como era o caso do Rito Ambrosiano de Milão), sendo chamados de “Usos” […] Além disso, ordens religiosas tinham seus próprios missais. As variações nos diferentes Usos cresceram gradualmente como resultado de costumes locais; e costumes sempre foram vistos com reverência na Igreja[10].
Eis o sumário do desenvolvimento histórico do Missal Romano até a forma promulgada por S. Pio V, conforme a indicação de D. Prósper Guéranger: as orações ao pé do altar são do séc. XII, o Confiteor do séc. VIII (a fórmula da Missa é do XII), o Intróito (canto de entrada) e o Kyrie são do séc. V, o Glória é oração do séc. II e entrou na missa no V, as orações Coletas foram compostas entre o III e V, a Epístola é lida desde sempre, o Salmo (gradual) e Aleluia são do séc. V, as Sequências foram acrescentadas a partir do séc. IX, o Evangelho desde sempre, o Credo é do V; a Antífona do Ofertório é do séc. V e a Oração, do VIII ou IX, a prática da incensação é do séc. IX, o Lavabo do séc. VII, a outra oração do ofertório à Trindade é do X-XI, o Oratre fratres é do X, o Prefácio do Cânon (oração eucarística) e o Santo são do séc. II, o básico do Cânon romano deve ser do final do séc. II ou início do III, as palavras da Consagração desde sempre, o Pai Nosso foi incluído na Missa no séc. III, o Cordeiro de Deus é do VIII, a Despedida (“Ite missa est”) é do séc. V, a Benção final é do VII-VIII, e o último Evangelho (prólogo de S. João) é do séc. XIII[11].
A “reforma” protestante proporcionou o estímulo para uma reforma litúrgica, que já era necessária, porque a variabilidade dos usos locais havia permitido a inserção de “costumes estranhos e ecléticos”; contudo, “bem mais importante era a necessidade de uma expressão litúrgica uniforme e autorizada do ensinamento eucarístico católico”. Isso viria a ser “um bastião da verdadeira Fé contra as heresias protestantes que os reformadores tinham expressado em suas novas liturgias”. Os protestantes, como diz Michael Davies,
deram expressão litúrgica a suas heresias principalmente removendo orações dos variantes do Rito Romano previamente usados nas igrejas locais sobre as quais haviam ganhado controle. As duas principais bête noire [“ódios de estimação”] para os protestantes eram as orações do Ofertório e o Cânon Romano[12].
O Concílio de Trento codificou o ensinamento eucarístico católico, o qual tem de permanecer inalterado até o fim dos tempos:
Por isso, o mesmo sacrossanto Sínodo, transmitindo a sã e autêntica doutrina sobre este venerável e divino sacramento da Eucaristia, […] proíbe a todos os fiéis cristãos de ousar, depois disto, crer, ensinar ou pregar sobre a santíssima Eucaristia de outro modo do que o explicado e definido no presente decreto.
O Concílio também decretou uma reforma do Rito Romano, e Michael Davies considera que
parece não meramente razoável, mas óbvio, que [Trento] pretendia que o Missa reformado fosse investido com a mesma permanência que seu ensinamento doutrinal. O Missal é, portanto, não simplesmente um decreto pessoal do Soberano Pontífice, mas um ato do Concílio de Trento, mesmo que o Concílio tenha sido encerrado em 4 de dezembro de 1563, antes de a Comissão responsável pela reforma do Missal terminar sua tarefa. […] Uma vez que o Missal é um ato do Concílio de Trento, seu título oficial é Missale Romanum ex decreto sacrosancti Concilii Tridentini restitutum (O Missal Romano restaurado de acordo com o decreto do Sacrossanto Concílio de Trento). Essa foi a primeira vez, em 1570 anos de história da Igreja, que um concílio ou papa legislou sobre o assunto da liturgia[13].
2. O Missal de S. Pio V e as reformas seguintes até o Concílio Vaticano II
Segundo Michael Davis, a Bula Quo Primum Tempore:
- Não promulga um novo Missal, mas consolida e codifica (statuimus et ordinamus) o imemorial Rito Romano.
- Estende o uso do Missal por toda a Igreja Latina, exceto onde existam ritos com um uso contínuo maior que 200 anos.
- Concede um indulto para que todos os sacerdotes usem esse Missal livre e legalmente em perpetuidade.
- Especifica minuciosamente as pessoas, épocas e locais a que suas provisões se aplicam.
- Confirma a obrigação com sanções expressas[14].
Deste modo, o Missal Romano promulgado pela Quo Primum “não existe por força dessa Bula, isto é, por um decreto pessoal de São Pio V”[15]. O então cardeal Joseph Ratzinger afirmara (negritos meus):
O Concílio de Trento não “fez” nenhuma liturgia. E tampouco há nenhum missal de Pio V em sentido estrito. O missal que apareceu no ano de 1570 por encargo de Pio V só diferia em pequenezas da primeira edição impressa do missal romano, aparecida uns cem anos antes. Na reforma de Pio V se tratava simplesmente de eliminar as impurezas que foram se infiltrando durante a Baixa Idade Média e os erros que se cometeram ao copiar e imprimir, voltando a estabelecer como regulamentar para toda a igreja o Missal Romano, que quase não havia sido afetado por estes avatares. Ao mesmo tempo era preciso acabar com as inseguranças, que se produziram na confusão das mudanças litúrgicas do tempo da reforma luterana, já que a diferença entre o católico o específico da reforma se havia feito cada vez mais difusa; tentou-se evitar este problema estabelecendo o uso exclusivo e o caráter obrigatório do missal “typicum”, impresso em Roma. Também se pode ver que essa era a única intenção no fato de que não se reformassem os costumes litúrgicos de mais de duzentos anos de antiguidade[16].
Como diz Davies, nenhuma mudança importante foi feita no Missal Romano até o pós-Vaticano II. Na verdade, três papas que revisaram o Missal, Clemente VIII, Urbano VIII e São Pio, tinham como principal objetivo restaurar o Missal à sua forma de 1570. São Pio X fez uma revisão não do texto, mas da música:
O Gradual Vaticano de 1906 contém formas novas, ou melhor, restauradas, das peças cantadas pelo celebrante, que assim deviam ser impressas no Missal. A Constituição Apostólica Divino Afflatu estava preocupada principalmente com o Breviário, pois rearranjou o Saltério. Como resultado de numerosas canonizações, as festas dos santos estavam regularmente substituindo o Domingo e as Missas feriais, particularmente as belas Missas feriais da Quaresma, e os padres não estavam mais recitando o Saltério inteiro a cada semana durante o curso de seu Ofício. Isso envolveu algumas mudanças no Calendário, o que explica por que a Divino Afflatu é incluída no começo do Missal. Esse veio a ser o primeiro estágio de uma reforma muito necessária no Calendário Romano, para a qual o Papa estabeleceu uma Comissão de estudiosos. Como as reformas dos Papas Clemente VIII e Urbano VIII, a reforma de São Pio X pode ser vista como uma extensão da reforma de São Pio V[17].
As reformas de Pio XII tiveram mais relevo: tradução latina revisada dos Salmos – que não era obrigatória –, restauração da Vigília Pascal da manhã para a noite do Sábado Santo – a justificativa era que o Sábado Santo tinha deixado se ser feriado para muitos trabalhadores e a Vigília era frequentemente celebrada numa igreja vazia –, reforma das cerimônias da Semana Santa. Em todo caso, nenhuma dessas reformas alterou o Ordinário da Missa.
João XXIII reformou as rubricas e o Calendário. Entretanto, ele fez algumas mudanças no Ordinário, as quais, como diz Davies,
apesar de não serem de importância doutrinal, foram infelizes. Estabeleceram um precedente. A primeira mudança é a menos importante e envolveu omitir o Salmo Judica me e o Último Evangelho em certas ocasiões. A segunda foi eliminar o Confiteor e a Absolvição antes da Comunhão do povo. Seria possível argumentar corretamente que essa não é uma parte essencial do rito, já que a Missa pode ser celebrada com ninguém além do padre comungando. Ainda assim, foi a primeira mudança no Ordinário da Missa desde 1570, sendo seguida pela adição do nome de São José ao Cânon em dezembro de 1962. Isso rompeu uma tradição de ausência de mudanças no Cânon desde o tempo de São Gregório Magno. Essas mudanças deixaram o Missal de São Pio V substancialmente inalterado e não causaram ansiedade na época[18].
Assim, até o Concílio de Trento, os vários ritos da Missa
desenvolveram-se a partir da junção de costumes locais com práticas copiadas de liturgias de Igrejas mais antigas e de maior prestígio. […] Após o Concílio de Trento, o uso do Missal Romano tornou-se quase universal por todo o Rito Romano, a não ser pelas exceções mencionadas na Quo Primum e em certas dioceses, particularmente na França, onde alguns bispos ignoraram a Bula e continuaram usando seus próprios missais e breviários até boa parte do século XIX. Dom Guéranger dedicou-se a estender o uso do Missal e do Breviário Romanos na França. Reformas papais subsequentes até 1960 consistiram em restaurações do Missal à forma promulgada por São Pio V, adições de novos Próprios, aperfeiçoamento de rubricas – o Calendário em particular – melhoria da notação musical ou tradução dos Salmos, e uma simplificação e racionalização das cerimônias da Semana Santa[19].
Segundo Davies,
essas reformas indicam que nenhum papa jamais imaginou que a Bula Quo Primum excluía qualquer reforma futura do Missal. O que a Bula proibia era que qualquer um além do Papa fizesse mudanças no Missal por sua própria iniciativa. […] um princípio básico na lei é que “Par in parem potestatem non habet – um par não tem poder sobre seu par”. As cláusulas que proíbem mudanças no Missal, incluídas na Quo Primum, podem ser encontradas em outras legislações papais que foram subsequentemente aperfeiçoadas ou revogadas, e nunca houve a menor sugestão de que os papas em questão estivessem excedendo sua autoridade[20].
Para Davies, “é evidente que todas as revisões feitas no Missal de São Pio V por papas subsequentes foram mudanças que o próprio São Pio V teria feito sob as mesmas circunstâncias – representam uma continuidade e não uma contradiçãocom a sua obra”[21]. E ele cita a opinião do Pe. Dulac, segundo a qual “nenhum papa jamais teria o direito moral de ab-rogar totalmente a Bula e, com ela, o Missal de São Pio V”[22]. E diz que
todas as revisões subsequentes mencionadas deixaram o Missal substancialmente inalterado. Jamais poderia haver a menor dúvida de que o Missal do Papa João XXIII ainda era o Missal de São Pio V. As revisões que se seguiram à Quo Primum podem ser mais bem descritas como uma continuação do trabalho da Comissão estabelecida pelo Concílio de Trento[23].
O Padre Dulac, diz Davies, considera que a Quo Primum possui três características que fazem sua ab-rogação inconcebível:
(1) o fim procurado pela Bula: que haja um Missal idêntico que, pela unidade da prece pública, proteja e desenvolva a unidade da Fé; (2) o método do seu estabelecimento: nenhuma fabricação artificial entre uma quantidade de outras imagináveis, nenhuma reforma radical, mas uma restauração do Missal Romano primitivo: a pura restituição de um passado experimentado, que seria, assim, a melhor garantia de um futuro pacífico; (3) os autores: um Papa agindo com toda a força expressa da sua autoridade apostólica, em conformidade exata com o voto igualmente expresso por um Concílio Ecumênico, em conformidade com a tradição ininterrupta da Igreja Romana e, enfim, para as partes principais do Missal, em conformidade com a Igreja Universal[24].
Conclui ainda Davies:
O fato de o Missal de São Pio V ser revestido com a autoridade do Concílio de Trento e ter tido a intenção de dar expressão litúrgica permanente ao ensinamento eucarístico católico em oposição à heresia protestante é certamente um argumento convincente para que seja preservado substancialmente inalterado e perpetuamente[25].
Como diz Davies, é injustificável do ponto de vista histórico e até desonesto, “tentar justificar a substituição do Missal de São Pio V pelo Missal de Paulo VI afirmando que este último Papa não estava fazendo mais do que continuar uma série de revisões”, pois o que que aconteceu desde o Vaticano II “não foi uma restauração (“instauratio”) geral do rito existente, mas a criação de um Novo Ordo da Missa, Novus Ordo Missae, algo que a Constituição sobre a Liturgia jamais autorizou”[26]. Como ensina Dom Alcuin Reid (negritos meus):
Pelos padrões do século XX, a quantidade de investigações sobre as origens e a história do desenvolvimento litúrgico disponível para esta comissão era minúscula. Sabemos, no entanto, que a comissão teve acesso a manuscritos antigos dos quais eles poderiam, sem dúvida, ter destilado um rito mais puro e antigo ou desde os quais poderiam ter desenhado formas antigas para substituir as de origem posterior.
Vimos, porém, que os mesmos papas responsáveis pela reforma litúrgica de Trento rejeitaram o antiquarianismo [arqueologismo] litúrgico do cardeal Quignonez. Os reformadores tridentinos não se sentiram livres para seguir esse caminho. Em vez disso, as formas litúrgicas desenvolvidas organicamente de origem posterior foram respeitadas como legítimas.
O princípio fundamental dessa reforma era, de fato, o da restauração. Mas não foi uma restauração baseada em princípios protestantes, iconoclastas ou antiquarianistas, nem foi uma reforma que buscou inovar. Foi uma restauração que buscou recuperar a beleza da Liturgia Romana. O organismo foi podado para voltar a florescer. Certamente, “o padrão da comissão era a antiguidade”, mas por antiguidade a comissão entendia a liturgia romana desenvolvida do século XI: o missal da Cúria Romana difundido pelos franciscanos
Assim, a frase usada pela bula Quo primum de São Pio V para descrever o princípio fundamental da reforma de Trento, “ad pristinam Missale ipsum sanctorum Patrum normam ac ritum restituerunt” (restaurou o próprio missal à norma prístina e ao rito dos santos Padres), não significa, quando lida em seu contexto, um retorno a alguma forma supostamente “pura” da Liturgia encontrada na antiguidade, como as nascentes formas litúrgicas, digamos dos primeiros quatro ou seis séculos, como é assumido hoje. Em vez disso, eles se referiam a formas litúrgicas desenvolvidas com uma Tradição viva de mais de duzentos anos. A provisão de São Pio V em Quo primum para a continuação dos ritos locais que têm um costume desta extensão ilustra precisamente onde os limites da antiguidade estavam em sua mente[27].
As conclusões de Davies e do Pe. Dulac são modestas em relação à realidade e aos princípios bem descritos pelo caro professor católico: os Papas até João XXIII não mudaram substancialmente o Missal de São Pio V, embora tenham entendido perfeitamente que poderiam mudá-lo acidentalmente, como o fizeram, precisamente porque o Missal Romano que São Pio V reconheceu, está, em sua substância, além do arbítrio papal. Os Papas não somente não têm o direito moral de ab-rogar a Bula e o Missal de S. Pio V, como crê o Pe. Dulac, mas eles não têm o poder jurídico para ab-rogar este Missal, porque ele é um testemunho da própria Tradição Apostólica. Como diz o Dr. John Lamont: “Se […] o próprio rito é de origem divina, o papa não tem o poder legal de o substituir por outra coisa”[28]. Passemos à explicação do caráter tradicional do Rito Romano.
3. Significado teológico do Missal de S. Pio V
Na verdade, é necessário ir ao fundo das intuições de Davies, que estão no caminho certo, porém coartadas pelo horizonte de compreensão jurídico-canônica da Liturgia, o qual se expressa seja numa perspectiva empirista (denotada pela ideia do “costume”, do autor), seja numa perspectiva legalista (a disputa sobre “qual a lei mais forte”, ou, às vezes, “qual o papa mais papa”); é preciso chegar ao fundo teológico da questão, que é dogmático e que abrange o novo campo de investigação da “teologia litúrgica”. O direito canônico é um saber categorial, importante, mas penúltimo, como são penúltimas as reflexões litúrgicas marcadas por uma historiografia filo-arqueologista da Liturgia; tanto a perspectiva jurídico-canônica só, quanto a perspectiva do “especialista” em Liturgia, que a investiga de costas para o dogma e o direito, são vias insuficientes para a compreensão e resolução do problema. Necessitamos de uma teologia eucarística capitaneada pelo dogma e, simultaneamente, litúrgica e jurídica.
O Sacrifício da Missa é a essência do Catolicismo, é a própria obra da redenção de Cristo, a “ação” que Cristo fez e segue fazendo por nós, a “fonte de onde promana toda força da Igreja” (aqui Sacrosanctum Concilium nos auxilia); como ensina S. João Paulo II na Encíclica Ecclesia de Eucharistia (grifos do original):
1. A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em sínteseo próprio núcleo do mistério da Igreja. […] 3. Do mistério pascal nasce a Igreja. Por isso mesmo a Eucaristia, que é o sacramento por excelência do mistério pascal,está colocada no centro da vida eclesial. […][29]
E Pio XII na Mediator Dei (n. 59): “O mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote Jesus Cristo e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus ministros, é como a súmula e o centro da religião cristã”[30].
A Missa é o ato que funda o Corpo Místico de Cristo; todo o convívio que os apóstolos tiveram com Cristo, e os ensinamentos que dEle receberam foram o seu “catecumenato”; os apóstolos se tornaram formalmente “cristãos” no mesmo momento em que foram ordenados sacerdotes do Novo Testamento: “Fazei isto em memória de mim”, isto é, em seguida à realização misticamente antecipada da Redenção do mundo – os apóstolos, exceto Judas, foram “purificados”, para participar da oblação do Sacrifício e da Comunhão, pela audição da Palavra de Cristo (cf. Jo 13, 10-11; Jo 15, 3).
Até então, a Igreja existia apenas em Cristo e na Virgem Maria, redimida por Ele na Imaculada Conceição (e explicitamente crente desde o Fiat da Anunciação). A Eucaristia, o Sacramento e o Sacrifício indissociáveis – a própria obra da redenção no altar do Calvário e da glorificação de Cristo, antecipada misticamente na Última Ceia e atualizada nas seguintes missas –, é a obra que os Apóstolos recebem de Cristo, para sempre tornarem presentes no mundo a Sua Vida e os efeitos da Redenção.
Antes da Missa, antes da consumação do Sacerdócio de Cristo na Cruz, não há sacerdócio ministerial dos apóstolos; antes da Missa não há ressurreição e consequente transmissão da Autoridade de Cristo aos apóstolos, nem missão universal de pregar o Evangelho (cf. Mt 28, 18-20); ou seja, o múnus sacerdotal, o múnus real e o múnus docente dependem da Missa; a Eucaristia (Sacramento e Sacrifício) é maior do que a Hierarquia, do que o Magistério e maior inclusive do que a Palavra de Deus Escrita! Porque a Missa é a Presença do Pão Vivo e Ressuscitado realizando a Redenção, a ressureição das almas! A Missa e o Corpo Eucarístico de Cristo são a realidade intencionada pela Fé enquanto tal realidade está presente no mundo; nos termos da Lumen Gentium, o Céu subsiste na Missa, e isto em sentido estritíssimo, e não metafórico. Sem Missa, não há Redenção dos pecados, não há Igreja; a “memória” de Cristo se converte em simples “lembrança” empírica, deixa de ser o Ato perpétuo de nossa salvação; o sacrifício do Calvário perde sua eficácia santificadora, pois se converte num mero fato imanente do passado. A Missa é a Tradição![31] Guardar a Tradição dos Apóstolos, é guardar a memória de Cristo, é guardar o Santo Sacrifício de Cristo. Nada é mais importante. E é através da Missa que tudo o mais ganha sua real dimensão, que a Palavra de Deus pode ser compreendida, ou que o Magistério pode interpretar corretamente a Revelação e cumprir sua missão com fidelidade e a Autoridade divina participada.
Antes de seguir, é necessário entender algo que Pio XII diz na Mediator Dei, que parece contradizer o que acabei de afirmar (destaques meus):
- […] O culto que ela [a Igreja] rende a Deus é, como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua profissão de fé católica, e um exercício da esperança e da caridade: “a Deus se deve honrar com a fé, a esperança e a caridade”. Na sagrada liturgia fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração dos divinos mistérios, com o cumprimento do sacrifício e a administração dos sacramentos, mas ainda recitando e cantando o Símbolo da fé, que é como o distintivo e a téssera dos cristãos, com a leitura de outros documentos e das sagradas letras escritas por inspiração do Espírito Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé católica enquanto atesta publicamente a fé da Igreja.
- Por esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos pontífices e os concílios, abeberando-se das chamadas “fontes teológicas”, não raramente tiraram argumentos também dessa sagrada disciplina, como fez, por exemplo, o nosso predecessor de imortal memória Pio IX quando definiu a imaculada conceição de Maria virgem. Do mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou conhecida e venerada a sentença: “A lei da oração estabeleça a lei da fé”. A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que “a lei da fé deve estabelecer a lei da oração”. O mesmo deve dizer-se ainda quando se trata das outras virtudes teológicas: “na… fé, na esperança e na caridade oramos sempre com desejo contínuo (Sto. Agostinho)”.
É evidente, por exemplo, que os elementos divinos instituídos por Cristo nos Sacramentos precedem o Magistério da Igreja. Não se trata, no que diz Pio XII, de tais elementos, mas de todos aqueles elementos com os quais a tradição eclesiástica enriqueceu a Liturgia cristã: orações, hinos, sequências e coisas do gênero, que foram compostas pelos Padres e pelos santos segundo a doutrina católica e, assim, constituem uma profissão da Fé que pode ser consultada pelo Magistério.
Voltando ao fio do argumento: da mesma forma que o Magistério não pode modificar as Escrituras, mas só explicá-la, o direito eclesiástico não pode modificar a Tradição Apostólica, e mais especialmente a Tradição por antonomásia, que são as instituições rituais antigas e veneráveis da Missa. Então, a questão de fundo não é simplesmente a do “costume” ou da “lei”, mas a da substância dos ritos entregues pela Tradição. O ponto é este: a estrutura essencial tradicional da Missa não é algo ao arbítrio do papa, mas é algo a ser reconhecido pelo direito eclesiástico associado ao Magistério infalível, porque se trata de Direito Divino, como argumenta o teólogo John Lamont:
[…] não é difícil ver que o próprio Rito Romano, e não simplesmente algumas das suas partes, é de origem divina. Podemos dar três argumentos suficientes para estabelecer esta conclusão, sem querer implicar que estes são os únicos argumentos que podem ser desenvolvidos em suporte dela.
A.
A opinião de que a liturgia é de origem divina é universalmente defendida pelos Padres da Igreja, e é ensinada de forma muito extensiva por eles. Um bom exemplo disto é a seguinte passagem da carta do Papa São Clemente I aos Coríntios, composta por volta de 92 d.C:
“Desde então, estas coisas são-nos manifestas, e temos olhado para as profundezas do conhecimento divino, devemos fazer todas as coisas que o Mestre nos ordenou que fizéssemos em momentos apropriados. Ele mandou-nos celebrar sacrifícios e serviços, e que não se deve fazer de forma irrefletida ou desordenada, mas sim a horas e horas fixas. Ele próprio fixou pela sua suprema vontade os lugares e pessoas que deseja para estas celebrações, a fim de que todas as coisas possam ser feitas piedosamente de acordo com o seu bom prazer, e sejam aceitáveis à sua vontade. Assim, aqueles que oferecem as suas oblações nas estações designadas são aceitáveis e abençoados, pois seguem as leis do Mestre e não cometem pecado. Pois ao Sumo Sacerdote são atribuídas as suas próprias ministrações, e aos sacerdotes foi nomeado o lugar adequado, e aos levitas foram impostos os seus serviços adequados. O leigo está vinculado pelas ordenanças para os leigos”.
As afirmações de Clemente não devem ser lidas como uma reivindicação puramente histórica sobre Cristo ter resolvido todos os detalhes da liturgia antes da sua Ascensão; tal reivindicação não teria sido compatível com a existência de variações nas liturgias da Igreja, que teriam sido bem conhecidas do Papa Clemente, como dos outros Padres. O seu argumento é que a estrutura geral e as características básicas da liturgia não são construções humanas, mas sim obra da autoridade divina, e este é o argumento feito pelos Padres como um todo (grifos meus). Uma vez que o consenso universal dos Padres é uma indicação suficiente de que o tema do seu consenso é uma parte da fé católica, a sua opinião sobre esta questão deve ser aceita.
B.
[…] é sobretudo o rito como um todo que desempenha a função de adorar a Deus e santificar os fiéis cristãos. Os componentes do rito estão subordinados ao rito como um todo, e existem para contribuir para o seu desempenho desta função. Mas é absurdo supor que os componentes de origem divina devem ser partes subordinadas que contribuem para o fim de um todo de origem humana.
C.
Segundo a Antiga Aliança, os judeus tinham uma liturgia que era de origem divina. […] Claro que esta liturgia utilizava elementos de origem humana que existiam antes da sua instituição divina, mas isso não significa que esses elementos não se tenham tornado de instituição divina uma vez incorporados na liturgia dos filhos de Israel. Mas é absurdo supor que os adoradores sob o Antigo Testamento gozariam de uma forma de culto e santificação de origem divina, enquanto os cristãos sob a Nova Aliança teriam de se contentar com uma forma de culto que fosse um mero desenvolvimento humano, embora incorporasse elementos divinos.
[…]
Podemos, portanto, concluir que o próprio Rito Romano, e não apenas alguns de seus componentes, é de instituição divina. […][32]
A “substância” dos Sacramentos em geral é visualizada com a doutrina hilemórfica: “Duas são as partes constitutivas de cada Sacramento. Uma tem a função de matéria, e chama-se ‘elemento’. A outra tem o caráter de forma, e leva a designação comum de ‘palavra’. Assim reza a doutrina tradicional dos Santos Padres”[33]. Assim, por exemplo, na Eucaristia, a “substância” seria composta pela “matéria” do pão e do vinho e pela “forma” das palavras da Consagração; no Batismo, a substância seria composta pela matéria da água e pela forma “N., eu te batizo etc.”; e assim por diante. Deve-se ter em vista que o Sacramento, enquanto “sinal sensível de uma graça invisível, instituído para a nossa justificação”[34], é, como diz Santo Tomás, uma “ação sensível”[35].
Dentro desta perspectiva, não se vê muito bem o nexo que une os “Sacramentos em sua essência” e os “ritos” ou “cerimônias” que recobrem os Sacramentos. O Catecismo Romano, por exemplo, diz que “as cerimônias não podem omitir-se sem pecado, a não ser que haja necessidade”, mas “sua omissão não reduz a validade do Sacramento”, já que “não são partes essenciais”; as cerimônias “tornam mais claros e quase visíveis os efeitos dos Sacramentos, e incutem mais ao vivo, no ânimo dos fiéis, a noção de sua santidade”; se “religiosamente observadas, despertam nos corações sentimentos sobrenaturais, e afervoram os participantes na prática da fé e da caridade”[36]. A verdade é que, deste modo, não se pode chegar a entender a razão teológica da configuração e das distinções dos Ritos litúrgicos; cai-se num juridicismo em que o rito se torna uma questão de mera “disciplina”, ao arbítrio absoluto do sujeito magisterial da ocasião. Assim, torna-se impossível compreender nossa atual crise litúrgica.
As reflexões teológicas do então Cardeal Ratzinger podem nos socorrer. Falando a respeito da concepção que reduz a autoridade magisterial ao âmbito do “infalível” (da definição dogmática extraordinária), ele aborda o tema análogo da Liturgia:
[tal reducionismo] significa, na prática, que só pode haver decisões magisteriais quando a Igreja puder apelar para a infalibilidade; fora desse terreno, a única coisa que conta seria o argumento, portanto uma certeza comum da Igreja tornar-se-ia impossível. Parece que nos deparamos aqui com uma restrição e um juridicismo tipicamente ocidental […] Um paralelo pode esclarecer o problema. Lá pelo século XIII começa a sobrepor-se a tudo a questão do que é necessário para a validade dos sacramentos. Visivelmente, o que passa a contar agora é exclusivamente a alternativa válido ou inválido. O que não afeta a validade aparece, em última análise, como não tendo grande importância, e como podendo ser substituído. Na Eucaristia, por exemplo, chega-se dessa forma a uma fixação sempre mais rígida nas palavras da consagração; o que realmente é constitutivo para a validade torna-se cada vez mais restrito. Com isso vai-se perdendo cada vez mais a visão para a estrutura viva do serviço divino. Fora as palavras da consagração, tudo mais termina sendo considerado apenas como cerimônia, que assumiu essa forma, mas que em princípio também poderia não existir. […] Uma parte importante da crise litúrgica da época da Reforma baseou-se nessas restrições, e também a crise litúrgica do presente só pode ser entendida a partir daqui. Quando hoje toda a liturgia passou a ser para muitas pessoas o terreno de uma “criatividade” privada, podendo manifestar-se da maneira como se achar melhor, contanto que as palavras da consagração permaneçam, nós continuamos diante da mesma restrição surgida de um desenvolvimento errôneo tipicamente ocidental, que na Igreja oriental seria totalmente impensável[37].
O ineditismo da crise litúrgica atual é que nos permite pensar com radicalidade a significação tradicional dos ritos litúrgicos, ou reconhecer sua origem divina, na esteira de John Lamont; ainda que o Concílio de Trento nos ajude a vislumbrar o caráter de Tradição Apostólica de certas realidades rituais:
Cap. 4. — O Cânon da missa
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- Sendo conveniente que as coisas santas se administrem santamente, e sendo este sacrifício entre todos o mais santo, instituiu a Igreja Católica já há muitos séculos o Cânon sagrado, tão purificado de todo o erro [cân. 6], que nele não há nada que não rescenda a suma santidade e piedade, nada que não eleve a Deus as almas dos que o oferecem. Pois ele se compõe das palavras do mesmo Senhor, como das tradições dos Apóstolos e das piedosas instituições dos Sumos Pontífices.
Cap. 5. — As cerimonias solenes do santo sacrifício da missa
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- Já que a natureza humana é tal, que não pode, facilmente e sem socorros exteriores, elevar-se a meditar as coisas divinas, por isso a Igreja, piedosa Mãe que é, instituiu certos ritos para se recitarem na missa, uns em voz submissa [cân. 9], outros em voz alta. Juntou a isto cerimonias [cân. 7], como bênçãos místicas, luzes, vestimentas e outras coisas congêneres da Tradição apostólica, com que se fizesse perceptível a majestade de tão grande sacrifício, e para que o entendimento dos fiéis se excitasse, por meio destes sinais visíveis da religião e da piedade, à contemplação das coisas altíssimas que se ocultam neste sacrifício.
A perspectiva estrutural da substância oferecida por Xavier Zubiri pode nos esclarecer (tal perspectiva será usada aqui de modo analógico – como, aliás, é usada a perspectiva hilemórfica –, pois se refere a substâncias naturais, não a realidades sobrenaturais nem acionais). Lida a partir da doutrina zubiriana, aquilo que a perspectiva clássica nos oferece é a “essência quididdativa” dos Sacramentos[38], que é invariável nos diversos Ritos (indivíduos) do mesmo Sacramento (espécie). A perspectiva sacramental clássica não dá razão da diversidade ou da individualidade dos Ritos litúrgicos, a qual pode ser explicada pela noção zubiriana da “essência constitutiva” (da qual a essência quidditativa é o “momento específico”): esta é uma unidade de notas “constitutivas”, “últimas” (“infundadas”), que configuram a essência constitutiva ou a identidade fundamental de um Rito, e destas (notas constitutivas ou essenciais) decorrem as notas “constitucionais”[39] (aquilo que é “próprio” em termos aristotélicos) da “estrutura substantiva” do Rito, mais as notas “adventícias” (acidentes) ou os conteúdos e partes rituais contingentes[40]. As distinções zubirianas apontam, portanto, para quatro âmbitos reais: i) a essência quidditativa, que é aquilo que classicamente assegura a “validade” do Sacramento; ii) a essência constitutiva, que é o mais essencial do Rito litúrgico, aquilo que o identifica ou o individualiza em relação aos demais Ritos do mesmo Sacramento; iii) a substância ou substantividade, que é a estrutura que decorre necessariamente da essência constitutiva e configura o que é próprio de um Rito; iv) as notas acidentais, que decorrem, não da constituição do Rito, mas das suas conexões, e constituem o âmbito do “reformável”.
Ademais, a perspectiva “operativa” também nos ajuda a esclarecer nossa questão: o “signo sensível” que é o sacramento é a ação religiosa humana significada com as palavras ditas sobre o elemento. Assim, por exemplo, o “signo” do Batismo é a “purificação espiritual”[41] (de modo que o sacramento cristão é como que uma elevação do batismo joanino); o “signo” da Confirmação é a “unção espiritual” (e o sacramento como que eleva a unção dos reis de Israel); o “signo” do Matrimônio é a “união indissolúvel de Cristo com a Igreja” (e o sacramento cristão eleva a união matrimonial natural), etc. Detenhamo-nos no nosso tema específico, a Eucaristia (que compendia e eleva todos os sacrifícios da antiga aliança).
Qual o “signo” da Eucaristia (qual a “ação eucarística”)? Tenhamos presente que a Eucaristia não é um “símbolo” de Jesus, mas é sua Presença Real por Transubstanciação (isto não está em questão). Segundo o Catecismo Romano, a Eucaristia, “cuja graça produz um só Corpo Místico”[42], significa (“recorda”) três coisas: a “Paixão de Cristo”, o “Alimento espiritual” e o “Penhor da glória eterna”[43]. Podemos dizer que o Céu ou a Eternidade se fazem presentes na adorável Presença Real de Cristo, que atualiza sua entrega ao Pai pelos nossos pecados e alimenta nossa alma no estado de viadores. Isto que chamamos classicamente de “signo sensível” (entendido como “ação sensível”, com um sentido racional proporcionado pelas palavras da “forma”) é o que Ratzinger chama de “forma” (Gestalt) na sua teologia litúrgica: trata-se da “essência estética”, da “figura” sacramental, que notifica sobre a “essência”, como bem entenderam os gregos em sua filosofia[44]. Contra aqueles teólogos que sustentavam que a “forma” da Missa era a de uma “ceia” (conforme Lutero), Ratzinger sustentou que
“Eucharistia” significa tanto o dom da “Communio”, na que o Senhor se faz comida para nós, como a entrega de Jesus Cristo, quem completa seu sim trinitário ao Pai com o sim da cruz, reconciliando-nos por este “sacrifício” com o Pai. Entre “comida” e “sacrifício” não há uma contradição: no novo sacrifício do Senhor ambas se fazem inseparáveis[45].
Assim, o conteúdo quiddidativo da Eucaristia é: a oblação de Cristo, a bênção eucarística sobre a comida e a bebida (em que se cumpre misticamente a imolação, o Céu desce à Terra, e agradecemos e louvamos a Deus por Cristo, com Ele e nEle), e a refeição sagrada. Conforme Zubiri, as notas essenciais (quiddidativas ou constitutivas, que aqui não importa a diferença) são “notas-de”, isto é, cada nota é nota das demais[46]. Enunciando, então, as três notas vistas como uma única ação estruturalmente coerente, nós teremos: a Oblação Eucarística do Pão da Vida[47].
As três notas essenciais da Eucaristia estão presentes, em primeiro lugar, nas palavras consecratórias ditas sobre o pão e o vinho (“essência quiddidativa” – que não é simplesmente a definição lógica –, comum a todos os ritos): “[Tomai e comei] Isto é meu Corpo” e “[Tomai e bebei] Isto é o Cálice do meu Sangue” significam a Presença que é Alimento espiritual[48]; “[Corpo] entregue por vós” e “[Cálice do Sangue] derramado por vós e por muitos para a remissão dos pecados” significam o Sacrifício expiatório[49]; “Sangue da Nova e Eterna Aliança” significam o Penhor da Vida Eterna (a antecipação do Céu)[50].
O que é a “essência constitutiva” de um Rito Eucarístico? A resposta, na realidade, é bastante óbvia: a Anáfora (como se diz no Oriente) ou Cânon (como se diz no Ocidente) – ou a Oração eucarística (como se diz hoje). Afirma Dom Prosper Guéranger que “o Canon Missae significa regra da missa, e essa parte é verdadeiramente o que constitui a missa: é o que se pode chamar missa por excelência”[51]. No Cânon[52], obviamente, também estão presentes as três notas essenciais: ele é a oração em que Cristo se faz Presente sob as espécies do pão e do vinho, imolando-se ao Pai e para nos alimentar espiritualmente. A ação de graças que se une ao louvor celestial está bem indicada no Prefácio e no Sanctus:
É verdadeiramente digno e justo, necessário e salutar que sempre e em toda a parte Vos demos graças, Senhor, Pai santo, Deus omnipotente e eterno, por Jesus Cristo Nosso Senhor, por quem louvam os Anjos a vossa majestade, a adoram as Dominações, a reverenciam as Potestades, a celebram os Céus e as Forças celestes, com os bem-aventurados Serafins, unidos todos em comum exultação. Juntas com as deles, Vos pedimos aceiteis as nossas vozes, que em súplice louvor Vos aclamam: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus das milícias celestes…
A Oblação e a Comunhão estão bens indicadas (sem deixar de lado a participação no louvor celestial) nas preces que se seguem à consagração, o Unde et memores, o Supra quae propitio e o Supplices te rogamus:
Por este motivo, Senhor, nós, vossos servos, e o vosso povo santo, recordando a feliz Paixão do mesmo Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, bem como a sua Ressurreição de entre os mortos e a sua gloriosa Ascensão aos céus, oferecemos à vossa preclara Majestade, dos dons de que Vós próprio nos fizestes mercê, a hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada, o pão santo da vida eterna e o cálix da eterna salvação.
Sobre estas ofertas, dignai-Vos lançar olhar propício e complacente […]
Suplicantes Vos rogamos, Deus omnipotente, façais que estas ofertas sejam levadas pelas mãos do vosso santo Anjo para o vosso sublime altar, à presença da vossa divina Majestade, a fim de que todos nós, que, comungando deste altar, recebermos o sacrossanto Corpo e Sangue do vosso Filho, sejamos cumulados de todas as bênçãos e graças celestes. Por jesus Cristo Senhor Nosso. Amém.
A Comunhão ou Alimento espiritual também estão indicados de modo especial na quarta petição do Pai Nosso, oração que termina o Cânon: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. “De cada dia”, em grego epiousios significa “supersubstancial” e “designa diretamente o Pão de Vida, o Corpo de Cristo”[53].
Tendo visto a “essência quididativa” e a “essência constitutiva” da Eucaristia, o que é a “substantividade”/“substância” do Rito Eucarístico? Dom Bernardo de Vasconcelos, monge português, no seu livro A Missa e a vida interior, diz-nos: “Ora, o sacrifício consiste essencialmente na imolação [do Cânon]. A oblação é apenas a sua preparação indispensável, como a Comunhão é o seu complemento necessário”[54]. A Oblação (Ofertório) e a Comunhão enquanto ritos distintos do Cânon são dele indissociáveis, como preparação e complemento. Os três ritos compõem a segunda parte da Missa, o conjunto chamado de “Sacrifício” no Missal tradicional (“Liturgia Eucarística” no novo missal), depois da primeira parte ou “Ante-Missa” (“Liturgia da Palavra” agora); nos Ritos Orientais é o conjunto “Proscomida-Anáfora-Comunhão”. A este conjunto, Santo Tomás se refere como “mistério”:
E, uma vez que o povo foi preparado e instruído desta maneira [na Ante-Missa], passa-se à celebração do mistério. Um mistério que se oferece como sacrifício, e se consagra e se toma como sacramento. Porque primeiro se faz a oblação, depois se consagra a matéria oferecida e, finalmente, se recebe esta oferenda[55].
A estrutura ritual fundamental é o desdobramento da essência sacramental (quiddidativa e constitutiva); como um organismo que se desenvolve a partir de um embrião (no qual já está presente a essência)[56]. E estes três momentos estruturais da Missa (a oblação, a oração eucarística e a refeição sagrada) estão significados e revelados nos verbos da narração da instituição da Eucaristia: “tomou”, “abençoou/deu graças”, “partiu e distribuiu/deu” (cf. Mt 26, 26-28; Mc 14, 22-24; Lc 22, 19-20; 1Cor 11, 23-25). A designação da bênção eucarística pelo verbos “abençoou”/“deu graças”, e a da comida sagrada pelos verbos “partiu e distribuiu”/“deu” são bem evidentes; a relação entre a “oblação” ou “oferta expiatória” de Cristo e o verbo “tomou” precisa ser elucidada.
Cristo “tomou” (λαμβάνω / accepit) o pão: literalmente, Ele pegou o pão com as mãos, separando-o do uso pascal judaico para o uso cristão que estava instituindo; entretanto, o que Cristo intencionou espiritualmente (pela inteligência e a vontade humanas, mas desde a consciência de ser o Verbo Encarnado) foi a sua Santíssima Carne humana, na qual o pão se converteria. A intenção correspondeu ao sentido ativo de “tomar”, e significava a assunção da natureza humana, a “Encarnação”, não como o ato pontual da concepção virginal, mas como o Mistério transcendental da vida do Verbo Encarnado, cujo termo é a assunção da própria morte humana (cf. Jo 13, 1). As Epístolas aos Filipenses e aos Hebreus acentuam este sentido ativo de “tomar” a natureza humana; a obediência de Cristo valeu-lhe sua “glorificação” pelo Pai, e valeu-nos nossa “santificação”, como afirmam respectivamente as duas epístolas:
Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus:
Ele tinha a condição divina,
e não considerou o ser igual a Deus
como algo a que se apegar ciosamente.
Mas esvaziou-se a si mesmo,
e assumiu a condição de servo,
tomando a semelhança humana.
E achado em figura de homem,
humilhou-se e foi obediente até à morte,
e morte de cruz!
Por isso Deus o sobreexaltou grandemente
e o agraciou com o Nome
que é sobre todo o nome (Fl 2, 5-9)
Por isso, ao entrar no mundo, ele afirmou:
Tu não quiseste sacrifício e oferenda.
Tu, porém, formaste-me um corpo.
Holocaustos e sacrifícios pelo pecado
não foram do teu agrado.
Por isso eu digo:
Eis-me aqui, – no rolo do livro
está escrito a meu respeito –
eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.
[…] E graças a esta vontade é que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas (Hb 10, 5-7.10)
Cristo “tomou” o cálice: aqui o que o Senhor intencionou espiritualmente foi a sua morte sacrificial ou o seu Preciosíssimo Sangue, no qual o vinho se converteria. Aqui a intenção correspondeu ao sentido passivo de “tomar”, isto é, “receber”, e significava a sua “Paixão”, na qual carregava os pecados dos homens, aceitando como Cordeiro Inocente de Deus o castigo que deveria recair sobre nós, para nos redimir da culpa, salvando-nos da condenação e nos reconciliando com o Pai. A profecia de Isaías, a oração de Cristo no Horto das Oliveiras, a segunda Epístola aos Coríntios e a primeira Epístola de S. Pedro acentuam este sentido passivo de “tomar” os nossos pecados para purificar-nos; temos a “satisfação” de nossa pena (cf. S.Th. III, q.49 a.3) e a nossa “justificação”:
E no entanto, eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava. […] O castigo que havia de trazer-nos a paz caiu sobre ele, sim, por suas feridas fomos curados (Is 53, 4a.5b).
E, indo um pouco adiante, prostrou-se como rosto em terra e orou: “Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres (Mt 26, 39. 42. 44; Mc 14, 35-36.39; Lc 22, 41-44; cf. Jo 4, 34)
Sobre o madeiro, levou os nossos pecados
em seu próprio corpo,
a fim de que, mortos para os nossos pecados,
vivêssemos para a justiça (1Pe 2, 24).
Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus (2Cor 5, 21).
A “bênção” ou a “ação de graças” de Cristo sobre o pão e o vinho intencionam – desde o início da oração e não tão somente a partir da consagração – seu Corpo e Sangue, e não os elementos naturais da criação; por isso, o Ofertório tradicional tem o caráter expiatório que tem: ele não é uma “duplicata” do Cânon, mas uma antecipação intencional que manifesta o Sacrifício pelos pecados. Na Eucaristia, Cristo dá graças pela sua Santíssima Humanidade que nos redime pela sua morte na Cruz, agradece pelo bem que o Pai fez e faz por meio dEle, pelo Bem e pela Graça que é Ele mesmo, mas que Ele reconhece como sendo do Pai, devolvendo-Se com gratidão: da mesma forma que o Verbo Eterno não se apegou à Divindade, o Verbo Encarnado não se apegou à obra da Redenção. E na refeição sagrada, na Santíssima Comunhão, “tomamos” e comemos o Pão transubstanciado, isto é, participamos intimamente da Vida de Cristo, associando-nos à sua ressurreição; e “tomamos” e bebemos o Vinho transubstanciado, isto é, participamos intimamente da Morte de Cristo, associando-nos à sua vitória sobre o pecado (pela concomitância natural, a comunhão do Corpo também é comunhão com o Sangue)[57].
Voltemos agora à Bula de S. Pio V. Já havíamos constatado que ela não “criou” um Rito. Já entendemos que o Rito litúrgico, e não apenas a essência quidditativa do Sacramento, deve ser considerada uma realidade revelada – e não tão somente uma “disciplina”, e nem apenas um “costume venerável”. Já estabelecemos bem, a partir do Magistério, da fundamentação metafísico-teológico e escriturística, a essência constitutiva (que é o Cânon) e a constituição estrutural ou substantiva do Rito (que é o “Sacrifício: Oblação-Cânon-Comunhão). Leiamos a Bula[58] e poderemos confirmar como S. Pio V e sua Bula reconhecem o Rito Romano revelado (negritos meus):
PIO BISPO
Servo dos Servos de Deus
Para perpétua memória
1 – Desde que fomos elevados ao ápice da Hierarquia Apostólica, de bom grado aplicamos nosso zelo e nossas forças e dirigimos todos os nossos pensamentos no sentido de conservar na sua pureza tudo o que diz respeito ao culto da Igreja; o que nos esforçamos por preparar e, com a ajuda de Deus, realizar com todo o cuidado possível.
2 – Ora, entre outros decretos do Santo Concílio de Trento cabia-nos estabelecer a edição e correção dos livros santos: Catecismo, Missal e Breviário.
3 – Com a graça de Deus, já foi publicado o Catecismo, destinado à instrução do povo, e corrigido o Breviário, para que se tributem a Deus os devidos louvores. Outrossim, para que ao Breviário correspondesse o Missal, como é justo e conveniente (já que é soberanamente oportuno que, na Igreja de Deus, haja uma só maneira de salmodiar e um só rito para celebrar a Missa), parecia-nos necessário providenciar, o mais cedo possível, o restante desta tarefa, ou seja, a edição do Missal.
Até aqui temos o “fim” procurado pela Bula, como afirmou o Pe. Dulac: que haja um Missal idêntico que, pela unidade da prece pública, proteja e desenvolva a unidade da Fé[59], ou melhor, “conserve na sua pureza tudo o que diz respeito ao culto da Igreja”, no dizer do próprio S. Pio V.
4 – Para tanto, julgamos dever confiar este trabalho a uma comissão de homens eruditos. Estes começaram por cotejar cuidadosamente todos os textos com os antigos de nossa Biblioteca Vaticana e com outros, quer corrigidos, quer sem alteração, que foram requisitados de toda parte. Depois, tendo consultado os escritos dos antigos e de autores aprovados, que nos deixaram documentos relativos à organização destes mesmos ritos, eles restituíram o Missal propriamente dito à norma e ao rito dos Santos Padres.
Aqui temos o “método” do estabelecimento do Missal, como disse Dulac:nenhuma fabricação artificial entre uma quantidade de outras imagináveis, nenhuma reforma radical, mas uma restauração do Missal Romano primitivo[60], segundo “a norma e o rito dos Santos Padres”. Não porque então se imaginasse que o Missal de 1570 fosse materialmente o mesmo rezado por S. Gregório Magno, por exemplo, mas porque se concluiu que ele era segundo o critério dos Santos Padres; em outras palavras, porque aquele Missal de 1570 é o que S. Gregório Magno reconheceria como o seu Missal tendo atingido a forma madura (e depurado das incrustações ou impurezas que foram acrescidas no seu desenvolvimento orgânico), de modo análogo a como qualquer Padre da Igreja reconheceria, no dogma do Decreto tridentino sobre a Eucaristia, a forma definitiva das suas noções teológicas sobre o Corpo e o Sangue de Cristo. O sentido da pesquisa da comissão de eruditos não era científico-empírico – não era uma espécie de escavação arqueológica em busca da “celebração mais primitiva” – mas teológico-transcendental: o buscado era o “fundo” do que havia naquele momento; a suposição não era a de que “a Tradição não havia chegado até o século XVI”, mas a de que ela estava mesclada a equívocos; o encontrado foi aTradição litúrgica romana em sua plenitude atual [“atual” em sentido metafísico].
5 – Este Missal assim revisto e corrigido, Nós, após madura reflexão, mandamos que seja impresso e publicado em Roma, a fim de que todos possam tirar os frutos desta disposição e do trabalho empreendido, de tal sorte que os padres saibam de que preces devem servir-se e quais os ritos, quais as cerimônias, que devem observar doravante na celebração das Missas.
6 – E a fim de que todos, e em todos os lugares, adotem e observem astradições da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igrejas, decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas: nas Igrejas Patriarcais, Catedrais, Colegiais, Paroquiais, quer seculares quer regulares, de qualquer Ordem ou Mosteiro que seja, de homens ou de mulheres, inclusive os das Ordens Militares, igualmente nas Igrejas ou Capelas sem encargo de almas nas quais a Missa conventual deve, segundo o direito ou por costume, ser celebrada em voz alta com coro, ou em voz baixa, segundo o rito da Igreja Romana, ainda quando estas mesmas Igrejas, de qualquer modo isentas, estejam munidas de um indulto da Sé Apostólica, de costume, de um privilégio, até de um juramento, de uma confirmação apostólica ou de quaisquer outras espécies de faculdades. A não ser que, ou por uma instituição aprovada desde a origem pela Sé Apostólica, ou então em virtude de um costume, a celebração destas Missas nessas mesmas Igrejas tenha um uso ininterrupto superior a 200 anos. A estas Igrejas Nós, de maneira nenhuma, suprimimos nem a referida instituição, nem seu costume de celebrar a Missa; mas, se este Missal que acabamos de editar lhes agrada mais, com o consentimento do Bispo ou do Prelado, junto com o de todo Capítulo, concedemos-lhes a permissão, não obstante quaisquer disposições em contrário, de poder celebrar a Missa segundo este Missal.
Aqui se encontra um elemento fundamental, que não costuma ser visto: o decreto tem como objeto primário a Missa, e não o “Missal Romano”: a Missa deve ser cantada ou rezada conforme o Missal. É um decreto que refere o Missal diretamente às “tradições da Santa Igreja Romana”, isto é, a Tradição apostólica de S. Pedro e S. Paulo; refere-se à Tradição com maiúscula, e não às tradições eclesiásticas contingentes – Tradição que abriga também os ritos veneráveis que já tinham mais de 200 anos[61]. É um decreto associado aos decretos tridentinos dogmáticos sobre o Sacrifício da Missa e a Eucaristia e, assim, é um decreto que participa da autoridade destes decretos. É um decreto, reitero, que reconhece a Tradição apostólica sobre o Rito da Missa, e o dá por perfeito, acabado, tendo atingido seu telos. Prossigamos.
7 – Quanto a todas as outras sobreditas Igrejas, por Nossa presente Constituição, que será válida para sempre, Nós decretamos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que o uso de seus missais próprios seja supresso e sejam eles radical e totalmente rejeitados; e, quanto ao Nosso presente Missal recentemente publicado, nada jamais lhe deverá ser acrescentado, nem supresso, nem modificado. Ordenamos a todos e a cada um dos Patriarcas, Administradores das referidas Igrejas, bem como a todas as outras pessoas revestidas de alguma dignidade eclesiástica, mesmo Cardeais da Santa Igreja Romana, ou dotados de qualquer outro grau ou preeminência, e em nome da santa obediência, rigorosamente prescrevemos que todas as outras práticas, todos os outros ritos, sem exceção, de outros missais, por mais antigos que sejam, observados por costume até o presente, sejam por eles absolutamente abandonados para o futuro e totalmente rejeitados; cantem ou rezem a Missa segundo o rito, o modo e a norma por Nós indicados no presente Missal, e na celebração da Missa, não tenha a audácia de acrescentar outras cerimônias nem de recitar outras orações senão as que estão contidas neste Missal.
A ordem de nada acrescentar, suprimir ou modificar, não diz respeito aos detalhes acidentais (notas adventícias), mas à substância do Rito ou às notas constitucionais que se depreendem da essência do Sacramento e configuram o sistema Ofertório (que significa a oblação expiatória de Cristo, não uma oferta do pão e vinho naturais) – Cânon – Comunhão (com suas características peculiares: de joelhos e na boca). Assim o entenderam os Papas até João XXIII (ainda que a supressão do Confiteor antes da comunhão e o acréscimo do nome de S. José no Cânon sejam questionáveis, como vimos). A “substância do Rito Romano” canonizada é aquela estrutura fundamental revelada implicitamente nas palavras consecratórias (na “forma” em sentido clássico) e na narrativa da instituição (nos verbos “tomou”, “deu graças” e “partiu e distribuiu”).
Se, por um lado, as conclusões de Davies e dos tradicionalistas são tímidas, por outro, uma vez que determinamos bem o que é a essência intocável, tradicional, revelada, do Missal Romano, podemos dizer o seguinte: simplificações prudentes no prólogo da Missa (orações ao pé do altar), enriquecimento das orações de Coleta com textos antigos, enriquecimento de valor catequético-pastoral no ciclo de leituras bíblicas (e que elas sejam lidas em vernáculo), traduções fiéis e supervisionadas ao vernáculo das partes não essenciais do Rito (preservando o Kyrie em grego e o Gloria em latim em vistas do Canto Gregoriano), inserções de valor pastoral de ritos antigos que poderiam se reintegrar organicamente, como as preces (que deveriam efetivamente ser necessidades concretas da comunidade, trazidas pelos fiéis, pois as necessidades universais da Igreja e do mundo já estão contempladas nas intercessões do sacerdote) ou a procissão dos dons (como antessala do Ofertório, e não como parte dele, como um signo de despojamento, junto com a coleta para a caridade, e não como um emblema do “nosso trabalho”), autorização para cantos religiosos populares verdadeiramente sóbrios, devotos e harmoniosos… nada disso atenta em princípio contra o que foi estabelecido com valor dogmático pela Bula de S. Pio V[62]. E tudo isso já constituiria um âmbito bastante amplo para uma excelente reforma pastoral do Missal Romano tradicional, sem modificação do rito (sem fabricação de um novo rito). Mas o sentido expiatório do Ofertório, o Cânon em sua integridade (e em língua latina e a voz submissa) e a comunhão na sua forma específica, como foram reconhecidos/estabelecidos por S. Pio V são intocáveis, são a substância ou a estrutura fundamental do Rito Romano revelado, em seu estágio acabado, que deve durar até a volta de Cristo.
“Ah, mas Jesus não fez aquelas preces do Ofertório!”, “o Ofertório como o do Missal de Pio V é uma inserção tardia etc.”. Ora, Jesus também não ensinou diretamente o conceito de “transubstanciação”, e este dogma é do século XVI, mas tal conceito ou tal definição é a verdade da Eucaristia; também não rezou Ele diretamente o Cânon Romano… A inteligência, a vontade e o coração de Cristo já intencionavam, na véspera da Sua Paixão, a estrutura essencial do Missal de S. Pio V – bem como as de todos os ritos antigos e veneráveis, de origem apostólica. O que Cristo então instituiu já era incoativamente o Missal de S. Pio V. Aqui é preciso inteligência para entender.
A mesma negação protestante da Presença Real e do Sacrifício incruento da Missa, que foi a causa ocasional para o Magistério infalível definir os dogmas eucarísticos, também foi a causa ocasional para a Santa Igreja definir o teor perpétuo da estrutura essencial da Eucaristia. Até porque não faria sentido que uma coisa se desse sem a outra: o dogma da Missa é uma abstração da realidade do rito da Missa.
À luz de todas as considerações feitas, entende-se muito melhor o sentido do Decreto sobre a Comunhão do Concílio de Trento, quando afirma o poder da Igreja na “administração” dos Sacramentos:
Cap. 2. — O poder da Igreja de administrar este sacramento
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- Declara mais [este sagrado Concílio] que a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar [dispensar, no latim] os sacramentos [está efetivamente no plural no latim], determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares. Isto parece ter insinuado claramente o Apóstolo com estas palavras: Assim nos considere o homem como ministros de Cristo e dispenseiros dos mistérios de Deus(l Cor 4, l). E consta claramente que ele mesmo usou deste poder, tanto em relação a este sacramento, como em se tratando de muitas outras coisas, pois, após ordenar algumas coisas a respeito de seu uso, diz: O resto disporei quando vier(l Cor l, 34). Por este motivo, conhecendo a santa madre Igreja: a sua autoridade na administração dos sacramentos, muito embora no princípio da religião cristã fosse não pouco frequente o uso de ambas as espécies, contudo, tendo-se mudado muito aquele costume com o correr dos tempos, movida por graves e justas causas, aprovou este costume de comungar sob uma só espécie, e decretou tivesse isso valor de lei, a qual não é lícito reprovar nem alterar sem autoridade da mesma Igreja [cân. 2].
Embora se trate de um Decreto sobre a Comunhão, é possível interpretar os “sacramentos” em sentido amplo, como se o trecho se referisse à “dispensação sacramental” em geral: não é ilógico pensar que a Igreja, no interior do decreto sobre a administração da comunhão, emitisse um princípio geral sobre os sacramentos. Mas é um salto lógico considerar que está sendo considerada formalmente a estrutura ritual do Sacrifício da Missa (que é conforme à essência do Sacramento e do Rito).
É certo que o objeto formal deste caput é a autoridade da Igreja na determinação da “administração” ou distribuição da Eucaristia aos fiéis: por exemplo, nas duas espécies ou em uma, de pé ou de joelhos, com as mãos ou com pinça… mantida sempre a “substância” (a matéria do pão e vinho e a forma consecratória, no sentido da teologia sacramental clássica). A analogia com os demais sacramentos diz respeito ao modo como estes puderam ou podem ser administrados aos fiéis: por exemplo, batismo por imersão ou aspersão, confissão possível uma única vez na vida (nos primórdios) ou reiteradamente (sendo então obrigatória 1 vez por ano), crisma aos recém-nascidos ou na idade juvenil… O trecho abaixo da Mediator Dei de Pio XII esclarece:
-
- O ulterior desenvolvimento da disciplina eclesiástica na administração dos sacramentos, por exemplo, do sacramento da penitência, a instituição e depois o desaparecimento do catecumenato, a comunhão eucarística sob uma só espécie na Igreja latina, contribuíram não pouco para a modificação dos antigos ritos e a gradual adoção de novos e mais condizentes com as disposições disciplinares mudadas.
A palavra “administração” (dispensação no original) significa a concessão dos sacramentos, não a celebração. Refere-se a um aspecto particular do rito, sua outorga, não à inteira estrutura celebrativa. Pelo contexto e objetivo do texto – a comunhão sacramental –, a coisa fica ainda mais clara.
Voltando à Bula, o que se segue diz respeito ao indulto para todo padre poder sempre celebrar a Missa com o Missal restaurado (n. 8) e à perpetuidade da Bula (n. 9):
8 – Além disso, em virtude de Nossa Autoridade Apostólica, pelo teor da presente Bula, concedemos e damos o indulto seguinte: que, doravante, para cantar ou rezar a Missa em qualquer Igreja, se possa, sem restrição seguir este Missal com permissão e poder de usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma pena, sentença e censura, e isto para sempre.
9 – Da mesma forma decretamos e declaramos que os Prelados, Administradores, Cônegos, Capelães e todos os outros Padres seculares, designados com qualquer denominação, ou Regulares, de qualquer Ordem, não sejam obrigados a celebrar a Missa de outro modo que o por Nós ordenado; nem sejam coagidos e forçados, por quem quer que seja, a modificar o presente Missal, e a presente Bula não poderá jamais, em tempo algum, ser revogada nem modificada, mas permanecerá sempre firme e válida, em toda a sua força.
Que o Missal de S. Pio V (com as reformas até 1962) nunca tenha sido ab-rogado é confirmado pelo Motu Proprio Summorum Pontificum, de 2007, do Papa Bento XVI[63]. Agora, a perpetuidade da Bula se funda, não na autoridade eclesiástica suprema de Pio V – idêntica à de Paulo VI –, mas na perpetuidade do caráter tradicional, revelado, da Liturgia Romana então purificada e codificada: esta última é que determina a perpetuidade da primeira, e não o contrário. O Missal de S. Pio V nunca foi e nunca será ab-rogado (em sua parte essencial) porque isto significaria ab-rogar… a Liturgia Romana de São Pedro e São Paulo! De São Gregório Magno, de São Pio V e de todos os Papas até o CVII.
Saltando os nn. 10-13, vejamos como termina a Bula:
14 – Assim, portanto, que a ninguém absolutamente seja permitido infringir ou, por temerária audácia, se opor à presente disposição de nossa permissão, estatuto, ordenação, mandato, preceito, concessão, indulto, declaração, vontade, decreto e proibição.
Se alguém, contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições, saiba que incorrerá na indignação de Deus Todo-poderoso e de seus bemaventurados Apóstolos Pedro e Paulo.
Dado em Roma perto de São Pedro, no ano da Encarnação do Senhor mil quinhentos e setenta, no dia 14 de Julho, quinto de Nosso Pontificado – Pio Papa V.
Por fim, a Missa Católica ou o Sacrifício de Cristo veio substituir o sacrifício do Templo, mas ela só poderia assumir histórica e publicamente a forma gregoriana – que é basicamente a de S. Pio V – após o cumprimento de duas condições: o fim do Templo israelita, e o reconhecimento público da Igreja de Deus.
Notas
[1] DAVIES, Michael. A missa nova de Paulo VI. Tradução de Fabiano Rollim. Niterói: Permanência, 2019, p. 31.
[2] Ibid., loc. cit.
[3] Ibid., p. 32.
[4] Citado conforme o Catecismo da Igreja Católica, n. 1345.
[5] DAVIES, op. cit., pp. 32-33.
[6] Ibid., p. 33.
[7] Ibid., loc. cit.
[8] Ibid., p. 34.
[9] Ibid., loc. cit.
[10] Ibid., pp. 34-35.
[11] Cf. D. PRÓSPER GUÉRANGER, Missa Tridentina: Explicações das orações e das cerimônias da Santa Missa”. Tradução de Anna Luíza Fleischmann. Niterói: Permanência, 2010.
Há uma pequena discrepância com as informações que Davies traz acima sobre a as orações ao pé do altar e o ofertório, mas não é algo relevante para o problema de fundo.
[12] DAVIES, op. cit., p. 35.
[13] Ibid., pp. 35-36.
[14] Ibid., p. 36 (negritos meus).
[15] Ibid., loc. cit. (negritos meus).
[16] RATZINGER, Josep. La fiesta de la fe: Ensayo de Teología Litúrgica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1999, p. 116.
[17] Ibid., p. 37.
[18] Ibid., pp. 38-39 (destaques meus).
[19] Ibid., p. 39.
[20] Ibid., pp. 39-40.
[21] Ibid., p. 40.
[22] Ibid., loc. cit.
[23] Ibid., loc. cit.
[24] Ibid., p. 41.
[25] Ibid., loc. cit.
[26] Ibid., loc. cit.
[27] REID, Dom Alcuin. The Organic Development of the Liturgy. Ignatius Press. Edição do Kindle.
[28] LAMONT, John. “Disputa sobre o Missal de 1970 (Parte 1)”. Tradução de Witor Lira. Disponível em: http://dialogos-institute.org/blog/wordpress/disputation-on-the-1970-missal-part-1-dr-john-lamont/.
O autor diz ainda que “mesmo um concílio ecumênico não tem o poder de alterar a tradição divina”.
[29] JOÃO PAULO II, Carta Encíclica sobre a Eucaristia na sua relação com a Igreja Ecclesia de Eucharistia. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/special_features/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_20030417_ecclesia_eucharistia_po.html
[30] Cf. PIO XII, Encíclica Mediator Dei sobre a Liturgia. Disponível em: http://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-dei.html
[31] “A Tradição inclui não apenas um patrimônio da verdade, mas também um conjunto de preceitos morais, regras litúrgicas e normas de governo eclesiástico. Não existe expressão mais densa da Tradição do que a liturgia, em que a Fé e a Tradição se encontram” (MATTEI, Roberto de. Apologia da Tradição. São Paulo: Ambientes & Costumes, 2013, p. 89; grifos meus).
[32] LAMONT, “Disputa sobre o Missal de 1970 (Parte 1)”.
[33] Catecismo Romano, Parte II, cap. 1, § 10.
[34] CONCÍLIO DE TRENTO, Sessão XXIII, cap. 3.
[35] Cf. S.Th., III, q.60 a.6 ad 2.
[36] Catecismo Romano, Parte II, cap. 1, § 13.
[37] RATZINGER, Natureza e Missão da Teologia, p. 96.
[38] Cf. ZUBIRI, Sobre la esencia. 5ª ed. Madrid: Alianza Editorial & Fundación Xavier Zubiri, 1985, p. 221ss.
[39] Cf. Ibid., pp. 188-189.
[40] Ibid., p. 137; p. 206.
[41] Como diz Sto. Tomás: “A água, de fato, pode significar tanto ablução por sua umidade como refrigério por seu frescor. Mas quando se diz eu te batizo se dá a entender que no batismo empregamos a água para significar uma purificação espiritual” (S.Th., III, q.60 a.6).
[42] Catecismo Romano, Parte II, cap. 4, § 10.
[43] Cf. Catecismo Romano, Parte II, cap. 4, § 11.
[44] Diz Xavier Zubiri: “Como a figura (no sentido lato do vocábulo) que as coisas oferecem à visão o grego chamou eidos, o problema desse modo de saber ficou intimamente vinculado ao problema de discernir inequivocamente as coisas por seu eidos, apoiando-se na impressão real e efetiva que elas produzem sobre o homem. Está envolto, assim, nesse modo de saber um modo de sentir, graças ao qual temos notícia das coisas, na acepção etimológica do vocábulo latino, que possui a mesma raiz do grego: a visão das notas do objeto” (ZUBIRI, Natureza, História, Deus, pp. 101-102).
[45] RATZINGER, Joseph. La fiesta de la fe, p. 66.
[46] Cf. ZUBIRI, Sobre la esencia, p. 359.
[47] Na sua confecção, o Sacramento Eucarístico é inseparável do Sacrifício Eucarístico. O Sacramento, entretanto, permanece após o término do Sacrifício ritual. A Presença de Cristo no sacrário, contudo, e a respectiva adoração do fiel, remetem sempre ao Sacrifício de nossa Redenção no qual o Sacramento foi confeccionado, e ao Céu que ele nos abriu: “O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho – resulta da celebração da Eucaristia e destina-se à comunhão, sacramental e espiritual” (JOÃO PAULO II, Ecclesia de Eucharistia, n. 25).
[48] “A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real de suas palavras (cf. Jo 6, 53. 55).
Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espírito. […]” (JOÃO PAULO II, op. cit., nn. 16-17).
[49] “A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através de uma lembrança cheia de fé, mas também com um contato atual, porque este sacrifício volta a estarpresente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma ver para sempre por Cristo para a humanidade de todos os tempos. […]
A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial. […]
Em virtude de sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual. Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo 10, 17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. […]” (Ibid., nn. 12-13).
[50] “[…] Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o homem na sua totalidade. De fato, na Eucaristia recebemos a garantia também da ressurreição do corpo no fim do mundo […]
A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste. […]” (Ibid., nn. 18-19).
[51] GUÉRANGER, Missa tridentina, p. 86.
[52] As citações das preces do Cânon serão feitas segundo o Missal Romano Quotidiano de Dom Gaspar Lefebvre.
[53] Catecismo da Igreja Católica, n. 2837.
“Pedimos esse pão não somente para o corpo, mas também para alma, que tem necessidade de ser alimentada. Por isso, um dos evangelistas diz aqui: Panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie (Mt 6, 11). Esse pão que está sobre o altar está ali para alimentar as almas, e é o momento certo para pedi-lo a Deus” (GUÉRANGER, Missa tridentiva, p. 137).
“Nosso pão por excelência é o próprio Cristo Nosso Senhor, enquanto mantém Sua presença substancial no Sacramento da Eucaristia” (Catecismo Romano, Parte IV, cap. 13, § 20).
[54] VASCONCELOS, Dom Bernardo de. A Missa e a vida interior. 2ª ed. São Paulo: Livre, 2020.
[55] S.Th. III, q.83, a.4 (negritos meus).
“Mesmo assim reduzida [sem a parte anterior da missa, com o conjunto de leituras], a eucaristia compreende ainda três partes principais. Em primeiro lugar há uma preparação, que chamamos de ofertório. A seguir vem o sacrifício eucarístico propriamente dito, constituído pela grande prece de ação de graças pronunciada sobre os elementos do pão e do vinho. E enfim há a distribuição dos elementos consagrados à comunidade dos fiéis” (DANIÉLOU, Jean. Bíblia e Liturgia: A teologia bíblica dos sacramentos e das festas nos Padres da Igreja. 1ª reimpressão. São Paulo: Paulinas, 2018, p. 147).
[56] É importante destacar que a Tradição apostólica litúrgica se desenvolve de modo análogo à Tradição apostólica doutrinária. Assim como, com o tempo, os dogmas vão ficando mais claros com a contribuição da meditação dos santos, dos papas, com o encontro providencial com as filosofias, também os ritos vão se enriquecendo organicamente e a partir dos encontros com outros ritos; e a celebração vai expressando melhor, nesse desenvolvimento, aquilo que expressava de modo incoativo nos primórdios.
A Tradição é uma realidade sobrenatural, que se desenvolve segundo a metafísica da potência e do ato, não é um apanhado de doutrinas e instituições estanques. Assim como não é razoável preferir a humilde filosofia verdadeira de S. Justino à do Doutor Angélico, também não é possível preterir a forma plena alcançada pelo Rito Romano no Missal tridentino em nome do relato simples de Justino sobre a Missa.
A propósito, o relato do santo mártir e filósofo, que citamos mais acima, depois de mencionar as leituras, a homilia, as preces e o ósculo da paz (que então antecedia o ofertório, como sugerido no Evangelho), descreve precisamente o ofertório (numa forma simples, que não continha explicitamente as preces expiatórias), a oração eucarística e a comunhão. Ela é um critério seguro da estrutura substantiva dos Ritos Eucarísticos, embora não o seja a respeito do teor teológico do “ofertório”.
[57] Se nos voltarmos agora ao Sacerdócio católico, estamos mais aptos a compreender sua sublimidade: o sacerdote é alguém que deve subir ao altar com a mesma disposição de Cristo na Paixão. A isto é que com propriedade se deve chamar “a intenção da Igreja” para a validade da Missa (obviamente, basta uma intenção volitiva transcendental do sacerdote – que é seu assentimento ao sentido de sua ordenação –, não há necessidade de infinitas reiterações empíricas da intenção, nem tampouco dos afetos sensíveis correspondentes). Rigorosamente falando, a vocação ao sacerdócio implica intrinsecamente a vocação ou o dom ao martírio (ainda que a vocação ao martírio seja mais ampla que a primeira); o candidato que não encontrasse em si esta disposição, poderia estar certo de que ainda não chegou a hora de sua ordenação, ou poderia cogitar que esse talvez não seja seu chamado. Ai… Que grande mi(ni)stério é o sacerdócio!
[58] PIO V, Bula Quo Primum Tempore. Disponível em: http://www.montfort.org.br/bra/documentos/decretos/quoprimum/
[59] Cf. DAVIES, op. cit., p. 41.
[60] Cf. Ibid., loc. cit.
[61] “A razão para haver uma diversidade de ritos na Igreja Católica é sem dúvida porque tal diversidade permite uma apresentação mais completa desta tradição” (LAMONT, “Disputa sobre o Missal de 1970 [Parte 1]”).
[62] “A afirmação de que o rito como um todo, e alguns, mas não todos os seus elementos, são de origem divina, é obviamente compatível com o fato de alguma mudança no rito ao longo do tempo” (LAMONT, “Disputa sobre o Missal de 1970 [Parte 1]”).
[63] Cf. BENTO XVI, Carta Apostólica sob forma de Motu Próprio Summorum Pontificum. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/motu_proprio/documents/hf_ben-xvi_motu-proprio_20070707_summorum-pontificum.html