Sobre o Perenialismo

  • Autor: Joathas Soares Bello

a) APRESENTAÇÃO DO “PERENIALISMO”

O que é a doutrina “perenialista” ou “tradicionalista” (não confundir com o “tradicionalismo católico”, que critica o Concílio Vaticano II e a nova liturgia da Missa, em diversos graus)? E a chamada “unidade transcendente das religiões”, associada a tal doutrina?

Vejamos o que nos diz o filósofo Olavo de Carvalho, figura autorizada a respeito do tema; de acordo com ele, o perenialismo é:

  • “um universalismo no sentido forte da palavra, uma visão abrangente e ordenadora que não somente apreende com extrema agudeza os pontos comuns entre as várias cosmovisões espirituais, mas dá a razão e fundamento da sua diversidade, de modo que a essa articulação do uno e do múltiplo se subordina, na verdade, toda a história universal das idéias e das crenças, das teorias e práticas…” (cf. CARVALHO, Olavo de. “As garras da Esfinge – René Guénon e a islamização do Ocidente”. In: Verbum, Ano I, Números 1 e 2, Julho-Outubro de 2016).

Não se trata, portanto, de um sincretismo religioso como o da chamada “Nova Era”, nem de uma proposta de diálogo interreligioso, como a da Nostra Aetate, mas de uma doutrina abrangente que, segundo o Olavo de Carvalho, conseguiria ordenar as tradições espirituais (os perenialistas falam das “grandes tradições religiosas da humanidade”: o Hinduísmo, o Budismo, o Taoísmo, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islã), articulando os aspectos comuns (a “unidade transcendente” ou “esotérica”) e explicando as diferenças (as doutrinas e ritos particulares ou o componente “exotérico”).

Essa distinção entre o “esotérico” e o “exotérico” é muito importante no perenialismo, e ela significa a distinção entre “o que está no interior” e “o que está no exterior”, entre o “oculto” e o “público”, entre o que só pode ser reconhecido por um círculo restrito e o que pode ser dado a conhecer para todos. Assim, no perenialismo o “esoterismo” seria a suposta doutrina ou tradição perene, comum a todas as grandes tradições religiosas, que só os “metafísicos” (sic) podem ver, e o “exoterismo” corresponderia às características particulares de cada tradição religiosa, tal como podem ser conhecidas por todos os crentes e por todos os de fora.

Segue o Olavo de Carvalho:

  • “O que confere ainda mais autoridade ao ensinamento perenialista é a afirmação reiterada de seus expositores, de que ele não é invenção sua, mas o mero traslado, em linguagem teórica atual, de revelações imemoriais que remontam a uma Fonte originária única, a Tradição Primordial. Afirmação […] fundamentada numa superabundância de provas documentais, de argumentos racionais, de toda uma ciência organizada do simbolismo universal e do comparatismo”.

Para os perenialistas, o fundo transcendente comum seria a “tradição primordial” (que remonta a Adão), preservada no núcleo de todas as “grandes religiões”. Para Olavo, esta tese estaria “provada”, ele concorda, fundamentalmente, com a “unidade transcendente das religiões”, com o perenialismo.

Olavo elenca as seguintes três características essenciais do perenialismo:

  • “Em primeiro lugar, todos os perenialistas, sem exceção, insistem que as doutrinas, símbolos e ritos das várias tradições em particular, malgrado apontem sempre para uma Realidade suprema que é a mesma em todos os casos, têm uma integridade própria, não podem ser objeto de fusão, mescla ou sincretismo. […] Em segundo lugar, nem tudo o que se apresente com o nome de religião, espiritualidade, esoterismo ou coisa parecida pode entrar nessa síntese. […] Em terceiro e mais importante lugar, a unidade transcendente das religiões é mesmo transcendente, não imanente. As religiões aí estão unificadas apenas pelo topo, pelo cume e núcleo vivo das suas concepções doutrinais, e não pela variedade irredutível das suas liturgias, dos seus códigos morais e das suas diferentes “vias” de realização espiritual. E onde, precisamente, está esse núcleo e topo? Está nas suas respectivas concepções metafísicas, que de fato são convergentes, como a simples coletânea organizada por Whitall Perry basta para demonstrá-lo acima de toda possibilidade de controvérsia. Nesse sentido, as religiões e tradições espirituais podem ser vistas, sem distorção, como adaptações de uma mesma Verdade Primordial às condições histórico-culturais, lingüísticas e psicológicas dos vários tempos, lugares e civilizações. Os vários exoterismos refletiriam, nas suas diferenças, a unidade de um mesmo esoterismo primordial. Os homens que chegaram a apreender claramente a unidade desse esoterismo superaram, intelectivamente, a diferença entre as religiões, mas, como não são feitos de puro intelecto e têm ainda uma existência histórico-temporal de pessoas de carne e osso, continuam subordinados cada um à sua respectiva tradição religiosa, sem poder fundi-la ou misturá-la com qualquer outra. O exemplo clássico é o grande mestre sufi Mohieddin Ibn’ Arabi. Afirmando explicitamente que seu coração podia assumir todas as formas – a do brâhmana hindu, a do rabino cabalista, a do monge cristão ou qualquer outra –, ele continuava, na sua vida de indivíduo real e concreto, inteiramente fiel à mais estrita ortodoxia islâmica”.

Será mesmo verdade que as concepções “metafísicas” das diversas tradições religiosas são efetivamente “convergentes”, e isto “acima de toda possibilidade de controvérsia”? Uma tal afirmação, um tal possível esclarecimento sobre a verdade religiosa, deve ser tomado com a máxima gravidade, tanto mais porque ele deve ser considerado, à luz da Fé e do Magistério católicos, bem como da reta filosofia concorde com esta luz, absolutamente falso, como passarei a demonstrar.

b) APRECIAÇÃO DO PERENIALISMO EM CONFRONTO AO CATOLICISMO

A realidade é que as grandes tradições religiosas não possuem “concepções metafísicas” correspondentes! Não é verdade que as doutrinas exotéricas seriam distintos “meios de salvação” adaptados às diversas mentalidades e lugares, e que haveria uma “verdade metafísica” (sic) esotérica comum, acessível somente aos “místicos” (sic) das religiões.

Primeiramente, o Catolicismo não possui um “esoterismo”, como o próprio Olavo reconhece no texto, ao afirmar que os Sacramentos são meios de iniciação espiritual para todos os fiéis batizados (haveria apenas uma distinção quanto ao aproveitamento desses meios). Mas o mais importante é que a única doutrina cristã (que supera a dicotomia “exotérico-esotérico”) corresponde a uma visão monoteísmo, com criação ex nihilo, essencialmente distinto da “metafísica” (sic) que os autores perenialistas afirmam corresponder à “tradição primordial” (sic).

Para os perenialistas, o nome “metafísica” não tem o significado técnico de parte culminante da filosofia, que trata das realidades últimas ou dos princípios primeiros espirituais (as Ideias ou o Bem platônico, as Substâncias Separadas e o Motor Imóvel aristotélico, por exemplo), nem o significado lato de filosofia geral de um autor ou escola (a “metafísica do idealismo moderno”, por exemplo). No prefácio de sua obra Unidade Transcendente das Religiõs, F. Schuon propõe uma distinção entre “metafísica” e “filosofia”, afirmando que a segunda é pensamento humano que procede da “razão” e a primeira, do “Intelecto” enquanto Nous Divino, citando Mestre Eckhart e sua doutrina da “centelha incriada da alma”, e um adágio muçulmano que diz que “o sufi (homem identificado com o Intelecto) é incriado”. Mais adiante Schuon diria (negritos meus):

  • “A ideia de realização metafísica [significa a] realização mediante a qual o homem toma consciência do que em realidade jamais cessou de ser, a saber, a identidade essencial do homem com o Princípio divino que é o único real. Por sua parte, o exoterismo está obrigado a manter a distinção entre o Senhor e o servidor, abstração feita de que os profanos afetam não ver, na ideia metafísica da identidade essencial, mais que panteísmo…”

Ora, tal pensamento, de que o homem possui uma “centelha divina incriada” na alma corresponde a 1 (uma) cosmovisão metafísica específica: o panenteísmo! O panenteísmo não é panteísmo, como acertadamente diz Schuon, e como todos os perenialistas dirão. Mas o que é o panenteísmo, em que ele se distingue da gnose dualista, do panteísmo e do monoteísmo da criação?

O gnosticismo clássico é a concepção daquelas seitas cristãs gnósticas que no século II foram enfrentadas por S. Irineu de Lião, que, de modo geral, propunham um dualismo irredutível de espírito (ou de uma matéria sutil) e matéria (grosseira), ensinando dois princípios antagônicos, a divindade boa e a divindade má criadora da matéria que aprisionou os “espíritos divinos” nos corpos materiais; e a necessidade de libertação através do “conhecimento” (“gnose”) dessa estrutura e da luta ascética, a qual muitas vezes poderia redundar – uma vez alcançada a “gnose” – em licenciosidade moral. Na realidade, o próprio “docetismo” (“Cristo não se encarnou, teve um corpo aparente”) que S. João Evangelista enfrenta nos seus escritos, é uma espécie de gnose dualista. Da mesma forma, o catarismo que se manifesta no século XIII.

Perenialistas não gostam de serem considerados “gnósticos”: tenha-se em conta o famoso debate de Orlando Fedeli e Olavo de Carvalho. Sob o ponto de vista da concepção dualista, que eles não abraçam teoricamente, eles não poderiam ser identificados com o gnosticismo (que ademais seria tido como um “esoterismo vulgar” de tipo Nora Era). Porém, do ponto de vista prático, da salvação pelo “conhecimento” (da suposta divindade imanente ao homem), então perenialistas são “gnósticos”, e nesse ponto Fedeli tinha razão.

O panteísmo clássico é a concepção da identidade entre a divindade e o mundo. Sua expressão mais conhecida é a filosofia de Spinoza. Há, contudo, diversas outras doutrinas religiosas e filosóficas que foram enquadradas inadequadamente sob o nome “panteísmo”, como as doutrinas emanacionistas, por exemplo, o brahmanismo ou o neoplatonismo, os quais defendem o “monismo” de um princípio único (não sendo gnósticos dualistas), mas, entretanto, defendem também a distinção de naturezas entre a divindade e o mundo emanado, não sendo estritamente panteístas.

Brahmanismo e Neoplatonismo são os dois exemplos mais clássicos, um no oriente e outro no ocidente, do que eu venho chamando “panenteísmo”: a identidade entre a divindade, enquanto manifesta (o atman hinduísta ou o intelecto/ser plotiniano, nos exemplos) e o fundo do mundo e da alma. Mas o mundo e o corpo não seriam “maus”, mas apenas uma estrutura “ilusória” ou então uma estrutura transitória, destinada a ser reabsorvida na divindade ou unidade indiferenciada inicial. Autores heterodoxos no Catolicismo defenderam esta doutrina, como Mestre Eckhart, de modo mais explícito, ou, de maneira mais ambígua, João Escoto Eriúgena e Nicolau de Cusa (para aprofundamento, veja-se o meu texto “A Herança do Neoplatonismo Cristão do Pseudo-Areopagita“.

É exatamente esta a ideia que está representada na afirmação de Schuon da citação mais acima: “o homem toma consciência do que em realidade jamais cessou de ser, a saber, a identidade essencial do homem com o Princípio divino que é o único real”. Em Eckhart temos a seguinte proposição condenada: Há algo na alma que é incriado e incriável; se toda a alma fosse tal, seria incriada e incriável, e isto é o entendimento (Denzinger 527). É esta ideia que também se encontra nos esoterismos dos outros dois monoteísmos ocidentais, a cabala e o sufismo.

No monoteísmo da criação ex nihilo, Deus cria, doa, um “ser” participado, distinto de seu Próprio Ser. O “ser” dos entes criados não é Deus, mas é uma realidade realmente criada. Para entender bem: no interior da Trindade, o Pai doa integralmente sua Essência (que é, como ensina S. Tomás, o mesmo que seu Ser) ao Filho e, pelo Filho, ao Espírito. Ao mundo criado e às criaturas Deus não doa sua Essência/Ser, mas doa outras essências delimitadas, finitas, e um ser criado, participado, delimitado por estas essências e realmente distinto do Ser Divino,

Como os panenteístas não conhecem a verdadeira doutrina revelada da Trindade, e o Conhecimento que Deus tem de Si através de seu Verbo ou Imagem Divina, sem necessidade de uma “manifestação essencial” além da suposta divindade impessoal, então os perenialistas não conseguem distinguir:

  1. As duas doações, a que Deus faz de sua Essência sem se perder, e a que Deus faz, também sem se perder, do ser participado;
  2. As duas ordens, a sobrenatural e a natural, pois o ser que é a essência desta segunda ordem, criada, é também, no perenialismo, a essência manifesta necessária da divindade, e não uma expressão criada finita, livre e amorosa, das processões trinitárias.

Para entender bem: o panenteísmo afirma, do mundo, a mesma coisa que o Catolicismo afirma de Nosso Senhor Jesus Cristo, isto é, uma “união hipostática” (sic) na criação inteira, a qual não teria uma natureza divina (não seria totalmente divina, não haveria panteísmo), mas seria no fundo o verbo divino.

O Catolicismo ensina a presença de Deus no mundo e na alma até mesmo antes da Graça, como ensinam Santo Tomás (cf. S.Th. I, q.8) e as Escrituras (Atos 17,28: “nEle somos, nos movemos e existimos”), pois Ele é o Criador e Conservador do mundo. Mas Deus não é uma “parte” da alma ou do mundo, nem mesmo a mais nobre, não é o “ser” ou o “espírito” mas simplesmente a Causa ou Fundamento, que, quando conhecido e amado com a Graça, torna-se o íntimo habitante das almas, e então nosso espírito dialoga amorosamente com o Espírito.

c) CONCLUSÕES

Não existe, pois, uma “revelação adâmica” preservada “esotericamente” nas diversas religiões positivas. Isso é projeção da ideia da gnose hinduísta nas outras religiões. Não há, como já dito, “esoterismo” no Catolicismo; há uma experiência mística extraordinária, a que poucos fiéis são chamados, mas que em nada contradiz a doutrina do Catecismo, do Magistério, da Doutrina dos Padres e Doutores, dos teólogos provados: “O que vos digo às escondidas, proclamai sobre os telhados” (cf. Mateus 10,27).

O místico cristão não se depara com uma “deidade ou essência divina impessoal inefável superior à Trindade de Pessoas” (se alguém o diz, é falso místico). A Trindade e a Encarnação são os conhecimentos religiosos mais sublimes, dos quais todo batizado participa na medida do seu dom. Certamente, a Comunhão Trinitária de Amor é um Mistério inesgotável para a inteligência humana finita, e o será por toda a eternidade, mas isto não significa que o que Jesus nos disse sobre a vida íntima de Deus seja uma verdade “penúltima”, um “símbolo” de algo “mais profundo”: os católicos “não conhecem as profundezas de Satanás” (cf. Apocalipse 2,24).

O Catolicismo não é uma “doutrina exotérica” (sic) ao lado de outras, como se todas as “grandes religiões” pudessem ser instrumentos de “salvação”; nem a “metafísica perene” (sic) seria um meio de “auto-realização” (sic), isto é, “auto-divinização”. Sabemos da possibilidade de que os homens de fora da Igreja visível se salvem, na ignorância invencível do Evangelho, e com fidelidade à lei natural que se manifesta na consciência, sob o influxo secreto do Divino Espírito Santo e Santificador, com o auxílio da Graça sobrenatural de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Único Salvador do mundo, e pela pertença à alma da Igreja Católica, “fora da qual não há salvação”. Mas isto não tem nada a ver com as coisas que dizem os perenialistas.

O panenteísmo é um erro filosófico, e é uma heresia, pois o mundo e a alma espiritual são criaturas de Deus, dependem da Graça, da Igreja, de Cristo. Assim o Concílio Vaticano I condenou o que venho denominando “panenteísmo”:

  • “[Contra as formas especiais do panteísmo.] Se alguém disser que as coisas finitas, quer corpóreas, quer espirituais, ou pelo menos as espirituais, emanaram da substância divina, ou que a divina essência por manifestação ou evolução de si, faz-se todas as cosas, ou, finalmente, que Deus é o ente universal ou indefinido que, determinando-se a si mesmo, constitui a universalidade das coisas, distinguida em gêneros, espécies e indivíduos, seja anátema” (Denzinger 1803).

Para finalizar, quatro perguntas são úteis para identificar o perenialista ou o panenteísta religioso em geral. Elas podem ajudar o leitor a se situar:

  1. O “ser” que a nossa inteligência atinge nas coisas é o Ser Divino?
  2. O “intelecto” ou “espírito” humano é o Intelecto ou o Espírito Divino?
  3. Existe a possibilidade de uma condenação definitiva da alma humana?
  4. Jesus Cristo é a única encarnação do Verbo e o único que pode tanto salvar quanto santificar o homem, por meio de sua Igreja Católica?

O “gabarito” é, segundo tudo que vimos aqui: não, não, sim, sim. O perenialista dirá: “sim, sim, depende (alguns panenteístas dirão que a alma “psíquica” poderia se condenar, mas não o ser divino que seríamos no fundo: vide como o Pe. Andrés Queiruga, panenteísta, entende o inferno assim, em seu livro Repensar o mal), não (um perenialista católico “exotericamente” poderia fazer a ressalva de que Jesus é a única encarnação do Verbo, mas poderia aceitar encarnações “parciais” e salvadoras)”.

Conclui-se, pois, que o perenialismo nada tem a acrescentar ao católico: nem ao estudioso nem ao que pretenda crescer em sua vida espiritual. O que possa haver ali de acerto (no estudo científico das religiões ou na ciência simbólica) está de tal modo relacionado a essa concepção metafísico-teológica herética, panenteísta e gnóstica, que é infinitamente melhor ir à fonte dos exímios teólogos, mestres espirituais e provados místicos católicos.

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