Socorro!!! Tem uma dinâmica atrás de mim!

Uma das mais asquerosas manias pseudo-pedagógicas dos últimos tempos é o use de uma espécie de truque de salão misturado com técnica de amestragem de macacos chamada “dinâmica”. Qual é o pressuposto fundamental destas pragas que assolam os meios educativos? É a incapacidade de raciocinar do “dinamizado”. Por funcionarem em termos contra-lógicos, partindo do particular para o geral, da experiência empírica como metáfora obrigatória da regra maior, as famigeradas “dinâmicas” acostumam suas vítimas a não aprender, a não perceber a realidade de modo coeso, a não usar o raciocínio lógico. O procedimento é sempre o mesmo: faz-se uma gracinha qualquer, uma situação prática extremamente forçada e antinatural que depois é usada em uma espécie desvirtuada de comparação, tendo sua “conclusão” (na imensíssima maioria dos casos completamente artificial) erigida em metáfora de uma regra geral. A sensação de “profunda descoberta” que acomete os “dinamizados” (ou, na novilínua dos pseudo-pedagogos, “dinamizandos”) é facilmente explicável pela artificialidade da relação impingida entre a besteira que foi feita e a pretensamente profunda sabedoria que seria sinalizada (ou, na cabeça das vítimas da dinamicomania, “provada empiricamente”) pela besteira feita.

Assim a vítima da “dinâmica” aprende apenas que não há sentido na realidade, que as regras, por serem “descobertas” indo do menor ao maior, em generalização absurda a partir de um único exemplo pseudo-metafórico, na verdade não existem senão como resultado forçado de um raciocínio que não se submete a repetição não-guiada.

Dizem alguns ativistas da dinâmica que ela nada mais é que um exemplo, uma forma de preservação mnemônica da realidade que ela apresentaria como metáfora. Isso não é verdade. Ainda que macaco velho não ponha a mão em cumbuca, a cumbuca não leva à descoberta da cobiça como vício a ser evitado. Fazer alguém enfiar a mão em uma cumuca para não conseguir retirar dela o que ela contém é partir do presuposto que esta pessoa não é capaz de entender a noção de vícios e virtudes, e sua compreensão é ainda mais rasteira que a de um provecto e experiente macaco.

No caso da dinâmica (especialmente pesadelosa, desenvolvida e escrita por um pedagogo “católico”) que recebi e me fez escrever este artigo, então, a coisa é ainda pior que na média. Isto para nosso fito é bom, pois torn mais fácil apontar um dedo gordo e peludo para os absurdos nela presentes.

Antes de mais nada, qual é a associação feita entre uma experiência empírica e uma verdade supostamente apresentada como metáfora? A conexão não chega a ser tênue; é simplesmente inexistente, com o agravante de desviar da reta exegese do trecho bíblico atirado qual boi de piranha na sala cheia de adolescentes com um cérebro brilhante sendo lentamente transformado em creme de xuxu sem sal pela “dinamização”.

Vejamos então como se processa este espantoso mecanismo de burrecimento, usando como exemplo de trabalho a tal dinâmica. Mantenho a ortografia e gramática originais, com o texto em negrito:

Mostrar ao grupo o pé de sandália e dizer que em quem servir a peça terá direito a um prêmio.

Inicia-se assim o procedimento incentivando a cobiça, apelando para vagos sentimentos de Cinderela por parte das vítimas, que esperarão que a sandália caiba nelas..

A única maneira de saber será calçando, para descobrir o felizardo. E todos deverão experimentar a sandália.

Sabe-se de antemão que normamente a sandália não caberá em ninguém; se couber foi por erro de cálculo do “dinamizador”. Mesmo assim, todos devem experimentar. Ora, fazer com que uma menina que calça 34 experimente uma sandália 44, que evidentemente não lhe serve, é na melhor das hipóteses subestimar sua inteligência e seu sentido de proporção, ensinando-a a submter-se a medidas arbitrárias e contrárias ao senso comum. Em um ambiente catequético isso é anda mais grave, por levar a crer que é assim que a Igreja age. Afinal, teoricamente esta ordem absurda de calçar “para ver se serve” uma sandália absurdamente grande seria uma ordem da Igreja.

Espera-se que a sandália não sirva, mas pode ocorrer que em alguém sirva, então separe­o do grupo e diga-lhe que ele é um feliz ganhador do prêmio, continue o exercício até o final, se houver mais de um “ganhador” estabeleça um sorteio ou a resposta correta de uma pergunta envolvendo sandália.

A coisa então torna-se ainda mais surreal. Se o “prêmio” (uma Bíblia, ainda por cima!!!) couber em mais de um, volta-se atrás e define-se quem será a vítima frustrada da mentira inicial (Cinderela irá casar-se com o príncipe, oops, ganhará uma Bíblia quem calçar 44) por meio de expediente ainda mais alucinado: “uma pergunta envolvendo sandália”. Que tal “Qual é a sandália que não tem cheiro, não desbota e nem solta as tiras?” Assim reforça-se a sensação de que não há lógica, não há regras, e todas as decisões são puramente arbitrárias e sem referência alguma a algo maior (incluindo nisso a própria realidade dos fatos e o testemunho dos sentidos, já que era evidente desde o príncípio que a sandália gigante não caberia em ninguém, mas mesmo assim todos foram forçados ao constrangimento de “experimentá-la”).

O ganhador ou ganhadores deverão ler para o grupo o texto de Jo 1, 19-34.

O pezudo deverá então ser forçado a ler esta passagem. Note-se que – se a coisa houver sido feita corretamente – não haverá pezudo que calce bem a sandália gigante, e presumivelmente o “ganhador” terá sido escolhido por sorteio. Assim foi criada uma falsa expectativa, que apesar de toda a evidência dos sentidos (“ninguém aqui tem um pé deste tamanho, de quer vale calçar esta prancha?”) foi mantida artificialmente (“todos deverão experimentar”) apenas para, no fim, ela ser substituída por outr forma completamente arbitrária e frustrante de escolher a vítima (que não havia sido informada que teria que ler em público, coisa que a muitos causa horror). Aprende-se assim que:

1 – As decisões na Igreja são arbitrárias e não levam em consideração a realidade (tamanho evidente dos pés das vítimas em relação à sandália, etc.);

2 – As promessas feitas neste ambiente não valem rigorosamente nada (quem calçar 44 casa com o príncipe, oops, ganha a Bíblia);

3 – Quem entra para um concurso (inicialmente o frustrante concurso de tamanho de pé, imediaamente seguido pelo sorteio entre os pezudos ou entre todos. Note-se que no caso de concurso apenas entre pezudos a arbtrariedade dos valores levados em consideração salta aos olhos) em busca de uma coisa (a Bíblia) receberá um castigo (ler alto para a maior parte das pessoas é um castigo) de que nada havia sido dito.

Notem que – ao contrário das inferências artificiais da “dinâmica” propriamnte ditas, estas são reais. A experiência das pessoas que sofrem na mão dos pseudo-pedagogos anti-catequéticos terá sido esta: frustração, submissão a regras arbitrárias, surpresas desagradáveis, etc.

A passagem a ser lida pelo pobre “ganhador”, a esta altura provavelmente sendo conduzido quase à força pela pressão de seus pares, satisfeitos em ver sua humilhação (só quem nunca trabalhou com adolescentes não conhece o maligno prazer que têm em ver sofrer alguém que ganhou algo que cobiçavam. Prefiro não pensar nesta “dinâmica” sendo impingida a adultos) fas referência apenas passageira a sandálias em geral. Aliás, na verdade não faz referência algum a sandálias em geral, mas traz apenas uma vez esta palavra, quando S. João Batita diz que não é digno de desatar as sandálias de Nosso Senhor.

Presumo que seja neste ponto lida a “Frase Motivacional” (“motivacional”… Em uma civilização digna deste nome a criação ou uso desta palavra mereceria pena de algumas centenas de chibatadas):

FRASE MOTIVACIONAL: Calçar as sandálias em alguém é um sinal de serviço.

Ah… então a promessa (vã, como era evidente pelo tamanho das sandálias e foi depois comprovado pelo sorteio de uma Bíblia ter virado sapo, digo, ter virado a humilhação de ser forçado a ler em público) de dar uma Bíbia de presente escondia na verdade a exigência de um serviço desagradável e gratuito, para não dizer humilhante. Bom saber.

Na cultura judaica representava um sinal de acolhida, (mesmo hoje em alguns lugares do interior ainda se oferece uma bacia de água para a visita lavar os pés, tirar a poeira da longa caminhada) quando alguém ia até a casa do outro o dono da casa desatava-lhe as sandálias e lhe lavava os pés,

O que não tem absolutamente nada a ver nem com a artimanha de prometer uma Bíblia para forçar os incautos a ler em público, nem com a passagem em questão. A coisa é tornada ainda pior no contexto, pois a conclusão a ser tirada desta afirmação é bastante evidente caso alguma das vítimas (que evidentemente não deve ter conhecimento algum de Teologia da Graça por ter sido exposto a “dinâmicas” no lugar de sua catequese) não tenha sido suficientemente exposta a dinâmicas e ainda preserve resquícios de sua capacidade lógica:

Desatar sandálias é sinal de serviço;
Ora, São João Batista não se considerava digno de desatar a sandália de Noso Senhor;
Logo, São João Batista não era digno de servir o Senhor.

Ora, eu sou menor que São João Batista;
Logo, eu tampouco sou digno de servir o Senhor.

Ora, não sou digno de servir o Senhor;
Logo, vamos para o Baile do Havaí, que o Carnaval está chegando!
Vamos deixar esse papo de ser Santo para outros!!!

João Batista ao dizer que não é digno de desatar as sandálias de Jesus tentar mostrar que nem na condição de servo ele se encontra, Jesus é muito maior, João fala de sua pequenês. João dá testemunho do messias, identifica-o para seus seguidores: “Eis o cordeiro de Deus”. Calçar as sandálias é aceitar o projeto de Deus, ir onde ele nos mandar. Diz nossa tradição que o Papa calça as sandálias do pescador, numa alusão a São Pedro, nosso primeiro papa.

Começa então novamente o samba do crioulo doido. As sandálias que eram calçadas e descalçadas em outrem como sinal de serviço viram sandálias a calçar em nós mesmos. Presume-se então que São João Batista – por indigno – teria deixado Nosso Senhor descalçar Suas próprias sandálias, para depois sair correndo com elas para calçá-las em si mesmo (correndo o risco de levar um raio na cabeça), pois assim ele estria aceitando “o projeto de Deus”. A prova disso seria o Papa calçando as sandálias de São Pedro.

Associar para o grupo que estas sandálias é do Cristo que nos convida para o seu grupo.

Ah, as sandálias “é” do Cristo. Pensava que fossem – desculpe, “era” – da Carla Perez. Fora o atentado à gramática, resta-nos o atentado à lógica. Se estas sandálias “é” do Cristo, ou bem o Cristo ganha a Bíblia ou bem o calçador-de-sandálias/”dinamizador” é superior a São João Batista.

Agora que sabemos teremos a disposição para calça-las? O prêmio prometido para quem o faz é o Reino de Deus. No entanto para sermos dignos dele, muitas estradas tem-se que caminhar, por isso que Cristo nos “empresta” sua sandália, para termos força e vigor nos pés, pois o Evangelho, a boa nova do reino precisa ainda ser levada a muitos lugares, esta é nossa missão primeira, o testemunho maior: “Ide pelo mundo e anunciai o Evangelho (Boa nova / Reino de Deus).”

A coisa então complica. Presume-se que o mundo deverá então prestar-nos o serviço de descalçar-nos as sandálias. Presume-se ainda que – como no caso da Bíblia que virou humilhação de ser em público – possamos dizer que essa história de Reino de Deus deva ter alguma treta escondida. Não, não vou falar da pontuação do texto. Chega.

Vem então outro exercício em negação do raciocínio:

02 ­ Após leitura dividir o grupo em subgrupos para reflexão sobre o texto lido e o exercício realizado. Qual reflexão se tira de um e de outro? (pode-se criar algumas perguntas temáticas). Realiza-se a apresentação dos subgrupos.

Então o grupo é dividido em “subgrupos”. Muito prático: assim é impedido completamente o rciocínio. Cada “subgrupo” vai evidentemente procurar as obviedades açucaradas que pareçam mais adequadas para obter a aprovação do Mestre-de-Insensatez/”dinamizador”. Se não tiverem nenhuma idéia brilhante (panos brancos nas jaelas, sandálias gigantes infláveis, sei lá) “pode-se criar algumas perguntas temáticas” para guiá-los no exercício de conformidade irracional.

Em seguida cad subgrupo submete os outros a ouvir suas obviedades açucaradas. Brilhante.

03 ­ Comentário sobre as participações no exercício e dos subgrupos.

O que seria este comentário? Pela minha experiência, ele seria normalmente dividido em duas partes: os “oohs” e “aahs” de êxtase diante da “profundidade” paulocoelhiana das obviedades açucaradas dos outros subgrupos (tudo é “grupo” e “subgrupo”, para evitar que – horror do horrores – alguém tenha alguma idéia original) e alguma recriminações àqueles que não entraram no espírito da coisa por não term deixado, como aparentemente deveriam ter feito, o cérebro na chapelaria ao entrar. Essas recriminações, claro, serão matizadas e politicamente corretas para não parecerem “julgamentos”. Talvez no fim haja alguma sessão de abraços ou coisa parecida para os monguinhos, oops, os “dinamizandos” “ficarem de bem”.

Vem então:

04 ­ Feedback

O fidibéque é a hora de todo mundo fazer “ooh!”e “aah!” para as paulocoelhices mais açucaradas, normalmente escolhidas pelo chefe da sessão de irracionalização.

05 ­ Insights

É a hora do “isso!” e do “ah, isso quer dizer que [insira aqui uma paulocoelhice que ainda não havia sido mencionada]”. Pelos nomes em inglês, deviam ser “that’s it!”, mas já seria querer demais.

06 ­ Conclusão

A conclusão é bastante evidente: se o tempo usado para esta tentativa de transformação de seres humanos em macacos novos que metem a mão em cubuca tivesse sido usado para uma aula de catecismo bem dada, mostrando sempre a conexão do que é ensinado com os dilemas morais que as vítimas da “dinâmica” atravessam em suas vidas, ele não teria sido jogado fora. Com um exercício de não-pensamento (mais conhecido como “dinâmica”), o tempo passa como se a pesoa estivesse assistindo TV, ou seja, sem que ela pense um silogismozinho de segunda que seja. Nada de bom é aprendido, e forçosamente são feitas inferências que reforçam todo os preconceitos e falsos juízos que a sociedade já prega sobre a Igreja (irracionalidade, arbitrariedade, falta de percepção da realidade, etc.).

Já cansei de ver isso acontecer. Sempre que dou um curso ou uma palestra para um grupo relativamente pequeno de adolescentes (pequeno o suficiente para permitir que sejam submetidos a esta “dinâmica” sem gastar nisso um dia inteiro) vejo como estão todos sedentos por conhecimento, procurando desesperadamente perceber o sentido do mundo, o sentido do que prega a Igreja, as linhas-mestras que os guiarão em seus dilemas morais (não há dilemas morais mais fortes que os que acometem os adolescentes!)… Quando finalmente conseguem escapar destas “dinâmicas” dos Infernos e ter uma aula em que possam perguntar e ter respostas, debater, discutir, aprender, é então que eles mostram todo o seu potencial.

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