“Summi pontificatus” (Pio XII: 20.10.1939)

Carta Encíclica
SUMMI PONTIFICATUS
sobre o ofício do Pontificado.

Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e aos outros Ordinários de lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica.

Programa do pontificado

1. O arcano desígnio do Senhor, sem nenhum merecimento de nossa parte, quis confiar-nos a altíssima dignidade e as gravíssimas solicitudes do Sumo Pontificado justamente no ano em que ocorre o quadragésimo aniversário da consagração da humanidade ao sacratíssimo coração do Redentor, feita pelo nosso imortal predecessor, Leão XIII, ao declinar do século passado, quando surgia já a aurora do ano santo.

2. Com que alegria, comoção e íntimo assentimento acolhemos então como mensagem celeste a Encíclica Annum Sacrum, (1) justamente quando, novo levita, pudéramos recitar: Introibo ad altare Dei (Sl 42,4). E com que ardente entusiasmo o nosso coração se uniu aos pensamentos e intenções que animavam e guiavam aquele ato verdadeiramente providencial de um Pontífice que conhecera, com tão profunda agudeza, as necessidades e chagas, claras e ocultas, do seu tempo! Portanto, como poderíamos deixar de sentir hoje profundo reconhecimento para com a Providência, que houve por bem dispor coincidisse o nosso primeiro ano de pontificado com uma recordação tão importante e cara do nosso primeiro ano de sacerdócio? E como poderíamos deixar de valer-nos, com alegria, desta ocasião para prestar culto ao “Rei dos reis e Senhor dos dominadores” (1Tm 6,15; Ap 19,16) quase como oração de entrada do nosso pontificado, no espírito do nosso inesquecível predecessor e na fiel atuação das suas intenções? Como poderíamos deixar de fazer desse culto o alfa e o ômega da nossa vontade e da nossa esperança, do nosso ensino e da nossa atividade, da nossa paciência e dos nossos sofrimentos, tudo consagrado à difusão do reino de Cristo?

A fonte de indizíveis bens

3. Se, à luz da eternidade, contemplarmos os acontecimentos externos e internos que se desenvolveram nos últimos quarenta anos, e lhes medirmos as grandezas e deficiências, aquela consagração universal a Cristo-Rei, pelo seu sagrado significado, pelo seu simbolismo exortador, pelo seu escopo de purificação e de elevação, revela-se aos olhos do nosso espírito como tendente a robustecer e defender cada vez mais as almas, ao mesmo tempo que, na sua previdente sabedoria, visa a sarar e enobrecer a sociedade humana e promover o seu verdadeiro bem.

Revela-se-nos também cada vez mais claramente, como uma mensagem de exortação e de graça de Deus, dirigida não só à sua Igreja mas também a um mundo hoje tão necessitado de sacudimento e de guia, porquanto, imerso no culto do presente, vem desorientando-se cada vez mais e esgotando-se na fria investigação de ideais puramente terrenos; mensagem a uma humanidade que, em fileiras cada vez mais numerosas, se destaca da fé em Cristo e, mais ainda, do conhecimento e da observância da sua lei; mensagem contra uma concepção do mundo, segundo a qual a doutrina de amor e de abnegação do Sermão da montanha e a divina ação de amor da cruz não passam de escândalo e de loucura. Como o precursor de Cristo proclamava certo dia: “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1,29), advertindo que o Esperado das gentes, se bem que ainda desconhecido, habitava entre os homens; assim o representante de Cristo, esconjurando, dirigia o seu brado possante: “Eis o vosso Rei!” (Jo 19,14) aos renegadores, aos duvidosos, aos indecisos, aos hesitantes que, ou se recusavam a seguir o Redentor glorioso, sempre vivo e operante na sua Igreja, ou seguiam-no descuidados e lentos.

4. Da difusão e arraigo do culto do divino coração do Redentor, que teve esplêndido coroamento não só na consagração da humanidade, ao findar do século passado, mas também na introdução da festa da realeza de Cristo, por nosso imediato predecessor, (2) de saudosa memória, advieram indizíveis bens a inúmeras almas: um “rio cujos braços alegram a cidade de Deus” (Sl 45,5). Que época, mais do que a nossa, teve necessidade de semelhantes bens? Que época, mais do que a nossa, foi tão atormentada pela falta de espiritualidade e profunda indigência interior, apesar do progresso técnico e puramente civil? Acaso, não se poderá aplicar-lhe a palavra reveladora do Apocalipse: “Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu o infeliz; miserável, pobre, cego e nu” (Ap 3,17)?

5. Veneráveis irmãos! Existe acaso dever maior e mais urgente do que anunciar… “as inescrutáveis riquezas de Cristo” (Ef 3,8) aos homens do nosso tempo? E haverá coisa mais nobre do que desfraldar o vexilo real diante desses que têm seguido ou seguem bandeiras falazes e conquistar para o glorioso vexilo da cruz aqueles que dele desertaram? Que coração se não deveria abrasar e sentir-se impelido a socorrer tantos irmãos e irmãs que, devido a erros e paixões, incitamentos e prejuízos, se afastaram da fé no Deus verdadeiro, destacando-se assim da jucunda e salutar mensagem de Jesus Cristo? Quem quer que pertença à milícia de Cristo – eclesiástico ou leigo – não deveria acaso sentir-se estimulado e incitado a maior vigilância, a mais decidida defesa, ao ver que as fileiras dos inimigos de Cristo cada vez aumentam mais, ao perceber que os porta-vozes dessas tendências, renegando ou praticamente descurando as verdades vivificadoras e os valores contidos na fé em Deus e em Cristo, partem sacrilegamente as tábuas dos mandamentos de Deus para substituí-las com tábuas e normas que excluem a substância ética da revelação do Sinai, o espírito do Sermão da montanha e da cruz? Quem poderia, sem sentir profunda aflição, observar como tais desvios preparam uma trágica messe, justo no meio daqueles que, nos dias de tranqüilidade e segurança se alistam entre os sequazes de Cristo, mas que – infelizmente cristãos mais de nome que de fato – quando se trata de perseverar, de lutar, de sofrer, de afrontar as perseguições claras ou simuladas, tornam-se vítimas da pusilanimidade, da fraqueza, da incerteza, e apavorados diante dos sacrifícios impostos pela sua profissão cristã, não encontram a força necessária para beber o cálice amargo dos fiéis a Jesus Cristo?

I. SOB O SINAL DE CRISTO-REI

6. Nestas condições de tempo e de espírito, veneráveis irmãos, possa a iminente festa de Cristo-Rei, em que chegará a vosso conhecimento esta nossa primeira encíclica, ser para vós um dia de graça, de profunda renovação e de novo despertar no espírito do reino de Jesus Cristo. Seja um dia no qual a consagração do gênero humano ao divino Coração, que deve ser celebrada com particular solenidade, reúna junto do trono do eterno Rei os fiéis de todos os povos e de todas as nações em adoração e desagravo, para renovarem a ele e à sua lei de verdade e de amor o juramento de fidelidade hoje e sempre. Seja um dia de graça para todos os fiéis, no qual o fogo, por Jesus Cristo trazido à terra, se ateie em chama cada vez mais luminosa e pura. Seja um dia de graça para os tíbios, os cansados, os enfastiados, em que nos seus corações, tornados pusilânimes, amadureçam novos frutos de renovação de espírito e de fortalecimento de ânimo. Seja um dia de graça também para aqueles que ainda não conhecem Cristo e para os que o perderam; um dia no qual, de milhões de corações fiéis, se eleve ao céu a oração. Possa “a luz que ilumina cada homem que vem a este mundo” (Jo 1,9) aclarar-lhes o caminho da salvação; possa a sua graça suscitar no coração inquieto dos errantes o desejo nostálgico dos bens eternos, desejo que os induzam a voltar àquele que, do doloroso trono da cruz, tem sede também das suas almas e deseja ardentemente tornar-se também para elas “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6).

Agradecimento paterno

7. Pondo esta primeira encíclica do nosso pontificado sob o sinal de Cristo-Rei, como que nos sentimos inteiramente seguros do consenso unânime e entusiástico de todo o rebanho do Senhor. As experiências, as ansiedades e as provações da hora presente despertam, aguçam e purificam o sentimento de comunidade da família católica num grau raramente experimentado, excitando em todos os que crêem em Deus e em Jesus Cristo a consciência de uma ameaça comum por parte de um perigo comum.

8. Deste espírito de comunidade católica, potentemente acrescido em tão árduas circunstâncias, e que é recolhimento e afirmação, resolução e vontade de vitória, sentimos o bafejo consolador e inesquecível naqueles dias em que, hesitantes mas confiados em Deus, tomamos posse da cátedra que ficara vaga pela morte do nosso grande predecessor.

9. Lembrando-nos ainda das inúmeras provas de filial acatamento à Igreja e ao Vigário de Cristo, recebidas por ocasião de nossa eleição e coroação, manifestações cheias de tanta espontaneidade e ternura, apraz-nos colher esta ocasião propícia para dirigir-vos, veneráveis irmãos, e a todos os que pertencem à grei do Senhor, uma palavra de comovido agradecimento por esse pacífico plebiscito de reverente amor e de inconcussa fidelidade ao papado, com o qual se vinha reconhecer a providencial missão do sumo sacerdote e do pastor supremo. Pois que, verdadeiramente, todas aquelas manifestações não eram nem poderiam ser dirigidas à nossa pobre pessoa mas sim ao único e altíssimo cargo a que o Senhor nos elevava. E se já desde aquele primeiro momento sentíamos todo o peso das graves responsabilidades anexas ao sumo poder que nos conferia a divina Providência, também nos era de grande conforto ver aquela grandiosa e palpável demonstração da inscindível unidade da Igreja católica que tanto mais compacta se estreita à inabalável rocha de Pedro, rodeando-a de barbacãs inexpugnáveis, quanto mais cresce a ousadia dos inimigos de Cristo.

10. Este mesmo plebiscito de unidade católica mundial e de sobrenatural fraternidade de povos em torno do Pai comum, pareceu-nos tanto mais rico de felizes esperanças, quanto mais trágicas eram as circunstâncias materiais e espirituais do momento em que se dava; e a sua recordação nos veio confortando também nos primeiros meses do nosso pontiilcado, durante os quais temos já experimentado as fadigas, as ansiedades e as provações semeadas pelo caminho que vem palmilhando a esposa de Cristo através do mundo.

11. Não queremos que passe despercebido o grande eco de comovido reconhecimento que vieram suscitar em nosso coração os augúrios daqueles que, se bem não pertençam ao corpo visível da Igreja católica, não se esqueceram, em sua nobreza e sinceridade, de sentir tudo aquilo que, ou por amor à pessoa de Cristo ou pela sua crença em Deus, os unem a nós. A todos chegue a expressão da nossa gratidão. Confiamos a todos e cada um em particular à proteção e guia do Senhor e asseguramos que um único pensamento domina a nossa mente: imitar os exemplos do bom pastor, a fim de conduzir todos à verdadeira felicidade; “para que tenham a vida e a tenham abundantemente” (Jo 10,10).

A obra providencial dos Pactos Lateranenses

12. Mas o :nossa espírito sente como que imperiosa necessidade de tornar pública a sua íntima gratidão pelos sinais de reverente :homenagem recebidos de soberanos; de chefes de Estado e de autoridades públicas daquelas nações que estão em boas relações com a Santa Sé. E uma especial alegria enche o nosso coração ao podermos, nesta primeira encíclica dirigida a todo o povo cristão esparso pelo mundo, mencionar em tal número a dileta Itália, fecundo jardim da fé plantada pelos príncipes dos apóstolos, a qual, graças à providencial obra dos Pactos Lateranenses, ocupa hoje um posto de honra entre os Estados oficialmente representados junto à Sé Apostólica. Daqueles pactos teve feliz início, como aurora de tranqüila e fraternal união de almas diante dos sagrados altares e no consórcio civil, a “paz de Cristo restituída à Itália”; paz que suplicamos ao Senhor conserve, avive, dilate e corrobore fortemente e profundamente na alma do povo italiano, tão próximo de nós, e no meio do qual respiramos o mesmo hálito de vida; augurando que este povo, tão caro aos nossos predecessores e a nós, e fiel às suas gloriosas tradições católicas, sinta cada vez mais, na alta proteção divina, a verdade das palavras do salmista: “Bem-aventurado o povo que tem o Senhor por seu Deus” (Sl 143,15).

13. E esta desejada nova situação jurídica e espiritual, criada e sigilada por aquela obra destinada a deixar um sinal indelével na história da Itália e de todo o orbe católico, nunca se nos deparou tão grandiosa e unificadora, como quando, do excelso balcão da Basílica Vaticana, abrimos e levantamos pela primeira vez os nossos braços e a nossa mão para abençoar Roma, sede do papado e nossa amadíssima cidade natal, a Itália reconciliada com a Igreja e os povos do mundo inteiro.

O dever do vigário de Cristo

14. Como vigário daquele que, numa hora decisiva, diante do representante da mais alta autoridade terrena de então, pronunciou a grande palavra: “Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; quem está pela verdade, ouve a minha voz” (Jo 18,37), de nada nos sentimos mais devedores ao nosso cargo, e também ao nosso tempo, como de, com apostólica firmeza, “dar testemunho da verdade”. Este dever implica necessariamente a exposição e a refutação dos erros e das culpas humanas que devem ser conhecidas para que se torne possível a cura: “conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8,32). No cumprimento deste nosso dever, não nos deixaremos influenciar por considerações terrenas, nem nos deteremos diante de difidências e contrastes, de recusas e incompreensões, nem diante do temor de desprezos e falsas interpretações. Animar-nos-á sempre aquela paternal caridade que, enquanto sofre pelos males que afligem seus filhos, não deixará de indicar-lhes o remédio, esforçando-nos por imitar o divino modelo dos Pastores, o Bom Pastor Jesus Cristo que é, a um tempo, luz e amor: “Seguindo a verdade com amor” (Ef 4,15).

15. No início da caminhada que leva à indigência espiritual e moral dos tempos presentes, estão os esforços nefastos de não poucos para destronar Cristo, o desapego da lei da verdade, que ele anunciou, da lei do amor, que é o sopro vital do seu reino. O reconhecimento dos direitos reais de Cristo e a volta de cada um e da sociedade à lei da sua verdade e de seu amor são o único caminho de salvação.

16. Enquanto escrevemos estas linhas, veneráveis irmãos, chega-nos a apavorante notícia que se desencadeara o terrível tufão da guerra, não obstante todos os nossos esforços para esconjurá-lo. A nossa caneta como que hesita em prosseguir, quando imaginamos o abismo de sofrimentos de inúmeras pessoas, às quais sorria ainda ontem, no ambiente doméstico, um raio de modesto bem-estar. O nosso coração enche-se de angústia, ao prevermos tudo o que poderá medrar da tenebrosa semente da violência e do ódio, depositada hoje nesses sulcos sangüinosos que a espada acaba de abrir: Mas, mesmo diante destas apocalípticas previsões de desventuras iminentes e futuras, achamos que é nosso dever sugerir àqueles em cujos corações se aninha ainda um sentimento de boa vontade, que elevem os olhos ao único do qual deriva a salvação do mundo, ao único; cuja mão onipotente e misericordiosa pode fazer cessar esta tempestade, ao único, cuja verdade e cujo amor podem iluminar as inteligências e inflamar os corações de tão grande parte da humanidade imersa no erro, no egoísmo, nos contrastes e na luta, e reorganizá-la no espírito da realeza de Cristo.

17. Talvez nos seja lícito esperar – e Deus o permita – que esta hora de máxima indigência seja também uma hora de retificação do pensar e sentir de muitos que até agora palmilhavam, com cega confiança, o caminho semeado de erros modernos, sem suspeitarem quão insidioso e falso era o terreno que pisavam. Muitos talvez, que não compreendiam a importância da missão da Igreja, perceberão melhor agora os seus avisos, por eles descurados na falsa segurança de tempos passados. As angústias do presente são uma apologia do cristianismo, e não poderia ser mais impressionante. Do gigantesco vórtice de erros e movimentos anticristãos originaram-se frutos tão amargos que constituem uma condenação, cuja eficácia supera qualquer confutação teórica.

18. Horas de tão penosa desilusão são muitas vezes horas de graça, uma “passagem: do Senhor” (Ex 12, 11) nas quais; à palavra do Salvador: “Eis que estou à porta,e bato” (Ap 3;20) abrem-se as portas que, de outra maneira, se conservariam fechadas. Bem sabe Deus com que amor comipassivo, com que santa alegria o nosso coração se volta para aqueles que, em meio de tão dolorosas experiências, sentem nascer em si o imperioso e salutar desejo da verdade, da justiça e da paz de Cristo. Mas também por aqueles que aguardam ainda a luz superna que os ilumine, o nosso coração não conhece senão amor, e de nossos lábios não se desprendem senão preces ao Pai das luzes pedindo-lhe que faça resplandecer em suas almas, indiferentes ou inimigas de Cristo, um raio daquela luz que transformou um dia Saulo em Paulo, daquela luz que demonstrou sempre a sua força misteriosa mesmo nos tempos mais difíceis para a Igreja.

Os erros dos tempos presentes

19. Uma atitude bem definida, doutrinal e completa, contra os erros dos tempos presentes poderá ser adiada, se for preciso, para uma época menos agitada pelas desgraças dos acontecimentos externos; por ora limitar-nos-emos a algumas observações fundamentais.

20. A época atual, veneráveis irmãos, acrescentando novos erros aos desvios doutrinais do passado, levou-os a extremos dos quais se não podia originar senão desorientamento e ruína. E antes de tudo, é certo que a raiz profunda e última dos males que deploramos na sociedade moderna é a negação e repulsa de uma norma de moralidade universal, quer na vida individual, quer na vida social e das relações internacionais, isto é, o desconhecimento, tão difundido nos nossos tempos, e o esquecimento da própria lei natural, que tem o seu fundamento em Deus, criador onipotente e Pai de todos, legislador supremo e absoluto, onisciente e justo vingador das ações humanas. Quando se renega Deus, abala-se toda a base de moralidade; sufoca-se ou, pelo menos, debilita-se de muito a voz da natureza, que ensina, até aos iletrados e às tribos ainda alheias à civilização, o que é bem e o que é mal, o que é lícito e o que é ilícito, e faz sentir a responsabilidade das próprias ações perante o Juiz supremo.

21. Pois bem, a negação da base fundamental da moralidade teve, na Europa, a sua raiz originária no afastamento daquela doutrina de Cristo, de que é depositária e mestra a cátedra de são Pedro; doutrina que, em tempos idos, dera certa coesão espiritual à Europa, a qual, educada, enobrecida e civilizada pela cruz, chegara a tal grau de progresso civil que a fizera mestra de outros povos e de outros continentes. Afastando-se, ao invés, do magistério infalível da Igreja, não poucos chegaram até a subverter o dogma central do cristianismo, a divindade do Salvador, acelerando assim o processo de dissolvimento espiritual.

Indícios de paganismo

22. Narra o santo evangelho que, ao crucificarem Jesus, “escureceu-se toda a terra” (Mt 27,45); pavoroso símbolo do que acontece e continua a acontecer espiritualmente onde a incredulidade, cega e orgulhosa de si mesma, exclui Cristo da vida moderna, especialmente da vida pública, e abalando a fé em Cristo abala também a fé em Deus. E por conseguinte, os valores morais, pelos quais em outros tempos se julgavam as ações privadas e públicas, acaram como que em desuso. A tão decantada laicização da sociedade, que tem feito progressos cada vez mais rápidos, subtraindo o homem, a família e o Estado ao benéfico e regenerador influxo da idéia de Deus e do ensino da Igreja, fez ressurgir, em regiões onde por espaço de tantos séculos brilharam os fulgores da civilização cristã, indícios, cada vez mais claros, mais distintos e angustiosos de um paganismo corrompido e corruptor: “Quando crucificaram Jesus obscureceu-se toda a terra”.(3)

23. Muitos talvez, ao se afastarem da doutrina de Cristo, não tiveram plena consciência de serem enganados pela falsa miragem de frases brilhantes que proclamavam tal afastamento como um libertar-se da escravidão a que julgavam estar antes sujeitos; nem previam as amargas conseqüências da triste permuta entre a verdade, que liberta, e o erro que escraviza; nem pensavam que, renunciando à infinitamente sábia e paternal lei de Deus e à unificadora e nobre doutrina de amor de Cristo, se entregavam ao arbítrio de uma pobre e mutável sabedoria humana. Falavam de progresso quando retrocediam; de elevação, quando se degradavam; de ascensão ao amadurecimento, quando caíam na escravidão; não percebiam a vaidade de todo o esforço humano em substituir a lei de Cristo por alguma outra coisa que a igualasse: “tornaram-se fátuos nos seus arrazoados” (Rm 1,21).

24. Enfraquecida a fé em Deus e em Jesus Cristo, ofuscada nos ânimos a luz dos princípios morais, fica a descoberto o único e insubstituível alicerce daquela estabilidade e tranqüilidade, daquela ordem externa, e interna, privada e pública, única que pode gerar e salvaguardar a prosperidade dos Estados.

25. É verdade também que nos tempos em que a Europa se irmanara com ideais idênticos recebidos da pregação cristã, não faltaram dissídios, desordens e guerras que a desolaram; mas talvez nunca se tenha experimentado tão agudamente o desalento dos nossos dias sobre a possibilidade de conciliação; viva era então a consciência do justo e do injusto, do lícito e do ilícito, que facilita os entendimentos, enquanto freis o desencadear das paixões e deixa aberta a via a um honesto acordo. Nos nossos dias, ao contrário, os dissídios provêm não somente do ímpeto de paixões rebeldes, mas de uma profunda crise espiritual que subverte os sãos princípios da moral privada e pública.

II. O ESQUECIMENTO DA LEI DA CARIDADE

26. Entre os multíplices erros derivados da fonte envenenada do agnosticismo religioso e moral, queremos chamar a vossa atenção, veneráveis irmãos, para dois de modo especial, que são, a bem dizer, os que tornam quase impossível, ou ao menos precária e incerta, a convivência pacífica dos povos.

27. O primeiro desses erros perniciosos, hoje largamente difundidos, é o esquecimento daquela lei de caridade e solidariedade humana, sugerida e imposta, quer pela identidade de origem, e pela igualdade da natureza racional em todos os homens, sem distinção de povos, quer pelo sacrifício da redenção oferecido por Jesus Cristo sobre a cruz ao Pai celeste em favor da humanidade pecadora.

28. De fato, logo na primeira página, narra-nos a Escritura com grandiosa simplicidade que Deus, para coroar a sua obra criadora, fez o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26-27); e diz-nos a mesma Escritura que o enriqueceu de dons e privilégios sobrenaturais, destinando-o a uma eterna e inefável felicidade. Mostra-nos, além disso, como do primeiro casal tiveram origem os outros homens, dando-nos a seguir, com insuperável plasticidade de linguagem, a divisão em vários grupos e a sua dispersão pelas diversas partes do mundo. Mesmo quando se afastaram do seu Criador, Deus continuou a considerá-los como filhos que, segundo o seu misericordioso desígnio, deveriam um dia gozar ainda da sua amizade (Gn 12,3).

29. O Apóstolo das gentes faz-se depois arauto desta verdade, que irmana os homens numa grande família, quando anuncia ao povo grego que Deus “tirara de um único tronco toda a progênie dos homens, para que povoassem toda a superfície da terra, e determinara o curso da sua existência e os limites das suas habitações, a fim de que procurassem o Senhor” (At 17,26). Maravilhosa visão que nos faz contemplar o gênero humano na unidade de uma origem comum em Deus: um só “Deus e Pai de todos, aquele que está acima de todos, por todos e em todos” (Ef 4,6): na igualdade de natureza, igualmente constituída em todos de corpo material e alma espiritual e imortal; na unidade do fim imediato e da sua missão no mundo; na unidade de habitação, a terra, de cujos bens, por direito natural, todos os homens podem valer-se a fim de sustentar e desenvolver a vida; na unidade do fim sobrenatural, o próprio Deus, a que todos devem tender; na unidade dos meios para conseguir tal fim.

30. E o mesmo Apóstolo mostra-nos a humanidade na unidade de relações com o Filho de Deus, imagem do Deus invisível, no qual foi criado tudo o que existe; na unidade do resgate de todos operado por Cristo que, fazendo-se mediador entre Deus e os homens, mediante sua santa e acerbíssima paixão restituíra à humanidade a primitiva amizade de Deus: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus” (1Tm 2,5).

31. E para tornar mais íntima tal amizade entre Deus e a humanidade, este mesmo mediador divino e universal de salvação e de paz, no sagrado silêncio do Cenáculo, antes de consumar o sacrifício supremo, deixou cair de seus lábios divinos a palavra que vem sendo repetida no correr dos séculos, suscitando ao mesmo tempo heroísmos de caridade em meio de um mundo vazio de amor e dilacerado pelo ódio: “Eis o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 15,12).

32. Verdades sobrenaturais estas, que estabelecem bases profundas e solidíssimos vínculos de união, reforçados pelo amor de Deus e do divino Redentor, do qual recebem todos a saúde “pela edificação do corpo de Cristo, até que cheguemos todos a unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado do homem perfeito, segundo a medida da plenitude de Cristo” (Ef 4,12-13).

33. À luz desta unidade de direito e de fato de toda a humanidade, os indivíduos não nos aparecem desligados entre si, como grãos de areia; mas sim unidos por relações, diversas com o variar dos tempos, mas orgânicas, harmoniosas e mútuas, por natural e sobrenatural destino e impulso. E os povos, evoluindo e diferenciando-se segundo as diversas condições de vida e de cultura, não são destinados a quebrar a unidade do gênero humano, mas sim a enriquecê-lo e aformoseá-lo, com a comunicação dos seus dotes peculiares e com aquela recíproca permuta dos bens, possível e ao mesmo tempo eficaz somente quando um mútuo amor e uma caridade vivamente sentida venha unir todos os filhos do mesmo Pai e todos os redimidos pelo mesmo sangue divino.

34. A Igreja de Cristo, fidelíssima depositária de uma sabedoria divina e educativa, não pode cogitar nem cogita em criticar ou menosprezar as características especiais que cada povo guarda, com ciosa devoção e compreensível ufania, e considera como patrimônio precioso. O seu escopo é a unidade sobrenatural no amor universal, sentido e praticado, e não a uniformidade, exclusivamente exterior, superficial, e por isso mesmo debilitante. A Igreja saúda jubilosa e acompanha com seus votos maternais todas as diretrizes e solicitudes que visem a criterioso e ordenado desenvolvimento de forças e tendências particulares e têm suas raízes nos mais recônditos escaninhos de cada estirpe, contanto que não contrastem com os deveres da humanidade derivados da unidade de origem e comum destino. Na sua atividade missionária, a Igreja vem afirmando repetidamente que tal norma é a estrela polar do seu apostolado universal. Inúmeras pesquisas e investigações de pioneiros, realizadas com sacrifício, amor e dedicação pelos missionários de todos os tempos, propunham-se facilitar a compreensão interior e o respeito das diversas formas de civilização, e tornar fecundos os valores espirituais por meio da pregação viva e vital do evangelho de Cristo. Tudo o que em tais usos e costumes não seja indissoluvelmente ligado a erros religiosos, será sempre benevolamente examinado, e quando possível, promovido e tutelado. E o nosso imediato predecessor, de santa e veneranda memória, ao aplicar tais normas a uma questão de singular delicadeza, tomou decisões generosas que elevaram um monumento à vastidão do seu intuito e ao ardor do seu espírito apostólico. É escusado dizer-vos, veneráveis irmãos, que entendemos prosseguir por esta via sem a menor hesitação. Todos aqueles que passam a fazer parte da Igreja, qualquer seja a sua origem ou língua, devem saber que têm igual direito de filhos na casa do Senhor, onde impera a lei e a paz de Cristo. De acordo com estas normas de igualdade, a Igreja consagra as suas solicitudes à formação de numeroso clero indígena e ao aumento gradual do episcopado indígena. E para dar uma prova destas nossas intenções, escolhemos a iminente festa de Cristo-Rei para elevar à dignidade episcopal sobre o túmulo do príncipe dos apóstolos, doze representantes de diversos povos e estirpes.

35. Entre os dilacerantes contrastes que dividem a família humana, possa este ato solene proclamar a todos os nossos filhos, esparsos pelo mundo, que o espírito, o ensino e a obra da Igreja nunca poderão ser diversos daquilo que pregava o Apóstolo das gentes: “E vos revestistes do homem novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro; cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo e em todos” (Cl 3, 10-11).

O amor cristão da pátria

36. Nem se deve recear que a consciência da fraternidade universal, fomentada pela doutrina cristã, e o sentimento que ela inspira, estejam em contraste com o amor às tradições e glórias da própria pátria, ou impeçam que se promovam a prosperidade e os interesses legítimos, porquanto essa mesma doutrina ensina que existe uma ordem estabelecida por Deus no exercício da caridade, segundo a qual se deve amar mais intensamente e auxiliar de preferência os que estão a nós unidos com vínculos especiais. E o divino Mestre deu também exemplo dessa preferência pela sua pátria, chorando sobre as ruínas da Cidade Santa. Mas o legítimo e justo amor à própria pátria não deve excluir a universalidade da caridade cristã que faz considerar também aos outros e a sua prosperidade, na luz pacificadora do amor.

37. Tal é a maravilhosa doutrina de amor e de paz, que tão nobremente tem contribuído para o progresso civil e religioso da humanidade. E os arautos que, movidos por caridade sobrenatural, a anunciaram, não só arrotearam terrenos e curaram enfermidades, mas bonificaram, plasmaram e elevaram a vida a alturas divinas, impelindo-a para os cimos da santidade, que faz contemplar tudo à iuz de Deus. Elevaram monumentos e templos que demonstram a que geniais alturas conduz o ideal cristão, mas sobretudo transformaram os homens, sábios ou ignorantes, poderosos ou fracos, em templos vivos de Deus e ramos da mesma videira, Cristo. Transmitiram às gerações futuras os tesouros de arte e sabedoria antiga, não só, mas tornaram-nas participantes daquele inefável dom da sabedoria eterna, que irmana e une os homens com vínculo de sobrenatural dependência.

III. O DIREITO HUMANO E O DIREITO DIVINO

38. Veneráveis irmãos, se o esquecimento da lei de caridade universal, única que pode consolidar a paz, apagando os ódios e atenuando os rancores e contrastes, é causa de gravíssimos males à convivência pacífica dos povos, não menos nocivo ao bem-estar e à prosperidade da sociedade humana, que reúne e abraça dentro dos seus confins todos os povos, se mostra o erro contido naquelas concepções que não hesitam em dispensar a autoridade civil de toda e qualquer dependência do Ente supremo, causa primeira e Senhor absoluto tanto do homem como da sociedade, e de todo o liame de lei transcendente, que deriva de Deus como de fonte primária, e lhe concedem uma ilimitada faculdade de ação, abandonada à onda inconstante do arbítrio ou tão-somente aos ditames de exigências históricas contingentes e de interesses relativos.

39. Renegada assim a autoridade de Deus e o império da sua lei, o poder civil, por conseqüência inevitável, tende a atribuir a si aquela absoluta autonomia que compete ao Autor Supremo; a substituir-se ao Onipotente; elevando o Estado ou a coletividade a fim último da vida; a critério sumo da ordem moral e jurídica, e interdizendo dessa maneira todo o apelo aos princípios da razão natural e da consciência cristã.

40. Bem sabemos, na verdade, que os princípios errados, felizmente, nem sempre exercem toda a sua influência; principalmente quando as tradiçiões cristãs, várias vezes seculares, de que se nutriram os povos, permanecem ainda, profundamente arraigadas nos corações, ainda que inconscientemente. É preciso, todavia, ter presente a essencial insuficiência e fragilidade de toda a norma de vida social, que repouse sobre alicerce exclusivamente humano, que se inspire em motivos exclusivamente terrenos e ponha a sua força na sanção de uma autoridade simplesmente exterior.

41. Onde se nega a dependência do direito humano do direito divino, onde não se apela senão para uma idéia mal segura de autoridade meramente terrena, onde se reivindica uma autonomia fundada apenas numa moral utilitária, ali o próprio direito humano perde justamente, nas suas aplicações mais gravosas, a sua força moral, que é a condição essencial para ser reconhecido e para exigir sacrifícios, se forem precisos.

42. É verdade também que o poder assim alicerçado em base tão frágil e oscilante, mercê de circunstâncias contingentes, pode às vezes conseguir sucessos materiais que assombram observadores não muito profundos; mas há de chegar a hora em que triunfará a lei inelutável que fere tudo o que tenha sido construído sobre uma latente ou clara desproporção entre a grandeza do êxito material e exterior e a fraqueza do valor interior e da sua base moral. Desproporção que subsiste sempre quando a autoridade pública desconhece ou renega o domínio do sumo legislador que, se dá o poder aos governantes, não deixa de assinalar-lhes e determinar-lhes os limites.

A tarefa do Estado

43. Quer o Criador que exista a soberania civil, como afirmou sapientemente o nosso grande predecessor Leão XIII na encíclica Immortale Dei, (4) para que regule a vida social de acordo com as prescrições de uma ordem imutável nos seus princípios universais, para que torne mais fácil à pessoa humana, na ordem temporal, alcançar a perfeição física, intelectual e moral, e para que a ajude a conseguir o fim sobrenatural.

44. Nobre prerrogativa e missão do Estado é, pois, o fiscalizar, auxiliar e ordenar as atividades particulares e individuais da vida nacional, fazendo-as convergir harmonicamente para o bem comum, que não pode ser determinado por concepções arbitrárias, nem pode receber a sua norma primariamente da prosperidade material da sociedade, mas sim do desenvolvimento harmônico e da perfeição natural do homem, a quem, como meio, é pelo Criador destinada a sociedade.

45. Considerar o Estado como fim a que tudo deve ser dirigido e subordinado, seria o mesmo que prejudicar a verdadeira e duradoura prosperidade das nações. E dá-se isso quando tal domínio ilimitado seja atribuído ao Estado, como mandatário da nação, do povo ou até de uma classe, ou quando o Estado o pretende, como senhor absoluto, independentemente de qualquer mandato.

46. Com efeito, se o Estado se arroga e dispõe das iniciativas privadas, estas, que são governadas por delicadas e complexas normas internas, que garantem e asseguram alcançar o fim que lhes é próprio, vêem-se danificadas com desvantagem do bem público, por serem destacadas do seu ambiente natural, ou seja da responsabilidade ativa particular.

47. Também a primeira e essencial célula da sociedade, a família, com o seu bem-estar e desenvolvimento, correria então o risco de ser considerada pertença exclusiva do poder nacional, esquecendo-se assim que o homem e a família são, por natureza, anteriores ao Estado e que a ambos deu o Criador forças e direitos, comando-lhes também uma missão correspondente às incontestáveis exigências naturais de cada um.

48. A educação das novas gerações não visaria à desenvolvimento equilibrado e harmônico das forças físicas e de todas as qualidades intelectuais e morais, mas sim à formação unilateral daquelas virtudes cívicas julgadas necessárias para alcançar sucessos políticos; ao contrário deixariam de ser inculcadas aquelas virtudes que dão à sociedade o perfume de nobreza, de humanidade e de respeito, como se elas diminuíssem o brio do cidadão.

Os direitos da família

49. Diante dos nossos olhos aparecem em toda a sua dolorosa clareza os perigos que tememos possam advir a esta geração e às gerações futuras, do desconhecimento, da diminuição e da progressiva abolição dos direitos próprios da família. Por isso é que nos erguemos em defensores de tais direitos, com plena consciência do dever que nos impõe o nosso ministério apostólico. As angústias dos nossos tempos, tanto interiores como exteriores, tanto materiais como espirituais, os multíplices erros com suas inúmeras repercussões, se há alguém que os experimenta amarissimamente é a minúscula e nobre célula familiar. E preciso, às vezes, grande coragem e, na sua simplicidade, heroísmo digno de grande admiração e respeito, para suportar as durezas da vida, o peso cotidiano das misérias, as indigências e estreitezas que crescem em medida jamais experimentada; e por vezes sem razão nem necessidade: Quem se ocupa das almas e recebe as confidências dos corações, bem conhece as furtivas lágrimas de muitas mães, a dor resignada de inúmeros pais, e as muitas amarguras, que nenhuma estatística cita nem poderá citar, vê com verdadeira preocupação crescerem sempre mais esses sofrimentos, bem sabendo que as potências da subversão e destruição estão vigilantes e prontas a servir-se disso para os seus tenebrosos desígnios.

50. Quem tenha um pouco de boa vontade e olhos abertos não poderá por certo recusar ao Estado, nas circunstâncias extraordinárias em que se acha o mundo, um direito mais amplo e excepcional para acudir às necessidades do povo. Mas a ordem moral, por Deus estabelecida, exige também em tais contingências que se indague com maior sutileza e seriedade se tais providências são realmente necessárias, segundo as normas do bem comum.

Os direitos da consciência

51. Em todo o caso, quanto mais onerosos são os sacrifícios materiais pelo Estado, exigidos dos indivíduos e das famílias, tanto mais sagrados e invioláveis devem ser os direitos das consciências. Poderá pretender bens e sangue, nunca porém a alma por Deus redimida. A missão que Deus confiou aos pais de se interessarem pelo bem material e espiritual da sua prole e de dar a ela uma formação harmônica e repassada de verdadeiro espírito religioso, não lhes poderá ser arrebatada sem grave lesão do direito. Esta formação deve certamente ter por finalidade também preparar a juventude para cumprir com inteligência, consciência e galhardia aqueles deveres de patriotismo que dá à pátria terrestre a devida medida de amor, de dedicação e colaboração. Mas por outra parte, uma formação que se esqueça, ou, o que é pior ainda, propositalmente descure de dirigir os olhos e o coração da juventude para a pátria sobrenatural, seria uma injustiça contra a juventude, uma injustiça contra os inalienáveis deveres e direitos da família cristã, um excesso a que se deve remediar também em favor do bem público e do Estado. Semelhante educaç?8o poderia parecer àqueles que por ela são responsáveis, fonte de maior força e vigor; na realidade seria o contrário e as tristes conseqüências encarregar-se-iam de prová-lo. O delito de lesa majestade contra o “Rei dos reis e o Senhor dos dominadores” ( 1Tm 6,15; Ap 19,16) perpetrado por uma educação indiferente ou contrária ao espírito cristão, a inversão do “deixai que as crianças venham a mim” (Mc 10,14) acarretaria amaríssimos frutos. Ao contrário, o Estado que tira aos dilacerados corações dos pais e das mães as suas preocupações e restabelece os seus direitos, mais não faz do que promover a própria paz interna e lançar as bases de um futuro mais feliz para a pátria. As almas dos filhos que Deus deu aos pais, assinaladas no batismo com o selo real de Cristo, são um depósito sagrado por Deus vigiado com cioso amor. O mesmo Crispo que disse “deixai que as crianças venham a mim”, ameaçou também, não obstante sua bondade e misericórdia, terríveis males àqueles que escandalizam os prediletos do seu coração. E que escândalo mais nocivo e duradouro às gerações do que uma formação da juventude dirigida para uma meta que afasta de Cristo, “caminho, verdade e vida”, levando-a a uma simulada ou manifesta apostasia? Este Cristo do qual querem alienar as gerações juvenis presentes e futuras, é o mesmo que recebeu do seu eterno Pai o poder no céu e na terra. Em sua mão onipotente tem ele o destino dos Estados, dos povos e das nações. A ele compete diminuir-lhes ou prolongar-lhes a vida, o desenvolvimento, a prosperidade e a grandeza. De tudo o que existe sobre a terra, somente a alma tem vida imortal. Um sistema de educação que não respeitasse o recinto sagrado da família, protegido pela santa lei de Deus, que procurasse minar-lhe os alicerces, que fechasse à juventude o caminho que conduz a Deus, às fontes de vida e de alegria do Salvador (Is 12,3), que considerasse o apostatar Cristo e a Igreja como símbolo de fidelidade ao povo ou a uma determinada classe, pronunciaria contra si mesmo a sentença de condenação, e experimentaria, a seu tempo, a inelutável verdade das palavras do profeta: “Aqueles que se afastam de ti serão escritos na terra” (Jr 17,13).

Leis morais supremas

52. A concepção que atribui ao Estado uma autoridade ilimitada, veneráveis irmãos, não é somente um erro pernicioso à vida interna das nações, à sua prosperidade e ao maior incremento do seu bem-estar, mas prejudica também as relações entre os povos, rompendo a unidade da sociedade supernacional, tirando a base e o valor ao direito das gentes, abrindo caminho à violação dos direitos alheios e tornando difícil o acordo para a convivência pacífica.

53. Embora o gênero humano, por disposição de ordem natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua prosperidade.

54. Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral. Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das gentes.

55. Não há dúvida que o pressuposto indispensável de toda a convivência pacífica entre os povos e a alma das relações jurídicas, em vigor entre eles, é a mútua confiança, a previsão e persuasão da recíproca fidelidade à palavra dada, a certeza de que tanto de uma parte como de outra existe a convicção de que “é preferível a sabedoria às armas guerreiras” (Ecl 9,18) e que se está disposto a discutir e a não recorrer à força ou a ameaça da força quando surgissem tardanças, impedimentos, alterações e contendas, coisas que podem ter a sua origem não na má vontade, mas sim em circunstâncias que se modificaram ou interesses que se contrastam.

56. Mas, por outra parte, destacar o direito das gentes da âncora do direito divino, para ligá-lo à vontade autônoma dos Estados, é o mesmo que destronar esse direito e tirar-lhe os títulos mais nobres e válidos, para abandoná-lo à infausta dinâmica do interesse privado e do egoísmo coletivo, no intuito de fazer valer os próprios direitos desconhecendo ao mesmo tempos os dos outros.

Orgulhosas ilusões

57. E também verdade que, com o passar do tempo e a mudança substancial das circunstâncias, não previstas e talvez nem sequer previsíveis no ato da estipulação, um tratado ou algumas das suas cláusulas podem tornar-se ou parecer injustas, inatualizáveis ou muito onerosas a uma das partes; é claro que, se isso acontecesse, dever-se-ia proceder oportunamente a uma discussão leal para modificar ou substituir o tratado. Mas considerar os pactos, por princípio, como efêmeros e arrogar-se tacitamente a faculdade de rescindi-los unilateralmente quando não convenham mais, seria o mesmo que anular a confiança recíproca entre os Estados. Mutilar-se-ia assim a ordem natural, cavando-se ao mesmo tempo entre as nações lamentáveis abismos de separação.

58. Hoje, veneráveis irmãos, todos contemplam com terror o abismo a que levaram os erros por nós caracterizados e as suas conseqüências práticas. Ruíram por terra as orgulhosas ilusões de um progresso indefinido; e os que ainda cochilassem seriam despertados, na trágica época que atravessamos, com as palavras do profeta: “Ouvi, ó surdos, e vede ó cegos” (Is 42,18). O que exteriormente parecia ordem, não era senão uma invasão perturbadora e desbarato das normas de vida moral as quais, destacadas da majestade da lei divina, haviam contaminado todos os campos da atividade humana. Mas deixemos o passado e lancemos os nossos olhares para o futuro que, segundo o que prometem os poderosos deste mundo, apenas cessados os hodiernos e sangüinolentos encontros, consistirá numa nova reorganização do mundo, fundada na justiça e na prosperidade. Será verdadeiramente diferente tal futuro? Será sobretudo melhor? No fim desta guerra, serão os tratados de paz e a nova ordem internacional animados de justiça e eqüidade para com todos? Serão animados daquele espírito que liberta e pacifica, ou serão uma lamentável repetição dos erros antigos e recentes? Coisa vã e demonstrada pela experiência, seria esperar uma mudança radical exclusivamente do encontro bélico. A hora da vitória é sempre uma hora de um triunfo exterior por parte de quem a consegue; mas é, ao mesmo tempo, a hora da tentação, na qual o anjo da justiça luta com o demônio da violência. O coração do vencedor endurece-se muito facilmente; a moderação e uma longividente sabedoria deparam-se-lhe como fraqueza; a exaltação das paixões populares, incitada pelos sacrifícios e sofrimentos suportados, vela muitas vezes os olhos dos responsáveis e faz-lhes desprezar a voz admoestadora da humanidade e da eqüidade, sobrepujada ou aniquilada pelo inumano: “ai dos vencidos!” Resoluções e decisões nascidas em tais circunstâncias arriscam-se sempre a serem injustas se bem cobertas com o manto da justiça.

Energias renovadoras

59. Não, veneráveis irmãos, a salvação dos povos não pode vir dos meios externos; a espada que é capaz de impor condições de paz, não pode criar a paz. As energias que devem renovar a face da terra devem partir do interior, do espírito. A nova organização do mundo, da vida nacional e internacional, quando cessarem as amarguras e as cruéis lutas hodiernas, não deverá repousar mais na areia movediça das normas mutáveis e efêmeras, deixadas ao arbítrio do egoísmo coletivo e individual. Devem elas antes erguer-se sobre sólida base, sobre a rocha inabalável do direito natural e da revelação divina. Dali deverá o legislador humano atingir aquele espírito de equilíbrio, aquele apurado senso de responsabilidade moral, sem o que é fácil desconhecer os limites entre o legítimo uso e o abuso do poder. Tão-somente assim as suas decisões poderão ter consistência interna, nobre dignidade e sanção religiosa, e não ficarão à mercê do egoísmo e da paixão. Porquanto, se é verdade que os males sofridos hoje pela humanidade, procedem, em parte do desequilíbrio econômico e da luta dos interesses, no intuito de alcançar uma distribuição mais équa dos bens que Deus concedeu ao homem como meios do seu sustento e progresso, verdade é também que eles têm a sua raiz muito mais profunda a tocar nas crenças religiosas e nas convicções morais, pervertidas pelo progressivo afastamento dos povos da unidade de doutrina e de fé, de costumes e de moral, promovida um dia pela obra indefessa e benéfica da Igreja. A reeducação da humanidade, para ter qualquer resultado positivo, deverá ser sobretudo espiritual e religiosa; deverá, portanto, partir de Cristo, sua base indispensável, deverá ser atuada pela justiça e coroada pela caridade.

A tarefa materna da Igreja

60. Realizar esta obra de regeneração, adaptando os seus meios às modificadas condições dos tempos e às novas necessidades do gênero humano, eis a tarefa essencial e materna da Igreja. Agregação do Evangelho, imposta pelo seu divino fundador, em que se inculca aos homens a verdade, a justiça e a caridade, e o esforço para arraigar nas almas e nas consciências os seus preceitos, eis também o trabalho mais nobre e frutuoso em favor da paz. A grandiosidade de tal missão quase que esmorece os corações daqueles que fazem parte da Igreja militante. Mas o empenhar-se para que seja difundido o reino de Deus, coisa que cada século procurou realizar de vários modos, com diversos meios e não poucas e duras lutas, é um dever imposto a todo aquele que a graça divina arrancou das garras de Satanás e que com o batismo elegeu cidadão daquele reino. E se o pertencer a esse reino, o viver segundo o seu espírito, o trabalhar pelo seu incremento e o tornar acessíveis os seus bens também àquela porção da humanidade que ainda dele não faz parte, equivale em nossos dias a dever afrontar oposições vastas e tenazes e minuciosamente organizadas, isso a ninguém dispensa da franca e corajosa procissão de fé, mas antes deve incitar a ser firme na luta, também a custo dos maiores sacrifícios. Quem vive do espírito de Cristo não se deixa abater pelas dificuldades que lhe vêm ao encontro, mas sente-se como que impelido a empregar todas as suas forças com plena confiança em Deus; não se esquiva às estreitezas e necessidades da hora, mas afronta as suas asperezas, pronto sempre a socorrer com aquele amor que não poupa sacrifícios; é mais forte que a própria morte e não se deixa levar pelas impetuosas águas da tribulação.

61. Diariamente elevamos a Deus o nosso humilde e profundo agradecimento, veneráveis irmãos, pelo íntimo conforto e celeste alegria que nos proporciona observar em todas as partes do mundo católico sinais evidentes de um espírito que afronta corajosamente os gigantescos encargos da época presente e que, generosa e decididamente, tende a reunir em fecunda harmonia o primeiro e essencial dever da própria santificação e a atividade apostólica para a difusão sempre maior do reino de Cristo. Do movimento dos congressos eucarísticos promovidos com amorosa solicitude pelos nossos predecessores, da colaboração dos leigos formados na Ação católica e da profunda consciência da sua nobre missão, derivam fontes de graças e reservas de forças, que dificilmente se poderiam estimar como merecem, tanto delas necessitamos nos tempos atuais em que aumentam as ameaças, enquanto arde a luta entre o cristianismo e o anticristianismo.

IV. O TRABALHO APOSTÓLICO DOS LEIGOS

62. Quando contemplamos com tristeza a desproporção entre o número dos sacerdotes e os encargos que lhes tocam, quando vemos verificar-se ainda hoje a palavra do Salvador: “a messe é imensa e os operários são poucos” (Mt 9,37; Lc 10,2), a colaboração dos leigos no apostolado hierárquico, numerosa e animada de ardente zelo e de generosa dedicação, depara-se-nos um precioso auxílio à obra dos sacerdotes e mostra possibilidades de desenvolvimento que legitimem as mais belas esperanças. A prece da Igreja ao Senhor da messe, para que mande operários à sua vinha, foi atendida como o requerem as necessidades da hora presente e, felizmente, supre e completa as energias, por vezes impedidas e insuficientes, do apostolado sacerdotal. Uma ardente falange de homens e de mulheres e de jovens de ambos os sexos, obedecendo à voz do sumo pastor às diretrizes dos próprios bispos, consagra-se com todo o ardor de sua alma às obras do apostolado para reconduzir a Cristo as massas populares que dele se haviam separado. A todos chegue, neste momento tão importante para a Igreja e a humanidade, a nossa saudação paterna, o nosso comovido agradecimento e a nossa confiante esperança. Puseram eles, verdadeiramente, a sua vida e as suas obras sob o vexilo de Cristo-Rei e podem repetir com o Salmista: “Ao rei exponho as minhas obras” (Sl 44,1). O “venha a nós o vosso reino” é não só o voto ardente de suas preces, mas também a diretriz de suas obras. Em todas as classes, em todas as categorias, em todos os grupos esta colaboração do laicado com o sacerdócio revela preciosas energias às quais está confiada uma missão que mais elevada e consoladora não poderiam desejar corações nobres e fiéis. Esse trabalho apostólico, realizado segundo o espírito da Igreja, consagra o leigo quase “ministro de Cristo” no sentido assim explicado por santo Agostinho: “Ó irmãos, quando ouvis o Senhor dizer: ‘Onde estou eu aí estará também o meu ministro’, não deveis pensar somente nos bons bispos e nos bons clérigos. Também vós, a vosso modo, deveis ser ministros de Cristo, vivendo bem, fazendo esmolas, pregando o seu nome e a sua doutrina a quem puderdes, de modo que cada qual, mesmo se pai de família, reconheça dever, também por esse título, um afeto paterno à sua família. Por Cristo e pela vida eterna, ninguém deixe de exortar os seus, e os instrua, exorte, repreenda, demonstrando-lhes sempre benevolência e mantendo-os na ordem; exercerá assim em casa o ofício de clérigo e, de certo modo, o de bispo, servindo Cristo, para com ele permanecer eternamente”.(5)

No lar doméstico

63. Ao promover esta colaboração de leigos ao apostolado, tão importante nos nossos tempos, toca uma especial missão à família, porque o espírito da família influi essencialmente sobre o espírito das gerações juvenis. Enquanto resplandecer, no lar doméstico, a chama sagrada da fé em Cristo e os pais formarem e plasmarem a vida dos filhos segundo esta fé, a juventude prontificar-se-á sempre a reconhecer o Redentor em suas prerrogativas reais, e opor-se-á a quem o tente banir da sociedade ou sacrilegamente lhe viole os direitos. Ainda que se fechem as Igrejas, que se proscreva da escola a imagem do Crucificado, a família continua a ser um refúgio providencial e, de certo qual modo, inatacável da vida cristã. E damos infinitas graças a Deus por vermos que muitíssimas famílias cumprem essa sua missão com uma fidelidade que afronta todos os ataques e sacrifícios. Uma possante falange juvenil, mesmo naquelas regiões em que a fé em Cristo significa sofrimento e perseguição, permanece firme junto do trono do Redentor, com aquela decisão e tranqüilidade que fazem lembrar os tempos mais gloriosos das lutas da Igreja. Que de torrentes de bens inundariam o mundo, de quanta luz, ordem e paz gozaria a vida social, e quantas energias preciosas e insubstituíveis promoveriam o bem da humanidade se em toda a parte se concedesse à Igreja, mestra de justiça e de amor, aquela liberdade de ação a que tem direito sagrado e incontestável, por mandato divino. Quantos males poderiam ser evitados, quanta felicidade e tranqüilidade se poderia criar, se os esforços sociais e internacionais para se restabelecer a paz se deixassem permeabilizar pelos profundos impulsos do evangelho do amor, na luta contra o egoísmo individual e coletivo!

Trabalho pacificador

64. Entre as leis que regulam a vida dos fiéis cristãos e os postulados duma genuína humanidade não existe nenhum contraste mas sim comunhão de ideais e apoio mútuo. Para vantagem da humanidade que, profundamente abalada, sofre material e moralmente, formulamos um nosso ardente desejo: e é que as angústias presentes abram os olhos de muitos, a fim de que, iluminados pela verdadeira luz, possam refletir sobre nosso Senhor Jesus Cristo e a missão da sua Igreja nesta terra, e para que os que exercem o poder se resolvam a dar à Igreja campo livre na formação das gerações, segundo os princípios da justiça e da paz. Este trabalho pacificador supõe naturalmente que não se interponham embaraços ao exercício da missão que Deus confiou à sua Igreja, que não se restrinja o campo da sua atividade, que não se subtraia ao seu benéfico influxo as massas e principalmente a juventude. Por isso nós, como representante daquele que o profeta denominou “Príncipe da paz”(Is 9,6), apelamos para os governantes e para todos os que de qualquer modo exerçam influência nos negócios públicos, a fim de que a Igreja goze sempre de plena liberdade no cumprimento da sua obra educativa que é anunciar a verdade, inculcar a justiça e inflamar os corações de caridade divina.

65. Se, por uma parte, a Igreja não pode renunciar ao exercício desta sua missão que tem por fim último atuar neste mundo o divino desígnio de restaurar tudo em Cristo, por outra, esta sua obra de restauração revela-se, hoje mais do que nunca, necessária; visto a triste experiência vir demonstrando que os meios externos, as providências humanas e os expedientes políticos, por si sós, são incapazes de dar um alívio eficaz à humanidade atribulada por tantos males.

66. Convencidos da dolorosa falência dos expedientes humanos, e para esconjurar as tempestades que ameaçam arrastar a civilização para tenebrosa voragem, muitos são os que voltam seus olhares esperançosos para a Igreja, para a cátedra de Pedro, rocha de verdade e de amor, certos de que tão-somente dali pode partir aquela unidade de doutrina religiosa e moral que, em tempos idos, tanta consistência deu às relações pacíficas entre os povos. Unidade para a qual dirigem também seus olhares nostálgicos tantos homens responsáveis pelos destinos das nações, os quais estão vendo hoje quão incapazes sejam os meios em que um dia depositaram tanta confiança; unidade desejada por muitíssimos dos nossos filhos que invocam cotidianamente o Deus de paz e de amor; unidade aguardada por tantos espíritos nobres, se bem afastados de nós, os quais, em sua fome e sede de justiça e de paz, volvem seus olhares para a Sé Apostólica, dela esperando diretriz e conselho.

67. Reconhecem eles na Igreja católica a bimilenária estabilidade das normas de fé e de vida, a inabalável solidez da hierarquia eclesiástica que, unida ao sucessor de Pedro, se prodigaliza em iluminar as mentes com a doutrina do evangelho, em guiar e santificar os homens; e se é de grande condescendência para com todos, é também firme, ainda que a custo de tormentos e de martírio, quando deve dizer: “Não é permitido”.

Infundadas suspeitas

68. Entretanto, veneráveis irmãos, tanto a doutrina de Cristo, única que pode dar aos homens uma base de fé que lhes alargue a vista e lhes dilate divinamente o coração; única que pode remediar eficazmente às hodiernas e gravíssimas dificuldades, como a operosidade da Igreja em desenvolver e difundir tal doutrina são, às vezes, alvos de infundadas suspeitas como se visassem abalar as bases da autoridade civil ou usurpar-lhes os direitos.

69. Para desfazer tais suspeitas, declaramos com apostólica sinceridade – confirmando todavia tudo o que o nosso predecessor Pio XI, de veneranda memória, ensinou em sua encíclica Quas primas, de 11 de dezembro de 1925, acerca da potestade de Cristo-Rei e da sua Igreja – que a Igreja jamais visou nem visa a tais fins, e se alarga os braços para este mundo não é para dominar mas para servir. Não pretende ela intrometer-se no campo próprio das demais autoridades legítimas, mas oferece-lhes o seu auxílio, a exemplo e com o espírito do seu divino Fundador que “passou fazendo o bem” (At 10,38).

70. A Igreja prega e inculca obediência e respeito às autoridades terrenas que em Deus tem sua nobre origem, atendo-se ao ensinamento de Cristo que disse: “Dai a César o que é de César” (Mt 22,21); não tem miras usurpadoras e canta na sua liturgia: “não arrebata os reinos terrestres, Aquele que dá os reinos celestes”.(6) Não deprime as energias humanas, mas antes as orienta para o que é magnânimo e generoso, e forma caracteres que não transigem com a consciência. Ela, que civilizou os povos, nunca se opôs ao progresso da humanidade, do qual se compraz e goza com maternal ufania. O fim da sua autoridade declaram-no admiravelmente os anjos que adejavam sobre o berço do Verbo encarnado, quando cantavam glória a Deus e anunciavam paz aos homens de boa vontade. Esta paz que o mundo não pode dar, deixou-a, por herança aos seus discípulos o divino Redentor: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” (Jo 14,27); e assim, seguindo a doutrina sublime de Cristo, por ele mesmo compendiada no duplo preceito do amor a Deus e ao próximo, milhões de almas conseguiram essa paz, conseguem-na ainda hoje e hão de consegui-la sempre. A história, por um célebre orador romano sabiamente denominada “mestra da vida”,(7) há quase dois mil anos vem demonstrando a veracidade da palavra da Escritura que afirma: “não terá paz quem resiste a Deus” (cf. Jó 9,4). Porque somente Cristo é a “pedra angular” (Ef 2,20), sobre a qual o homem e a sociedade podem encontrar estabilidade e salvação.

71. Sobre esta pedra angular foi educada a Igreja, e por isso contra ela nunca poderão prevalecer as potências adversas: “as portas do inferno não prevalecerão” (Mt 16,18), nem poderão nunca enfraquecê-la, porquanto as lutas, tanto internas como externas, só poderão dar-lhe mais força e aumentar o número de coroas das suas gloriosas vitórias. Ao contrário, qualquer outro edifício que não tenha suas bases na doutrina de Cristo, apóia-se sobre areia movediça e estará fadado a ruir miseramente (cf. Mt 7,26-27).

V. A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE

72. Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos esta nossa primeira encíclica, bem pode ser qualificado, sob vários aspectos, de uma verdadeira “hora das trevas” (Lc 22,53), na qual o espírito da violência e da discórdia verte sobre a humanidade a sangüinolenta ânfora de dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o nosso coração, repassado de compassivo amor, está nesta hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por assim dizer, no “princípio das dores” (Mt 24,8), mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação, pranto e miséria. Do sangue de inúmeros seres humanos, mesmo de não combatentes, desprende-se lancinante brado, especialmente nessa dileta nação como a Polônia que, pela sua fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa da civilização cristã, gravados em caracteres indeléveis nos fatos da história, tem direito à simpatia humana e fraterna do mundo, e aguarda, confiante na poderosa intercessão de Maria, “Socorro dos cristãos”, a hora de uma ressurreição que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira paz.

73. O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo, passara diante de nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada deixamos de fazer do que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios que tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse às armas e para conservar aberto o caminho que levaria a um entendimento honroso para ambas as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria a outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério apostólico e do amor cristão, fazer tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade toda e à cristandade os horrores de uma guerra mundial, ainda que as nossas intenções e as nossas vistas corressem risco de serem mal interpretadas. Os nossos conselhos, se bem ouvidos com respeito, nem por isso foram seguidos. E enquanto o nosso coração de pastor, cheio de amargura e preocupação, observa o que se passa, como que aparece aos nossos olhos a figura do bom pastor, que é como se devêssemos, em seu nome, repetir ao mundo a queixa: “ah! se conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos” (Lc 19,42).

74. No meio deste mundo, hoje em estridente contraste com a paz de Cristo no reino de Cristo, a Igreja e os seus fiéis acham-se em tempos e anos de provações, raramente conhecidos na sua história de lutas e de sofrimentos. Mas em semelhantes ocasiões, quem se conserva firme na fé e tem coração robusto, sabe também que Cristo-Rei nunca lhe está tão próximo como na hora da provação, que é a hora da fidelidade. Com o coração dilacerado pelos sofrimentos de tantos dos seus filhos, mas ao mesmo tempo com aquela coragem e firmeza que lhe vem das promessas do Senhor, a esposa de Cristo vai ao encontro dessas ondas procelosas. Sabe que a verdade que anuncia, e a caridade que ensina e pratica, serão os conselheiros e cooperadores indispensáveis dos homens de boa vontade que desejem reconstruir um mundo novo, fundado na justiça e no amor, apenas a humanidade se canse de percorrer o caminho do erro e de provar os amargos frutos do ódio e da violência.

Uma base fundamental

75. Entretanto, veneráveis irmãos, o mundo e todos os que são hoje vítimas da calamidade bélica devem saber que o dever do amor cristão, base fundamental do reino de Cristo, não é uma palavra vã, mas uma viva realidade. Vastíssimo campo se abre à caridade cristã em todas as suas formas. Temos plena confiança de que todos os nossos filhos, e especialmente aqueles não coenvoltos no flagelo da guerra, recordar-se-ão, a exemplo do divino Samaritano, de socorrer aqueles que, vítimas da guerra, têm direito à compaixão e socorro.

76. A Igreja católica, cidade de Deus, “que tem por rei a verdade, por lei a caridade e por medida a eternidade”, (8) anunciando sem erros nem falhas a verdade de Cristo, trabalhando com arrojo materno e segundo o amor de Cristo, aparecerá certamente como visão beatífica de paz sobre essa voragem de erros e paixões, aguardando o momento em que a mão onipotente de Cristo-Rei venha acalmar a tempestade e banir os espíritos da discórdia que a desencadearam. Continuaremos, entretanto; a fazer tudo o que pudermos para acelerar o dia em que a pomba da paz possa pousar seus pés sobre esta terra, ora imersa no dilúvio da discórdia. Continuaremos a fazê-lo, confiando naqueles eminentes homens de Estado que antes de rebentar a guerra envidaram nobres esforços para afastar dos povos tão grande flagelo; confiando também nos milhões de almas de todos os países e esferas sociais que invocam não somente justiça mas caridade e misericórdia; mas, sobretudo, confiando em Deus onipotente a quem dirigimos diariamente a oração: “à sombra das vossas asas me acolho, até que passe a calamidade” (Sl 56,2).

Deus tudo pode

77. Deus tudo pode: juntamente com a felicidade e os destinos dos povos tem também em suas mãos os conselhos humanos e quando lhe pareça bem poderá fazê-los inclinar suavemente para o lado que ele quer; para a sua onipotência os obstáculos não passam de meios com que plasma as coisas e os acontecimentos e dirige as mentes e as vontades livres aos seus altíssimos fins.

78. Orai, pois, veneráveis irmãos, orai sem cessar, orai sobretudo quando oferecerdes o sacrifício divino do amor. Orai também vós, cuja profissão corajosa da fé vem impor-vos hoje duros, penosos e, não raro, heróicos sacrifícios; orai vós membros padecentes da Igreja, que Jesus há de consolar-vos e aliviará os vossos sofrimentos. E não vos esqueçais de, com verdadeiro espírito de mortificação, tornar as vossas penitências e orações mais aceitas aos olhos daquele que “ampara os que caem e endireita todos os curvados” (Sl 144,14) a fim de que a sua misericórdia abrevie os dias de provação e se realizem assim as palavras do Salmo: “Invocaram o Senhor nas suas tribulações e ele livrou-os das suas angústias” (Sl 106,13).

79. E vós, cândidas legiões de crianças, que sois os benjamins e prediletos de Jesus, ao receberdes o Pão da vida, dirigi a ele vossas ingênuas e inocentes orações unindo-as às de toda a Igreja. O coração de Jesus, que vos ama, não poderá resistir à inocência que suplica. Orai todos e orai sem cessar.

80. Poreis assim em prática o sublime preceito do divino Mestre, o testamento sagrado do seu coração, “que todos sejam uma só coisa” (Jo 17,21): isto é, que todos vivam naquela unidade de fé e de amor, na qual reconheça o mundo o poder e a eficácia da missão de Cristo e da obra da sua Igreja.

81. A Igreja dos primeiros tempos compreendeu e praticou este divino preceito exprimindo-o também em magnífica oração; uni-vos, pois, todos com os mesmos sentimentos que tanto correspondem às necessidades dos tempos atuais: “Lembrai-vos, Senhor, da vossa Igreja, para livrá-la de todo o mal e aperfeiçoá-la na vossa caridade e, santificada, reuni-a de todas as partes do mundo no vosso reino que para ela preparastes, porque vossa será a virtude e glória por todos os séculos”.(9)

82. Confiando que Deus, autor e amante da paz, se digne atender às súplicas da Igreja, como penhor da abundância das graças divinas e da plenitude de nosso ânimo paterno, vos concedemos a bênção apostólica.

Dado em Castelgandolfo, junto de Roma, no dia 20 de outubro do ano de 1939, I do Nosso Ponti ficado.

Pio XII Papa

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.