Tatuagem: sinal de afirmação ou de negação da identidade?

Tatuagem: sinal de afirmação ou de negação da identidade?

Duns Scotus

Tatuagem

Intenção: Propomos abaixo uma reflexão filosófica acerca da tatuagem. Comumente se defende que a tatuagem é a afirmação subjetiva da identidade. Maria Isabel Mendes de Almeida em seu artigo Tatuagem e subjetividade nos dá uma mostra da relação entre a tatuagem e a subjetividade. Contudo, se for preciso afirmar a identidade através de uma marca que expresse e promova o valor e o reconhecimento da identidade na pessoa, significa que a pessoa não é reconhecida pelo que ela é em si mesma, em sua identidade, em sua dignidade, independente de qualquer simbolismo, senão pelo que sua tatuagem representa frente ao grupo que a aceita ou não. Neste caso, não seria a tatuagem, em nossos dias, justamente a expressão de uma privação, carência ou crise de identidade? Mas se a tatuagem não for a expressão da afirmação de identidade, senão a tentativa de chamar a atenção por meio de uma expressão que dê conta de mostrar a conquista ou a perda de um espaço, de um ideal, de um sentimento, de um valor…caberia ainda outra pergunta: não seria a tatuagem em nossos dias justamente o sinal mais expressivo de uma privação, carência ou crise do diálogo, afeto e convivência entre as pessoas? Obviamente estas são só algumas perguntas que norteiam nosso interesse pelo tema, cujas questões [propostas por alunos e amigos] exporemos aqui. Não há dúvidas de que há muitos outros motivos que levam uma pessoa a tatuar-se, os quais não abordaremos aqui. Os motivos que nos parecem mais evidentes são os que destacamos acima, por isso a eles nos referimos em nossa análise.

Fato: Não raro caminhando pelas ruas nos deparamos com inúmeras pessoas tatuadas nas mais diversas partes do corpo. O que fora anos atrás sinal de milícia portuária [marinheiros] ou de rebeldia [rebeldes sem causa, roqueiros etc] se encontra em pessoas das mais variadas idades, sexo e classes sociais…e inclusive em crianças. Sem sombras de dúvidas a tatuagem configura-se em nossos dias como uma moda.

Moda: Por moda entendemos o modo – daí moda – de vertir-se ou de conduzir-se na vida social, na medida em que expressa um gosto, um apreço, um hábito, daí, portanto, uma moralidade, uma crença, uma fé, um sentimento que é aceito por um grupo de pessoas, às vezes com ou sem o respaldo da sociedade, da religião, num dado momento histórico. Uma atitude isolada não é moda, pois para definir-se como moda deve resguardar algumas destas referências acima dispostas. Mas o que é tatuagem?

Origem: A palavra tatuagem toma origem da palavra tattoo utilizada por primeira vez por James Cook, que escreveu em seu diário a palavra tattow, também conhecida como tatau em referência ao som feito durante a execução da mesma, onde se utilizavam ossos finos como agulhas e uma espécie de martelinho para introduzir a tinta na pele. Mas será a tatuagem efetivamente apenas uma arte?

Arte? Tatuar-se como dissemos é moda, mas o fato de ser moda não a perfila como obra de arte ou efetiva expressão da mesma, pois não convém confundir a obra de arte com qualquer modismo que se valha de técnica artística. A arte é expressão do belo, enquanto carrega em si o bem que causa em qualquer expectador que a veja, sinta, perceba ou a contemple. O belo não é relativo, porque é expressão do ser e o ser não é relativo. A arte tem a vocação de revelar um aspecto do ser e de causar comumente no expectador que a contemple, a felicidade por esta descoberta, da revelação da verdade, do ser sob o prisma do belo. Não é difícil encontrar corpos tatuados que causam todo o contrário…inclusive mal estar em quem os vê…uma sensação de desordem por não sabermos o que significa e de não saber onde começa e onde termina tal mensagem. Outras, no entanto, que exprimem certa beleza. Portanto, não é qualquer técnica ou expressão artística que define a arte enquanto expressão do belo. Caso isso ocorra, será denominado arte só em sentido equívoco.

Valor! Não se duvida do valor sentimental, do sentido e do significado que tal tatuagem guarda para o sujeito que a possui…seja ele bom ou mal, pois há quem tatue no corpo o número de homicídios cometidos, crimes praticados ou o número de vidas salvas, do filho amado….Não há dúvidas que é o sentimento o norteador de tal atitude. O homem do século XX, a pesar de toda fama de tecnocêntrico e racional revela-se sentimental, dado com facilidade às paixões, levado para onde leva e aponta o vento dos sentimentos e das vaidades. As paixões não são boas nem más em si mesmas, mas o seu uso e a intenção que as movem podem torná-las boas ou más. Embora as paixões são da alma, é o corpo que as exprime. Por isso, nos últimos anos o corpo tem sido a sede e o lugar comum de uma crescente afirmação da subjetividade sentimental e do relativismo da expressão corporal, seja por um sentimento de revolta, de prazer ou de crise de identidade.

Financeiro: Dos becos para os grandes Shoppings surgem Clínicas que tem se especializado nisso e investem muito dinheiro em métodos e instrumentos para agilizar o processo, diversificar as possibilidades de sinais, símbolos e marcas, para amenizar a dor ou mesmo reverter o processo: retirar a marca. Quanto você cobraria para que fosse o seu corpo tatuado com uma marca famosa? Por incrível que pareça há promessa de leilão de toda a pele de um corpo para um museu e há, também, concursos e recordes do maior número de tatuagens no corpo.

Publicidade: Tudo isso faz com que as clínicas fiquem de olho no faturamento, no retorno financeiro imediato, em razão da crescente procura desta moda. Movimento causado, sobretudo, quando laureado ou popularizado por pessoas que a adotam como meio de expressão de alguma qualidade, sentimento, conquista, ideal como, por exemplo, uma celebridade, um deportista ou alguém muito influente, que por meio de sua atitude acaba ditando moda e influenciando o comportamento de muitos que conscientes ou não absorvem com a tatuagem um ideal incosnciente de mudança de vida, vitória, reviravolta na vida, rebeldia…

Ilusão: Em última instância, neste caso analisado, se tatuam na expectativa de alguma mudança para melhorar a vida ou por motivo de fuga, na medida em que isso lhes possa proporcionar algum benefício, promessa de conquistas, sentimentos, diferenciação, domínio, sofrimento, depressão, estresse, poder, fama, afirmação…subjacente a tudo está efetivamente a necessidade de afirmar a sua identidade. A ilusão é a aparência, não é a realidade. As ilusões passam, mas a realidade não. Se a realidade é um pesadelo, pior é iludir-se com doces sonhos, pois estes passam e ao despertar encontra uma realidade amarga. Então o que fazer? Se a realidade é um pesadelo procure conhecer as razões e os motivos que a torne menos pesada e descobrindo-os já terás dado um passo muito importante para torná-la mais branda. Mas lembre-se: é inatingível uma realidade de puro e doce sonho.

Importância: Tal tem sido a sua importância que já em Julho de 2003 a revista Veja Jovens dedicou uma edição especial ao tema [para mais informações: Veja Jovens/ Julho de 2003]. É tema importante porque tem determinado padrão de conduta entre os jovens sem promover um consciente discernimento do seu valor, riscos e benefícios…pois não raro é promovida como se não oferecesse nenhum risco à saúde e não expressasse nenhuma conotação de valor moral.

Duns Scotus

Tatuagem em mão de egípcio

História: Não nos dedicaremos aqui a reproduzir a sua história, para tanto remetemos o leitor ao link: história da tatuagem 1 e 2. Inúmeros sites e publicações têm dedicado páginas e páginas ao tema. Lembramos – e o leitor poderá constatar ao acessar os links anteriores – que a tatuagem surgiu originalmente como expressão de uma religião e tem sua força motriz na crença. E isso se deu especialmente entre os povos egípcios, nas tribos indígenas, grupos sociais originários africanos e asiáticos, como expressão de sua fé e vivência religiosa-social, por cujo grafismo corporal, simbolismo, procuravam guardar e perpetuar suas tradições nos cultos, festas, trabalhos e batalhas. A tatuagem foi uma expressão de fidelidade à religião [grafismos de representação religiosa como sol, lua, certos animais], à tradição tribal [certos animais, ações, feitos, lugares], à vida familiar [representação de algum membro, feito, ação, animal etc]; por isso, como sinal de fé simbolizavam por grafismos na pele de importantes partes do corpo, o sinal de reconhecimento de sua crença, fé, na tradição, na família, na convivência…na confiança de que por meio deste sinal se obtivesse, também, reconhecimento, proteção, cura, segurança e, sobretudo, identidade, para sua história, em sua religião, no seio de sua família e, especialmente, em si mesmo.

Análise: Como vimos as tatuagens surgiram como sinais sagrados, mas também de vaidade e foram utilizadas sobretudo para marcar os momentos da vida biológica [nascimento, adolescência, juventude, maturidade…], registrar os fatos da vida social e religiosa [tornar-se guerreiro, sacerdote, casar-se…], pedir proteção ao sobrenatural e serviam também como registro de memória sócio-cultural para estes povos. Há pouco tempo um filme, Amnésia, que aqui cito para ilustrar o que acabo de dizer, conta a história de um homem que por padecer de amnésia após sofrer um acidente, vale-se da tatuagem como memória e identidade, por cuja razão, na trama, o personagem tatua todo o seu corpo para não se esquecer dos últimos fatos que aconteciam em sua vida. Uma questão fundamental: a tatuagem é um mal?

Mal? Mal é a perda de um bem…mas ninguém perde o que não tem ou nunca possuiu, portanto o mal é a perda de um bem que se tinha, mas do qual se encontra privado… e isso é o mal. Embora a tatuagem não seja em si mesma nem um bem nem um mal, pode ser sinal ou expressar a perda de um bem. Neste caso não a tatuagem, mas o que leva à tatuagem pode ser a expressão de um bem ou de um mal. E nisso há valor moral: por exemplo, há intenção moral má quando se tatua com cruzes na medida em que estas sinalizam o número de mortes que já se cometeu; quando se tatua com os nomes de mulheres enquanto sinalizam a posse sexual das mesmas; mas há também intenção moral boa: quando se tatua o nome de um ente querido em sinal de memória; de um sinal religioso em sinal de fé e proteção; o nome da esposa em sinal de fidelidade. Mas a tatuagem, nestes últimos casos, não é amuleto e não dá garantia nenhuma da memória do ente querido, da fidelidade conjugal, da proteção pela fé; por isso, embora a tatuagem neste caso não se revista de valor imoral, ela mesma não revela senão um sentimento acerca de pessoas, coisas e fatos sem sentido algum se não responde à intenção original; e com a possibilidade do arrependimento de haver tatuado.

Comportamento: Não raro, uma tatuagem segue um modelo de comportamento, mesmo quando feita como provocação do próprio comportamento. Em geral quando se reverte em comportamento é porque a tatuagem representa uma filosofia de vida, ou uma conseqüência de viver um determinado tipo de vida: por que alguém tatuaria uma arma no braço? Uma caveira? Uma mulher nua? Um demônio? Não é usual tatuar-se com uma espada e uma caveira e falar frouxo e andar mole, vestir-se 'almofadinha'. Muito menos tatuar-se com uma Barbie e estraçalhar violentamente na noite, exceto se por provocação, revolta e rebeldia. É evidente que a tatuagem, de um modo geral, revela uma situação, conduta e intenção de vida que se traduz em comportamento. Mas isso não significa que não há exceções à regra geral.

Duns Scotus

Piercing

Saúde: Tanto a tatuagem quanto os piercings oferecem riscos à súde. A desinformação ainda é freqüente, promovendo pela ignorância uma paixão ou modismo que pode causar sérios danos não só à saúde física, senão também à saúde psíquica. Talvez esta última seja a mais grave em razão da dificuldade de reverter o processo, pois muito evoluíram as cirurgias de reversão do processo de tatuagem: hoje em poucos dias, dependendo do caso, é possível fazer isso, mas a reversão psíquica, se possível, pode levar toda uma vida, também dependendo do caso. Se analisada pelo binômio custo-benefício a tatauagem não traz nenhuma vantagem, pois além de trazer riscos para a saúde psico-somática, gera perda de tempo, dinheiro, além de deixar registrado no corpo o sinal de uma paixão, de um sentimento que, como toda paixão, em sua efemeridade, tem tempo certo para terminar, portanto, pode passar com o tempo e tornar-se vencida ou mal querida na maturidade ou na superação da paixão; e isso ocorre muito frequentemente, quando chegando na maturidade, se procura desfazer-se da tatuagem que um dia foi expressão de um sentimento e da moda do seu tempo. Mas o sentimento e a moda passam e, ainda que não para sempre, o corpo fica e com ele a pessoa que se é. Da idéia da vantagem de ser diferente e de ser original seguem-se as desvantagens: dor, risco de infecções, custo para tatuar e do alto custo para tirar, arrependimento…e muitos outros!

Família: Há relações que começam por causa de uma tatuagem e outras que terminam justamente por causa dela sejam por serem visivelmente expostas ou se revelarem só na intimidade. O mesmo se diga da influência dos pais sobre os filhos. Embora não seja comum pais aconselharem os filhos a tatuarem-se ou colocarem piercings, já ocorre com certa freqüência o contrário. Ou se não aconselham não informam acerca do risco e da possível efemeridade do sentimento de se tatuar ou de se colocar um brinco ou piercing. Como sinal dos tempos em que se alude a livre educação, não raro se vêem os pais com vergonha ou medo de dizerem não ou ensinar a verdade aos filhos, uma vez que o exemplo partiu do próprio pai; mas os pais não podem amendrontarem-se para ensinar a verdade aos filhos: que a tatuagem dói, representa risco e muitas outras desvantagens.

Religião: A fé é um bem que nos coloca diante de Deus. Como vimos a intenção que move a realização de uma tatuagem pode ser boa ou má, pois em si mesma o sinal grafado na pele não é nem bom, nem mau. Mas há que advertir que há tatuagens que depõem claramente não só contra a fé, mas também contra a dignidade da própria pessoa. Se puder optar, sendo cristão ou não, que use do bom senso e do conselho nesta matéria, para evitar assim qualquer contra-testemunho, a imprudência ou mesmo a incoerência de esconder o que lhe apraz ante um culto ou testemunho de fé. Que se diz nós sabemos, mas como entender que se diga 'creio em Deus' e por outro lado o contra-testemunho do corpo? Não é contraditório, mas contraproducente tal testemunho. Embora houvesse um momento histórico em que mesmos os cristãos se viram em situação de terem de tatuarem-se em partes ocultas para identificarem sua fé, hoje não se faz necessário tal atitude, mesmo porque as tatuagens servem para aqueles que dela se servem muito mais para contrariar a fé do que para manifestá-la. Embora cada vez mais comuns, não serão as tatuagens de cruzes, de Cristo ou de santos que darão conta da fé que se tem, mas será a coerência dos testemunhos que se darão. Ora, há tatuagens que dão, como dissemos, o contra-testemunho e mesmo aquelas que são ditas 'sacras', não são sacramentais e nem estatuem testemunho de fé. O Cristão deve ser coerente com a sua fé, mesmo quando a expresse numa forma plástica que envolva ou não o seu corpo.

Trabalho: Há empresas que prezam pela integridade física dos funcionários que tem e dos possíveis que possam ter, pois sabem quanto lhes custará remediar situações de risco. Muitas empresas não vêem com bons olhos as tatuagens. E isso não só em função da aparência que pode contrariar a imagem ou o produto que represente a empresa, mas também do risco à saúde, que vai desde um câncer de pele [causado direta ou indiretamente pela tatuagem] até à possibilidade de custos adicionais ou aquisição de enfermidades em razão da não higiene do local. Não raro funcionários tatuados escondem-nas dos patrões, pois conhecem bem o risco se revelá-las, exceto o caso de empresas que delas se valham para vender o produto. Ter algo que lhe dificulte uma vida profissional ou social será que vale o peso de uma decisão à hora de tatuar-se? Em repartições de empresas públicas ou privadas, em dias muito calorosos, encontramos jovens empreendedores vestidos com longas camisas [muito menos pela necessidade do que pela vergonha ou medo] para ocultar o que na vida privada possa ser motivo de orgulho, mas que na vida pública devem ocultar, para não contrariarem o preconceito que outros possam ter. Mas será isso preconceito? Neste caso, claro que não, pois preconceito é opinião favorável ou desfavorável concebido sem exame crítico ou sem conhecimento, coisa que não ocorre quando uma empresa avalia alguém para ocupar um cargo em seus departamentos. Além do mais não adianta dar tom natural ao que efetivamente não o é, pois assim é a tatuagem, queira ou não na atualidade, pois se é moda, não é natural, já que natural diz-se do que não passa. E se fosse natural não haveria quem não a tivesse…e porque há uma maioria que não a possuiu não é correto sustentar que é uma minoria preconceituosa, pois como já dissemos não se trata de preconceito.

Conclusão: Embora de raizes históricas a tatuagem não representa em nossos dias o que na antiguidade representou. Hoje a tatuagem revela muito mais uma moda enquanto sinal de um tempo em que as pessoas estão em crise e conflito consigo mesmas e com os demais. Esta crise é de ordem moral, avança no campo emocional e abala os alicerces da identidade pessoal. É moral porque atinge plenamente o eixo da livre ação humana: a liberdade. É emocional em razão do descontrole em que se vive numa vida de paixões, sem limites, seja por razão de fuga do real ou por hábito na busca de prazer, reconhecimento… Há um certo medo de ser comum, corriqueiro e igual, quando na verdade nada há de corriqueiro, comum e igual entre uma pessoa e outra, pois cada qual na semelhança que apresenta é original e única. E nisso reside a descoberta da identidade: tornar-se o que se é. O cultivo constante do conhecimento de si, o que cada um é em si, deve ser ideal de vida; e é isso que dá sentido à vida. Isso supõe necessariamente o cultivo de virtudes morais como a temperança e a fortaleza e de virtudes intelectuais, como o estudo e a prudência, que nos capacitam para o discernimento e análise do que pode parecer-nos bom e eterno, do que é ruim e efêmero.

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