Testemunho de Adalberto de Queiroz

          Antes que a alvorada de sexta-feira, dia 29 de outubro, bata à minha janela e encontre-me sorrindo, ao lado dos meus entes queridos, despedindo-me do sono devo fazer o sinal da cruz e rezar, agradecido por ter chegado aos 49 anos com a consciência de um convertido.

          É emblemático que minha confirmação aconteça aos 49 anos de idade ? um renascer na mesma idade cronológica com que faleceu um dos mais importantes Santos da Igreja de Cristo ? Santo Tomás de Aquino. A insígnia numérica aqui é simples e forte para este convertido porque aquele Servo de Deus, Santo Tomás, tem ocupado muito das minhas leituras noturnas, principalmente com as Summas, que são o desafio do entendimento, na busca entre unir Fé e Razão e mostram o tanto que, em tão curta vida, realizou o Doutor Angélico.

          E, na véspera desse 29 de outubro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2004 (como dizem ainda em boa tradição lusitana, quase todos os nossos cartórios), digo-vos algumas palavras: as mesmas ? pelo menos no sentido ? que gostaria de dizer, amanhã, aos meus irmãos e irmãs, que compartilharem comigo minha Confirmação e primeira Comunhão como católico apostólico romano.

          (Claro está que, diante desse segundo parágrafo, os que acham este cronista ?católico demais? ou ?carola? terão clicado o botão de off de sua atenção ou mudado de página, então, resolvi ir lá em cima e adicionar alguma coisa mais à alvorada…).

          Mas aprendi desde logo nessa estrada que ?a condição indispensável para a transmissão de uma palavra cristã é o desejo verdadeiro de ouvir?, portanto, de nada valerão as palavras, se o leitor não tiver ouvidos para ouvi-las.

          Há algum tempo atrás, quando comecei a caminhada que me trouxe ao dia de hoje e a esta decisão, algumas perguntas me eram sistematicamente feitas, quando eu comunicava a minha Conversão:
? Você está doente, rapaz. Ou, mais grave ainda, você tem alguma doença grave e por isso se converteu?
? Está com medo da Morte, por isso procurou a Igreja?
? Você está se vendo obrigado por causa de um emprego, a se tornar católico?
? Ah ! Já sei, você está apaixonado e a família da namorada é católica?

          A todos, dizia e digo, sorrindo: NÃO!

          Uma vez, li uma entrevista de um velho católico brasileiro e escritor de nome que tentava explicar a um jovem repórter de inclinação marxista, como era possível ter-se tornado católico. A resposta singela cabe em uma curta solução do inquérito: ?Recebi a Graça da Conversão?. A graça é um dom de Deus, logo, inexplicável de pronto, aos ateus e agnósticos. No máximo, aquela resposta deve ter deixado aturdidos muitos leitores, que passar a cogitar sobre as razões profundas da Conversão.

          Há na conversão do Apóstolo São Paulo as palavras apropriadas ao convertido: o fariseu Saulo de Tarso, que recebe a Graça da conversão, sob o efeito do extraordinário, se transforma no Apóstolo. Nos nossos dias, às vezes, o efeito extraordinário está em descobrir uma luz nas coisas mais simples, pois a verdadeira revolução em nossas vidas está em descobrir as pequenas coisas intensas e absolutas no que mais próximo está de nós, no menos inovador, às vezes, mesmo o mais tradicional.

          A minha estrada de Damasco está em algum ponto de minhas freqüentes viagens como empresário, em que cansado da vida desregrada que o materialismo pode por vezes nos impor, trafeguei no fio da navalha da concessão ao cinismo que parece, freqüentemente, ser a opção única de quem começa a chegar aos cinqüenta anos nesta sociedade brasileira deste início de século XXI. E seja bem dito: nada tenho eu, nem tampouco o cristianismo com o conforto de uma vida de trabalho e de recompensas terrenas…

          Lembro-me com alegria de um de meus mestres nessa caminhada: Gustavo Corção, que também adulto se converteu ao Catolicismo nos anos 40 do século passado e sorria diante de perguntas dessa natureza, quando escreveu ?A Descoberta do Outro?, relatando sua conversão.

          Nesse livro, Gustavo Corção relata que recebera no início de sua caminhada no Catolicismo a recomendação de um amigo: ?Você precisa conhecer o Alceu (Amoroso Lima)? e, de presente, caíra-lhe nas mãos dois livros, enquanto fazia seu próprio estudo do Catecismo. Também ele se deparava com indagações similares, passava por dúvidas similares, há contados 61 anos atrás, enquanto se instruía (e se divertia com os mestres convertidos no século XX – G.K. Chesterton e Jacques Maritain). Tenho comigo esses livros: os do Gustavo, os do G.K. Chesterton e alguns do mestre francês Jacques Maritain, também convertido na idade adulta, junto com a esposa Raïssa. O casal Maritain transformou-se no exemplo de casal católico que honra o matrimônio e a vida religiosa a dois.

          A mesma indagação ? posta em termos mais ou menos agressivos, que dirigiam a Gustavo Corção está descrita em ?A Descoberta do Outro? (no capítulo Nas Portas de um Reino). Ao amigo que lhe pedia a história e o porquê da conversão, GC responde com um livro, e uma pergunta socrática:
? ?Este livro não responde, mas em compensação devolve o inquérito, perguntando-lhe: 
? ?E você? Diga-me você os fatos que o levaram a não se converter?.

          E prossegue: ?Esta parece-me ser a posição correta do problema. Uma conversão não é um episódio; antes o fato de não se converterem todos é que constitui um imenso episódio. Acho hoje extremamente bizarro um inquérito sobre a normalidade. As coisas verdadeiramente positivas, verdadeiramente normais, resistem à narração. Ninguém, por exemplo, irá perguntar com urbanidade ao cavalheiro que vê na rua a sacudir a poeira das calças, entre quatro embrulhos esparsos no chão, por que diacho, e em virtude de que misterioso propósito, ele se levantara.?

          Sabe-se que uma certa literatura e o jornalismo em geral prezam o indivíduo que ?escorrega? ¿ e eis a vida deste pecador: de escorregão, em escorregão, a tombos homéricos… ?Mas, depois da Conversão, descobrimos que não há nada de tão aventuroso e tão fascinante como a volta à casa?. É a descoberta do Outro, do Cristo que nos induz a isso.

          Cito tudo isso, com a gratidão da convivência com os novos irmãos católicos que conheci durante o Catecismo, dos padres estigmatinos que me orientaram espiritualmente, na sua humildade e trabalho missionário, do meu confessor, dos amigos com quem convivo na internet ? espaço onde não hesitei em testemunhar minha Fé. Sou grato no meu próprio bairro, onde vivo, desde 1981, às pessoas com quem passei a conviver em outra dimensão como cristão. A todos, enfim, que me receberam com singela alegria, dirijo, agradecido essas linhas, como um testemunho, no intuito de dizer-lhes o mesmo que este mestre da crônica dissera, referindo-se ao Mestre dos mestres, Jesus:

          ? ?O romance cristão só pode ser contado a partir de um Personagem central que é, Ele mesmo, todo o romance. Não é possível falar em cristianismo sem começar dizendo o que o Cristo é. Muitas vezes já ouvi falar na doutrina cristã em função dos interesses intelectuais e das vantagens morais, sem que o fundamento fosse um fundamento. Esse processo parece-me pouco razoável.?

          Uma vez que não desejo, como Gustavo Corção também não o desejava, aplicar-lhe uma rasteira, desavisado leitor (e ouvinte), aproveito a celebração da Crisma, em que me ponho ao lado dos meus companheiros recém-convertidos e crismandos, a quem me uno com alegria, em torno do banquete do Senhor ? nessa nossa Primeira Comunhão, para alertá-los que o centro deste testemunho está bem traçado com o grafite dos meus dias.

          Sou católico apostólico romano porque o catolicismo é o lar do Cristianismo, porque eu pude sentir isso sem discussões, sem debates acalorados, mas na solidão de muitas noites, de muitas angústias resolvidas com o rosário em minhas mãos, com as leituras das catequeses do Papa João Paulo, com as palavras inolvidáveis que a Comunhão dos Santos muitas vezes trouxeram sobre a forma de perguntas, ou das respostas apropriadas à hora e ao problema.

          Não sou católico apenas pela enorme tradição que tem a Igreja de Cristo ? una, santa, católica, apostólica e romana ? transcende, como sabemos, a seus membros, nós pecadores, atuando na igreja peregrina, esta que é testemunha de Cristo no mundo, em nosso dia-a-dia de criaturas em caminhada. Tornei-me católico porque como São Paulo, um dia atônito, me ocorreu perguntar no meio do caminho de minha vida:

          ? ?Senhor, que queres que eu faça?? (Atos 9,6)

          E muitas vozes ouvi, nas noites de dúvidas atrozes sobre o legado de meu cristianismo protestante, onde nasci e fui criado. E as resposta foram chegando, no entendimento do culto completo, do que não foi decepado por Lutero no ritual e na tradição. Respostas como a de São Lucas e São Luís de Monfort na orientação espiritual da devoção à Virgem Maria, que passei a trazer sempre próxima de mim, como um conforto nas horas mais difíceis desses dois anos como neófito católico.

          Sou católico não porque a Igreja esteja numa disputa em que carregasse o galardão de ter para si mérito maior e eu, neste grêmio, lucrasse com isso. Sou católico não porque apenas é meritória a ação da Igreja Católica na Idade Média, período no qual frutificou o ambiente exato de educação e trabalho que nos legou a beleza das catedrais ? representativas da maior construção humana e da centralidade do Cristianismo.

          Não. Eu vos afirmo que não sou católico apenas por isso, apesar de sentir-me feliz com tais realizações, como também fico feliz ouvindo os cantos gregorianos e apreciando a rica iconografia da pintura de inspiração religiosa ? que são pontos altos da passagem humana na terra. Não. Não é tampouco apenas pela incrível sonoridade das missas de Bach, de Monteverdi ou de Mozart, não é a apenas a Comunhão dos Santos ?  maravilhosa conquista que, em síntese, bastam se resumidas em quatro nomes emblemáticos.

          Ah! A comunhão dos Santos, para mim, uma parte inolvidável do Credo: Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, Santa Tereza d?Ávila e São Gaspar Bertoni…

          Não. Nada disso nos serviria, nem serve, como nenhuma outra mágica, ou poder encantatório qualquer como ?o fato decisivo?. O fato decisivo, o fato mais histórico, repito o Cardeal Cantalamessa: ?é a Páscoa de Cristo?. Nada desse mundo deve iludir-nos e nada pode negar ao Ser Humano o efeito da Beleza do Cristo em nossas vidas. Aí está a Graça, que é a única modificadora de nossa humanidade, pela elevação a Deus: Cristo como a Graça Divina ? ?modalidade nova da presença de Deus em nossas vidas de pecadores? ? como se depreende dos ensinos de Santo Tomás, na interpretação do Pai Nosso.

          Só a Graça pode nos fazer dar um salto ontológico, fazendo-nos seres melhores, transformando-nos, como fez do fariseu Saulo de Tarso o Apóstolo São Paulo, como faz de cada Crismando hoje um membro da Igreja de Cristo, um Soldado de Cristo.

          O apelo que fizeram há 61 anos, àquele católico que me inspira hoje, salta naturalmente à memória e relembro a intimação fraterna que lhe fizeram, consolidando o ato decisivo da conversão de Gustavo Corção:

? Você precisa conhecer o Alceu. Eu diria e o Corção! E a esse convite, adiciono:
? Você precisa conhecer o Cristo!

          E com isso, finalizo meu testemunho, de olho no Altar em que, silenciosa e humildemente, repito o Nome do que devemos, efetivamente, conhecer ? o nome de Cristo, repetindo interiormente: Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Viva o Cristo-Rei!

 
          Obs: Adalberto de Queiroz, 49 anos, é jornalista, poeta e empresário.

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