Tolerância brasileira

Para quem estuda filosofia, as visões de mundo dos povos são facilmente reconhecíveis como versões irrefletidas de escolas filosóficas importantes na história daquele povo.

No Brasil, a escola preponderante na nossa formação cultural é a tomista, trazida pelos jesuítas. Para ela, é de se esperar que pessoas boas façam coisas erradas de vez em quando; devemos combater – ou mesmo tolerar – as coisas erradas, sem demonizar as pessoas. Isso gerou uma cultura tolerante, em que não existem preto ou branco absolutos. Cada pessoa é percebida como tendo coisas boas e coisas más; nem anjo, nem demônio: um ser humano.

Nos Estados Unidos, contudo, a base da moral é kantiana. Para Kant, a lei moral é acessível à razão, e qualquer um pode chegar a uma listinha infalível de regras morais universais. Em termos práticos, isto significa que quem pensa – ou age – de modo diferente ou bem é incapaz de raciocinar (ou seja, burro), ou bem sabe o que é certo, mas escolhe agir de modo contrário (ou seja, mal intencionado).

Isso impossibilita tanto o diálogo quanto a própria tolerância. Para que algo seja aceito, ele deve ser perfeitamente bom, ou seja, perfeitamente conforme à listinha de regras morais em vigor. Assim, os ataques dos democratas aos republicanos, e vice-versa, podem ser resumidos em “eles são burros ou mal intencionados”. Para que o homossexual não seja demonizado, por exemplo, a homossexualidade deve ser considerada exatamente igual à heterossexualidade, e a condenação religiosa daquela deve ser percebida como manifestação de ódio; naquela cultura, cada pessoa é inseparável de seus atos.

Podemos ver claramente a diferença cultural se compararmos duas pessoas de inegável talento, nascidas na mesma época e dedicadas à mesma profissão: Cauby Peixoto, no Brasil, e Little Richard, nos EUA. Enquanto a inegável homossexualidade de Cauby foi sempre tolerada, sendo considerada basicamente uma questão de foro íntimo, Little Richard oscilou ao longo da carreira entre a afirmação brutal e a negação feroz de seus desejos. Não lhe era possível, devido à cultura a que pertence, lidar com sua sexualidade de forma mais matizada.

A ação de grupos de pressão americanos no Brasil, infelizmente, está trazendo esta visão dualista para o discurso sociopolítico pátrio, negando a nossa tradicional tolerância e impedindo o diálogo e a coexistência que sempre marcaram nosso país. Armas, religião, sexo… Não vale a pena lidar com estes temas de forma dualista, quando se tem uma cultura tão mais rica em que se apoiar.

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