Tradição, Magistério e Sucessão Apostólica

A Bíblia nos mostra que Deus, quando criou o universo, se usou de Sua Palavra: “e disse Deus: haja luz. E houve a luz” (Gn 1,3). Conforme o estudo “A Criação”, da BEP – Bíblia de Estudo Pentecostal – editada pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD), “toda a Trindade, e não apenas o Pai, desempenhou sua parte na criação”. Isso é confirmado pelo ensino dos Santos Padres, como Santo Atanásio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Gregório Nazianzeno, São Basílio Magno e outros, e nos mostra que também o Filho teve sua participação no ato criativo de Deus, justamente como a sua Palavra, o Verbo. A função de Cristo era ser Aquele pelo qual o Pai tornaria possível a realização de Seu desígnio.

Por isso, São João, em seu evangelho, já define Deus como o Verbo Eterno. “No principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (…). Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1,1.3). Essa palavra é eterna, e é a mesma, pois o apóstolo São Paulo mesmo declara “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje e eternamente” (Hb 13,8), e Jesus é a Palavra de Deus, o Cristo, o Verbo Inicial.

Ora, se o Verbo veio ao mundo, foi para manifestar-Se e, assim, manifestar o Pai. Através de Sua morte, permitiu o acesso ao Pai a todos que n’Ele crerem (cf. Rm 3,22; Jo 1,12;3,14-16). E em Sua ressurreição, glorificou o Pai, manifestando a plenitude de Seu poder.

Manifestando a graça de Deus, Jesus instruiu um grupo de doze escolhidos dentre os seus seguidores. Seriam eles os encarregados de perpetuarem a Si mesmo, perpetuarem a Sua Palavra. Como Cristo é a Palavra do Pai, ao fazerem viva Sua Palavra, estavam fazendo vivo o próprio Cristo! Eles, os apóstolos, eram os escolhidos para transmitir (do latim “traditio”) a palavra de Deus, ou seja, o próprio Senhor Jesus. Ele, como Deus, é eterno, e por isso, persiste eternamente em ação. Quis, por causa de Sua eternidade, continuar a agir e atrair outros para Si. Uma vez que a palavra em Hb 13,8 é uma verdade imutável, e no passado quis manifestar-Se e ensinar a doutrina da verdade, hoje também assim o deseja. Para isso, certificou-se de escolher alguns para continuarem a obra.

É sabido que o Senhor Jesus tinha muitos seguidores, principalmente na cidade de Cafarnaum. Dentre todos eles, alguns destacavam-se como discípulos. O evangelista Lucas nos conta que uma noite, Cristo subiu ao monte para orar (cf. 6,12) e passou a noite rezando ao Pai. “E, quando já era dia, chamou a si seus discípulos, e escolheu doze deles, a quem também deu o nome de apóstolos” (Lc 6,13).

Ora, por que Cristo distinguiu um “grupo de elite” dentre todos os crentes? A Bíblia nos revela que os apóstolos, os membros desse seleto grupo, foram os únicos que estiveram presentes nos grandes momentos da vida publica de Jesus, como na instituição da Eucaristia (Ultima Ceia), na confissão de Pedro acerca da divindade do Messias, na explicação das parábolas, na pesca milagrosa, na transfiguração, nas instruções sobre o Espirito Santo, na aparição no Cenáculo depois da ressurreição, na suprema angustia do Horto das Oliveiras, entre outros. Todas as religiões tiveram instituidores, e estes, seus discípulos. Mas, nenhum grupo de discípulos foi tão coeso e vitalício com o dos apóstolos de Jesus Cristo.

Essa coesão se dava em virtude do Espirito e pelo próprio propósito da vocação apostólica: ensinar a Palavra, o Verbo, o Mestre. Receberam, por isso, o sopro da unção característica de sua própria missão: “e, havendo dito isso, assoprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espirito Santo…” (Jo 20,22). Esse Espirito era encarregado de guiá-los na verdade (cf. Jo 16,13), e não somente na verdade, mas “em toda a verdade”.

Claro que o Espirito guia a todos os crentes, mas em conformidade com o ensino dos apóstolos. De fato, essa sujeição ao ensino apostólico é notável após os acontecimentos de Pentecostes, quando Pedro e os demais exortam a todos sobre a graça da salvação e do batismo no Espirito Santo (cf. At 2,14-41). Diz também a Bíblia que Pedro, um apóstolo, se encarregou de buscar um sucessor para o cargo de Judas, o traidor, de sorte que o colégio apostólico tivesse sucessão. O livro de Salmos (Sl 109,8) é citado por São Pedro com as palavras “tome outro o seus bispado”.

Tanto é verdade que deve haver sucessão no ministério apostólico, que Paulo cita o dom de apóstolo entre as vocações ministeriais para a Igreja (cf. Ef 4,11). Isso porque os crentes precisavam de colunas na Igreja, para que não fossem “levados por qualquer vento de doutrina” (Ef 4,14). Essas colunas, fundamentos da Igreja, são a doutrina dos apóstolos (cf. At 2,42).

Relembrando a missão dos apóstolos, que era de manifestar a Cristo, e concatenando-a com as constatações de sucessão apostólica e de fundamento doutrinal, resta-nos procurar ver o que garante autoridade definitiva aos lideres da igreja.

Cristo mesmo fala que Seu Espirito Santo “convencerá o mundo” (Jo 16,8). Se Ele o faz pelo ensino das “colunas da igreja”, isto é pelos apóstolos (doutrina dos apóstolos é um termo freqüente no NT), devemos crer que o próprio Espirito se encarrega de orientá-los (cf. 16,13), e de libertá-los de erros doutrinais: “a verdade vos libertará? (Jo 8,32). Assim, são submetidas aos apóstolos questões doutrinais, tais como as obrigações do rito mosaico na vida dos cristãos, apreciadas por eles no concílio de Jerusalém (cf. At 15,1-34).

É obvio, então, que no período que se seguiu a Pentecostes, a Igreja primitiva era governada e orientada pelos apóstolos (e hoje, pelos sucessores). Sabido é, que na igreja primitiva, a Bíblia, tal como a conhecemos, não havia sido redigida completamente nem definida em sua canonicidade e infalibilidade.

Como então, sem as Escrituras completas, e as doutrinas que elas sustentam escritas, os crentes tinham a salvaguarda da verdade? A conclusão lógica é que a doutrina passada (tradicionada, como vimos em sua etimologia latina) fosse a apostólica, a Palavra oral, como atesta o trecho bíblico: “estai firmes e retende as TRADIÇÕES que vos foram ensinadas, seja porPALAVRA, seja por epístola nossa” (II Tess 2,15 – grifos nossos).

Então, o que era a garantia de ortodoxia  era o ensinamento oral dos apóstolos, visto que ainda não havia o escrito. Desses, alguns foram compilados nos livros que, hoje, formam o cânon da Sagrada Escritura. Quem aprovou esse cânon, i.e., a lista dos livros que eram inspirados? Quem disse que tais livros formariam a Bíblia? Por certo que o direcionamento do Espirito Santo. Mas, quais meios humanos Ele usou, visto que o estabelecimento do cânon se deu somente muitos anos depois?

A História nos mostra que foram os bispos reunidos em um sínodo. Ele usaram exatamente da Tradição oral e do Magistério para aprovarem a Bíblia. Se dizemos que somos contra a Tradição oral, de onde saiu a Tradição escrita? Para haver Bíblia hoje, foi preciso que houvesse uma Tradição Apostólica, até mesmo para decidir quais livros são obras de Deus e para confirmá-los…

Se a Palavra de Deus é necessária para a conversão (cf.Rm 10,17), e houve período em que a Escritura, i.e., a Palavra escrita, não estava redigida (portanto, nem mesmo o verso de II Tm 3,16-17: “toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa…”), seria ponto pacífico afirmar, com a autoridade do Espirito Santo, que o ensinamento apostólico, única fonte de doutrina na época, constituía a Palavra do Senhor em forma oral. Uma vez Palavra de Deus, sempre Palavra de Deus, pois Jesus é o mesmo, Jesus não muda, Jesus não volta atrás! Esse ensinamento apostólico foi passado (“traditio”, Tradição) de apóstolo para apóstolo, na contínua sucessão, conforme a chamada ao dom ministerial específico. Por isso, a doutrina cristã é, justamente, chamada Tradição Apostólica, como bem definem os Santos Padres da Igreja, especialmente os da Igreja do Oriente (hoje formada pelos ritos orientais em união com Roma e pelas igrejas separadas, quais sejam, as ortodoxas, monofistas e nestorianas).

Essa Tradição é o ensinamento infalível dos apóstolos, uma vez que, por um lado é Palavra de Deus (e, portanto, inerrante e perpétua), e por outro, conta com a promessa para a comunidade eclesial: “tudo o que ligares da terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). Como não entra em contradição com as Escrituras, antes as completa, vemos que ela fruto do Espirito. A Bíblia, como a conhecemos, foi definida em uma reunião de bispos, sucessores dos apóstolos que, como tais, usaram sua autoridade para especificar a Palavra escrita, e separar o ortodoxo do herético.

Pelo poder do Espirito Santo conferido por Jesus (cf. Jo 20,22), os apóstolos e seus sucessores ensinam a doutrina e interpretam a Escritura, certos de que “nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação” (II Pd 1,20). Somente assim, temos certeza de que a verdade é a verdade, e a doutrina é a doutrina. Historicamente, como vimos, sem o juízo dos bispos e da Tradição Apostólica, nem mesmo a Bíblia seria reconhecida, uma vez que foram os sucessores dos apóstolos que usaram os poderes de Cristo e definiram o cânon sagrado.

Como qualquer cargo, e mais que cargo, marca indelével na alma pela chamada pessoal do Senhor Jesus (cf. Mt 5,27-28), é transmitido de um para outro, segundo a intenção de conferir o mesmo poder que Cristo outorgou ao colégio apostólico original. Nisso, vê-se que um bispo, legitimamente sagrado (ordenado), por causa da intenção de assim fazê-lo, é feito pela imposição das mãos de outro, também legitimamente ordenado, constituindo uma linha que vai dele até algum dos doze.

Deus, em Jesus, não permitirá que as portas do inferno prevaleçam sobre a Igreja (cf. Mt 16,18), legitimamente guiada por Ele em Pedro (cf. Mt 16,18a), e no fundamento dos apóstolos (cf. Ef 2,20 III Jo 13-14).

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