Três mentalidades

Temos hoje em dia três mentalidades em confronto no Brasil, sendo uma delas bipolar.

A mais antiga, tradicional, é a mentalidade católica de índole hispânica. Para esta mentalidade, o poder é patrimonial (o que explica a visão tradicional de político como provedor, os vereadores que têm ambulâncias, etc.). Para quem tem esta mentalidade (graças a Deus, ainda a imensa maioria da população brasileira), cada um tem (ou deve ter) o que lhe cabe; os ricos são ricos, os pobres são pobres, e só está errado o pobre ou rico que rouba, mata, etc. Para estes, a política – especialmente as eleições – é simplesmente a ocasião de pestação de contas dos governantes, não sua fonte de legitimidade. Assim, um vereador eleito pelo bairro tal tem o dever de ajudar os nativos daquele bairro, e o direito de exigir que votem nele. Ele é visto como um pequeno baronete, a quem as instâncias inferiores apelam quando não são capazes de realizar algo.

A segunda mentalidade, já bastante perigosa, é a que domina as classes médias urbanas (e a CNBB…): a mentalidade moderna. Para esta mentalidade, a igualdade é um bem, e é injusto o que dela se evade. O político seria o “representante e servidor do povo”, e um vereador que tenha uma ambulância é um “assistencialista” corrupto. Este modo bárbaro de ver a realidade considera que todo e qualquer “bem” (sendo que a igualdade seria um deles, senão o maior deles) deve vir de cima para baixo. Assim, se não há algo em uma comunidade, deve-se fazer passeatas, protestos, etc., para que o Estado dê o que falta, negando a eficácia e a legitimidade da ação local das instâncias inferiores.

A terceira, esta bipolar, é a mentalidade neo-calvinista importada pelas seitas protestantes. Para esta mentalidade, há apenas dois tipos de pessoas: os predestinados ao Céu e os predestinados aoInferno. Ou bem se tem tudo, ou nada se tem. Assim, nos morros temos hoje em dia os “totalmente bons” (“crentes”) e “totalmente maus” (traicantes e assemelhados). Isto causou a criação de um tipo de criminalidade que antes jamais existira no Brasil: a dos “perversos”, daqueles que não matam e roubam para terem isso ou aquilo, mas por se considerarem totalmente maus, a antítese dos “totalmente bons” que usam terno e gravata e passam o domingo e a noite de quarta aleluiando na Igreja Pentecostal Pentagonal do Evangelho Adulterado do Décimo-Quinto Dia à Tardinha Se Não Chover. É interessante compararmos os criminosos atuais (Elias Maluco, Beira-Mar, etc.) com os anteriores à ascensão desta mentalidade nos meios populares (Lúcio Flávio, Cara de Cavalo, etc.). Estes viam a vida criminosa como simplesmente um maneira (aliás errada, que eles não desejariam para seus filhos) de ganhar a vida, como uma *escolha* que haviam feito. Aqueles, mais modernos, vêem o crime como uma predestinação, como simplesmente o “locus”onde podem expressar plenamente a sua plena depravação. O resultado é que nas gangues atuais há, por exemplo, estupradores como os que há apenas quarenta anos seriam perseguidos e mortos pelos chefes de gangue. Do mesmo modo, eles procuram assassinar de maneiras mais bárbaras e dolorosas, por verem o assassinato não mais como uma mera maneira de livrar-se de inimigos, mas como uma expressão de sua depravação total.

Em termos políticos, esta mentalidade aceita qualquer tipo de riqueza como fruto de ou uma bênção divina (que facultaria àquele que a recebeu, por exemplo, um “direito” a privilégios como o de ser um deputado ou presidente da República, nos moldes do que o Jorge tem mostrado) ou de artimanhas do demônio (o que faria com que ela devesse ser gasta rapidamente, por ser de curta duração – é o que fazem os “malvados” traficantes, que gastam tudo o que ganham por se verem como irremediavelmente maus). O resultado disso é que eles se unem aos modernos estatólatras, com uma diferença: enquanto aqueles desejam que o Estado tudo forneça e proveja, estes querem que o Estado reflita o “puro bem” que eles crêem possui-los. O resultado é que procuram ao mesmo tempo mais manifestações religiosas públicas (como “Deus seja louvado” escrito no dinheiro) e uma maior “pureza” destas manifestações, afastando-se tudo o que cheire a catolicismo ou não-protestantismo. Não vêem nada de errado em que o Estado seja um provedor, desde que isso seja revestido com uma roupagem de “caridade cristã” (que só pode ser dirigida aos “bons”), como os restaurantes populares de um real por refeição do Garotinho – que não poderiam dar comida de graça, pois iria contra o mandamento protestante de trabalhar sozinho e tudo conquistar por esforço próprio… ainda que certamente saia mais caro ter toda uma burocracia para recolher um real por conviva que dar tudo de graça.

Para percebermos a diferença entre estas três mentalidades, vejamos alguns casos reais:

1 – O assassinato do repórter Tim Lopes:

Os que têm um pensamento tradicional limitaram-se a pensar “como o Rio de Janeiro é violento; é uma verdadeira terra-de-ninguém”. Alguns – como minha digníssima – acrescentaram que certamente a população honesta das favelas deveria expulsar estes traficantes de seu meio. Todos acharam no mínimo estranhas as manifestações “pela paz”; por mais bem-intencionadas que sejam, não têm como dar algum resultado.

Os modernos ficaram absolutamente horrorizados, e centraram o seu horror no fato de haver uma concorrência ao Estado agindo nas favelas. Viram o caso como um atentado ao “direito constitucional de ir e vir” e exigiram, em manifestações “pela paz”, que o Estado faça alguma coisa, rápido. É interessante perceber, aliás, como há na cabeça deste pessoal uma confusão bastante exemplificadora de sua estatolatria: as manifestações “pela paz” são ao mesmo tempo um pedido de ação por parte do Estado e uma espécie de “simpatia”, com “pensamento positivo”, roupas brancas, velas na janela, etc.

Os de mentalidade neo-calvinista não entenderam muito bem esta comoção. Os “predestinados ao céu” atribuíram a morte do repórter a ele não “ter Jesus no coração”, e os “predestinados ao inferno” acharam divertido perceber como deixaram a classe média apavorada. Repórteres (que geralmente vêm da classe média e têm mentalidade moderna) relataram como, ao entrar nas favelas, meninos risonhos diziam para eles que eles seriam os próximos Tins Lopes. Estes meninos vêem-se como “maus”, dentro desta visão calvinista, e percebem o horror dos modernos como prova de fraqueza.

2 – A candidatura Garotinho:

Os que têm um pensamento tradicional (e moram no Estado do Rio) geralmente pesam o que ele fez por eles ou por sua região: estradas, etc. Se foi eficiente, pode merecer um voto. Seus apelos religiosos são vistos como algo cafonas e não muito sinceros, mas não se pode esperar sinceridade de um político. Os outros o vêem como um político qualquer que não conhecem, e votariam nele apenas se tivesse o aval de um político que fez algo por eles.

Os modernos vêem horrorizados Garotinho como um “populista assistencialista”, sem perceber o abismo que há entre ele e um Roriz da vida, muito menos perigoso.

Os de mentalidade calvinista o vêem como um “ungido”, caso sejam “puros”, e como um “otário”, caso sejam “ímpios”. No fundo é a mesma coisa.

3 – O novo Código de Trânsito:

Os tradicionais o vêem como mais uma confusão, e procuram obedecê-lo na medida do possível para não terem problemas. Se os tiverem, molham a mão do guarda, irritados pela “tabela” da propina haver aumentado em função das multas mais altas. Em geral ficam muito irritados com “pardais” sem placas de aviso, que vêem como uma maneira de roubar o dinheiro deles por não avisá-los que naquele curto trecho a legislação de velocidade máxima é para valer, com uma máquina à prova de propina.

Os modernos o vêem como um grande avanço. Melhor que isso só se os carros fossem dirigidos por robôs controlados por um computador central em Brasília (não o carro, que para os modernos deveria ser proibido por poluir demais; a cidade). 🙂

Os neo-calvinistas “predestinados ao céu” o vêem como uma coisa ótima, por punir os “ímpios” que andam correndo de carro e fazem barbeiragens. Os do tipo “ímpio” preferem usar um carro roubado ou com placa “clonada”, e acham divertido pensar nas multas indo parar na casa de um inocente.

Esta situação de divisão das mentalidades torna ainda mais perigosa a situação política atual; afinal, o que vemos na prática é uma luta entre os modernos (Lula, Ciro, Serra) e um representante, por enquanto ainda menor, do neo-calvinismo (o “ungido” Garotinho) para a presidência e um enorme crescimento destas duas facções no Legislativo, em detrimento dos velhos e confiáveis corruptos tradicionais. Pior ainda, devido ao hábito – aliás bastante salutar – da mentalidade tradicional de agir “antropofagicamente”, ou seja, de ceder em tudo o que não é essencial, incorporando a seu patrimônio cultural o que quer que venha de bom de outros lugares (em termos culturais, é o que nos deu o uso de alianças de casamento e festas de solstício, como a de S. João, por exemplo…), somado à falta de percepção dos perigos moderno e neo-calvinista por parte dos políticos tradicionais, vemos preocupados um apoio parlamentar cada vez maior destes políticos a medidas abertamente igualitaristas e cerceadoras, oriundas destes dois campos novos.

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.