Troféus do amor

Quando casei, os pelos no meu queixo eram pretos, negros como as asas da graúna. Hoje são brancos. Meus cabelos também mal haviam iniciado a migração interna que os levou às costas, à barriga e ao interior das orelhas. Artrose? Não conhecia.

E eu casei com uma mocinha linda! Foi complicado; atravessei meio mundo, larguei tudo o que fazia e me desentendi com a família pelo privilégio de casar com ela. Mas casei.

Em breve, o tempo que passamos juntos será maior que o tempo que ela passou sem mim. Os pelos brancos que me foram surgindo já surgiram sob o seu cuidado, bem como as finas linhas que enfeitam hoje o seu rosto: essas vêm dos sorrisos que ela me deu, aquelas de franzir o sobrolho para me olhar sob o sol tropical.

Ela não é mais uma mocinha; hoje a mocinha da casa é a nossa filha, já bem maior que a mãe. Temos também um rapaz, não só maior que a mãe como com o pé maior que o meu. Esses gigantes vieram de dentro da barriga daquela mocinha com quem eu me casei, anos atrás. Sugaram-lhe os seios, adoçaram-lhe o olhar e criaram, eles também, novos troféus, novas linhas delicadas que lhe marcam o rosto.

A pele da mão do meu amor não é mais lisa e elástica, como era a pele daquela mocinha. É ainda mais linda, mais delicada; mais seda e menos borracha. É a mesma mão que me foi dada, anos atrás, na Igreja Matriz, a mão que carrega a aliança gêmea da que hoje me vejo fisicamente – e psicologicamente! – incapaz de tirar do dedo. Com os anos, ela se aprimorou, afinou-se, tornou-se mais talentosa. As flores de que ela cuida – nossa piada é que ela casou comigo só para assinar “Ramalhete”, tamanho é o seu amor pelas flores – são hoje mais viçosas. Suas artes são mais belas. O toque, quase inesperado em sua delícia, daquela mão delicada que busca a minha quando estamos sentados próximos é ainda mais doce, mais suave. Mais amado.

Ontem à noite, ela me contou que eu me mexo demais dormindo e acabo deitado por cima das cobertas. Disse-me minha guardiã que acorda de noite e me vê, encolhido de frio sobre os cobertores, tremendo nas nossas temperaturas outonais próximas do zero. Puxa daqui, estica dali, e, com suas mãozinhas delicadas, cobre esse marido bobo e tão mais pesado que ela. Eu só suspiro e me achego ainda mais ao seu calor.

Eu não sabia: sou homem, sou um bruto incapaz de acompanhar o amor dessa mulher admirável, em que o tempo e seus troféus transformaram a linda mocinha com quem um dia me casei. Só sei que amo essa mulher ainda mais que amei aquela mocinha.

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