Um alerta: Jesus é Deus em sentido próprio? E a Santíssima Trindade: 3 modalidades de Deus?

Em síntese: A partir de 1966, têm sido publicados estudos de famosos teólogos que visam a tornar mais compreensível ao homem de hoje a profissão de fé na Divindade de Cristo. Acontece, porém, que tais tentativas redundam na negação de que Jesus seja Deus no sentido próprio da palavra; Jesus Cristo seria mero homem, embora de modo excelente e singular, porque Deus nele se revelaria a toda a humanidade. Visto que as novas proposições afetam em termos graves o cerne da fé cristã, a Sagrada Congregaç?o para a Doutrina da Fé em Roma, aos 08/03/1972, houve por bem publicar uma Declaraç?o que reafirma ser Jesus a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, coeterna com o Pai e o Espírito Santo, a qual tomou a natureza humana de Maria Virgem, tornando-se verdadeiro homem. Em Jesus Cristo, uma só pessoa — a Divina — subsistia em duas naturezas — a Divina e a humana. Esta profissão de fé resulta dos estudos de padres e doutores da Igreja dos primeiros séculos e foi formulada definitivamente pelo Concílio de Calcedônia (451). O seu vocabulário, preciso como é, tornou-se garantia de conservação da verdadeira fé, de sorte que o abandono dessa nomenclatura suscita ambiguidade ou erros, apesar da boa intenção dos teólogos contemporâneos.

* * *

Aos 8 de março de 1972, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé em Roma publicou notável Declaração a respeito de erros modernos concernentes a Jesus Cristo e à Santíssima Trindade. Havia alguns anos que tal órgão da Santa Sé não se manifestava desse modo — o que supõe uma situação grave no campo da teologia. A Declaração deve ter sido elaborada por uma comissão de teólogos; o texto respectivo há de ter sido discutido pelos consultores e os Cardeais vinculados à Congregação para a Doutrina da Fé. A redação definitiva do documento foi por último levada ao Santo Padre Paulo VI, que houve por bem aprová-­la.

Nas páginas que se seguem, procuraremos delinear o fundo de cena da Declaração; a seguir, transcreveremos o respectivo texto e lhe acrescentaremos breves comentários.

1. O fundo de cena

O Santo Padre João XXIII, ao convocar o Concílio do Vaticano II, manifestou o desejo de que os teólogos procurassem exprimir as verdades da fé em termos claros e compreensíveis ao homem moderno; poderia trocar a linguagem clássica, quando necessário, guardando, porém, absoluta fidelidade às proposições da fé revelada.

Esta tarefa foi empreendida com especial interesse pelos teólogos holandeses que, em tempos idos, propuseram a troca de “transubstanciação” por “transignificação” e “transfina1ização” para designar a conversão do pão e do vinho eucarísticos no Corpo e no Sangue de Cristo. Tal troca, porém, suscitou mais incompreensão do que compreensão da real presença de Cristo na Eucaristia. Embora os autores não pretendessem negar a esta, não obtiveram o resultado almejado.

A partir de 1966, apareceram também na Holanda estudos de teólogos que tentaram reformular o conceito de “Jesus Cristo, Deus e homem”. Nos primeiros séculos da Igreja, o assunto foi arduamente considerado: o arianismo, o apo1inarismo (ambos no séc. IV), o nestorianismo e o monofisismo (ambos no séc. V) eram correntes teológicas que tendiam a diminuir um dos termos do binômio: “Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. Finalmente, o Concílio de Calcedônia em 451, após longos estudos de teólogos e doutores da Igreja, definiu que em Jesus Cristo subsiste uma só pessoa ou um só Eu (a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho) em duas naturezas (a Divina e a humana); o que quer dizer: o Filho de Deus passou a subsistir aqui na terra em uma natureza humana recebida de Maria Virgem. Tal modo de falar tornou­-se clássico na teologia católica; os vocábulos “natureza” e “pessoa>> não causavam dificuldade ao entendimento dos medievais. Eis, porém, que alguns teólogos contemporâneos julgaram dever procurar outra formulação para exprimir como Jesus é Deus e homem.

Apresentaremos aqui apenas três espécimens dessas novas tentativas:

1.1 Prof. A. Hulsbosch

O Prof. A. Hulsbosch publicou em 1966 o artigo intitulado “Jezus Christus, gedenk als mens, beleden als Zoon Gods” (“Jesus Cristo, conhecido como homem, professado como Filho de Deus”) em “Tijdschrift voor Theologie” 6 (1966), pp. 250-273. O autor pretende eliminar o dualismo das duas naturezas e realçar a unidade de Cristo. Parte então do conceito de evolução: a matéria viva, diz ele, não é senão o desdobramento da matéria inanimada; a própria vida intelectual do homem é uma das formas de desenvolvimento da matéria; segundo o autor, não [é] necessária uma especial intervenção de Deus para justificar a transição da vida não-humana para o grau humano. De modo paralelo, diz ele, as prerrogativas divinas de Jesus não se devem a um princípio divino distinto da sua natureza humana; podem ser ditas divinas porque têm semelhança com Deus, mas, na verdade, não são senão o resultado do desenvolvimento das virtualidades da própria matéria. São palavras de Hulsbosch:

– “Jesus é um homem que é homem de modo novo e superior. Já não é o Filho, uno com o Pai na natureza divina. É um homem excepcionalmente dotado de graça” (p. 254).

Como todas as criaturas são manifestações do Criador, Jesus-homem é a mais alta manifestação do Criador, manifestação única ou singular. O autor afirma em consequência:

– “Posso chamar Cristo criatura; então digo que é homem. Posso chamar Cristo revelação de Deus; então digo que é Deus” (p. 265).

Longe de negar que Jesus seja “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, é preciso sustentar que toda criatura é “verdadeiro Deus e verdadeira criatura”, pois é manifestação de Deus.

Nesta nova interpretação da doutrina cristã, que vem a ser o Espírito Santo? — O Espírito Santo é o próprio Deus que se revela em Cristo. Com outras palavras: Cristo é a forma na qual Deus se revela; O Espírito Santo é Deus que se revela nessa forma.

Assim, segundo Hulsbosch, a teologia se simplifica. Aparece muito melhor a unidade de Cristo, porque nele não há senão um homem,… um homem diferente dos outros por ter um conhecimento e uma experiência única de Deus. Em consequência, ele pode ser chamado “Homem celeste” (cf. 1Coríntios 15,45-49). Quando os Evangelistas Mateus e Lucas dizem que Jesus foi concebido do Espírito Santo, apenas querem insinuar que desde o início da sua existência Jesus foi a grande revelação de Deus.

Em suma, interpretando a seu modo os textos bíblicos que falam da preexistência de Cristo (tenha-se em vista, por exemplo, João 1,1.14: “No princípio era o Verbo… e o Verbo se fez Carne”), o autor holandês propunha em 1966 mais uma tese filosófica do que o eco da mensagem bíblica.

A posição de Hulsbosch difundiu-­se na Holanda. Foi retocada e parcialmente criticada por um ou outro teólogo (Schillebeeckx, Schoonenberg, Smulders), de sorte que em 1971 o Prof. Hulsbosch publicou novo artigo sobre o assunto, apresentando o seu pensamento um tanto modificado; cf. “Christus, de sheppende wijsheid van God”, em “Tijdschrift voor Theologie” 2 (1971), pp. 66s. O autor retirou então a ideia de que Cristo seja o produto de evolução. Em Jesus, diz Hulsbosch, se encontra a presença criadora da sabedoria que abraça toda a evolução. Todavia o autor não admite em Jesus uma pessoa divina: Cristo é mero homem, no qual Deus está presente como sabedoria; em consequência, tendo-­se em vista a pessoa humana de Jesus, pode-se falar de uma presença pessoal da sabedoria de Deus!

À guisa de eco das novas teorias, seja citado aqui um texto do…

1.2. Prof. P. Smulders

No encerramento de uma assembleia de bispos e sacerdotes, o P. Smulders, professor da Faculdade de Teologia católica de Amsterdam, leu uma profissão de fé. Esta é estritamente pessoal, isto é, não responsabiliza a referida assembleia. Eis o teor de sua primeira parte:

– “Creio em Deus Pai, que tem tudo em suas mãos. A minha existência é dom de Alguém que é amor e solicitude.
Creio no homem Jesus, que nasceu de Maria e é o dom de Deus a nós. Nele aparecem a solicitude de Deus por todos, o seu convite ao amor e a sua paciência para conosco, pecadores.
Esse Jesus vive, e diante dele e do seu Pai responderemos finalmente por aquilo que somos nós mesmos e por aquilo que fazemos ao nosso próximo.
Creio no Espírito Santo: o bem que desejamos e fazemos, é graça, e, por este motivo, é mais forte do que nossa fraqueza, nossa culpa, nossa incapacidade” (“Het priesterberaad in Boordwiikerhout. Inleiding en slotheschouwing”, em “Theologie en Pastoraat” 64 (1968), p. 330).

Os silêncios ou as omissões dessa profissão de fé são profundamente estranhos. — Não diz que Jesus seja Deus ou Filho de Deus; nem afirma que nasceu de Maria Virgem por obra do Espírito Santo; nem professa a morte e ressurreição de Cristo (apenas diz que Jesus “vive”). Também pairam sombras sobre O Espírito Santo nesse texto. O juízo final parece insinuado, mas em termos vagos.

Ainda pode merecer atenção o ponto de vista dos…

1.3. Prof. F. Haarsma e Prof. P. Schoonenberg

O Prof. Haarsma julga que o artigo de Hulsbosch resume bem a tendência de teólogos que desejam abandonar as fórmulas dos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) e não mais dizer que em Jesus há uma só pessoa: a pessoa divina. A teologia moderna — diz ele — fala da transcendência humana de Jesus. Ela reconhece Jesus Cristo como Filho de Deus, isto é, como o homem no qual Deus está presente da maneira mais íntima. Esse homem difere de nós não essencialmente, mas escatologicamente (isto é, no tocante ao seu destino final). Cristo não tem preexistência (isto é, não existia antes de nascer de Maria), mas tem pro-existência (uma existência voltada para o futuro): ele é o homem para todos, porque Deus nele se manifesta a nós. Cf. o artigo “Ontwikklingen in de rooms katholicke theologie in Nederland”, em “De nieuwe mens” 20 (1968), p. 55.

O Prof. P. Schoonenberg converge com Haarsma, afirmando que “Jesus é uma pessoa humana, um ser humano, psicológico e ontológico, um centro de consciência, de decisão e de projeto de vida”. Cf. “Jezus Christus vandaag dezelfde”, em “Geloof bij kenterend getij”, Roermond­-Maaseik (1967), p. 173s. E conclui:

– “No tocante a Cristo, tudo se reduz ao exemplo… um exemplo que toca em profundidade a existência e que tem por fonte um contato pessoal”. Mas “não temos o direito — por causa de nossa fé em Jesus ? de excluir outras fontes de inspiração e exemplo. Jesus mesmo se referiu aos profetas, e Moisés, etc., que eram os grandes exemplos da tradição religiosa do seu país. A nossa fé professa apenas que ele é para nós o exemplo eminente e insuperável” (“Sept problèmes capitaux de l’Église”, Paris, 1969, p. 157).

Estes textos são suficientes para dar a ver como pensam os autores que, desejando expressar de novo modo a fé em Jesus Cristo, admitem que Jesus não seja, em sentido próprio, verdadeiro Deus feito homem.

2. Quem tem razão?

Diante das sentenças dos eruditos autores citados, pode alguém ter motivos para interrogar: não estarão eles com razão? Profundos estudiosos, doutos conhecedores do pensamento moderno, não estarão eles traduzindo para o homem contemporâneo o teor dos documentos bíblicos? Se no século V o Concílio de Calcedônia falou de duas naturezas e uma pessoa em Cristo, não poderíamos nós reformular tal linguagem, cujo vocabulário se tornou estranho aos nossos dias?

A resposta não é difícil. A realidade de Jesus Cristo só nos é conhecida pela revelação do próprio Jesus Cristo, que nos vem através das Escrituras e da Tradição, que o Magistério da Igreja exprime autenticamente. O assunto não é do setor da filosofia ou da física, mas estritamente do âmbito da fé. Por isto a razão ou o “bom senso” não são critérios decisivos para se definir quem era Cristo, e, sim, a Palavra de Deus, que falou e fala pela Igreja através dos séculos. Ora a Igreja, seguindo o ensinamento dos Apóstolos, em todos os tempos professou que Jesus é Deus verdadeiro feito homem verdadeiro no seio de Maria Virgem; é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que subsiste eternamente com o Pai e o Espírito Santo. Esta fé foi formulada em termos técnicos nos Concílios de Nicéia I (325), Constantinopla I (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451). Diante de contradições e das mais diversas sentenças propostas por correntes inovadoras (arianismo, macedonianismo, nestorianismo, monofisismo), os bispos e teólogos da Igreja antiga foram incitados a sondar os documentos da fé (as Escrituras e a Tradição Sagrada), chegando conscientemente às profissões de fé dos Concílios mencionados. Hoje em dia pode-se exprimir a mesma doutrina em termos equivalentes, contanto que se afirme sempre a fé em Jesus Cristo Deus feito homem. Qualquer explicação que de algum modo derrogue a esta fé, já perverte o Cristianismo, reduzindo-­o à categoria de mera corrente humana de pensamento. Ora é o que acontece às teses dos autores citados: movidos pela louvável intenção de atualizar a linguagem da teologia, já não estão simplesmente substituindo expressões antigas por equivalentes expressões modernas, mas estão afetando o conteúdo mesmo da fé cristã.

De resto, somente se Jesus é verdadeiro Deus encarnado, se entende a mensagem do Cristianismo: este afirma que na plenitude dos tempos Deus quis assumir a natureza do homem, sua vida, seus sofrimentos e sua morte, para dar sentido novo a estas realidades, ou seja, para santificar e divinizar o homem e o mundo; em consequência, o cristão tem a esperança e a certeza de que a sua vida cotidiana, por mais comezinha que seja, tem um valor de eternidade; ela é o cenário no qual Cristo prolonga a sua vida de Filho de Deus, fazendo-nos com Ele voltar ao Pai.

Para reafirmar tais noções, que são essenciais ao Cristianismo, é que a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé houve por bem publicar o documento que transcrevemos abaixo:

3. «O mistério do Filho de Deus»
– Declaração para salvaguardar de erros recentes a fé nos mistérios da Encarnação e da Santíssima Trindade
1. É necessário que o mistério do Filho de Deus feito homem e o mistério da Santíssima Trindade, que fazem parte das verdades principais da Revelação, iluminem, com a pureza da sua verdade, a vida dos cristãos. Mas, como estes mistérios foram impugnados por alguns erros recentes, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé tomou a decisão de recordar e salvaguardar a fé transmitida sobre estes mesmos mistérios.
2. A fé católica no Filho de Deus feito homem
Jesus Cristo, durante a sua vida terrestre, manifestou, de diversos modos, com as palavras e com as obras, o mistério adorável da Sua pessoa. Depois de se ter tornado “obediente até a morte” (Filipenses 2,8), foi exaltado pelo poder de Deus, na ressurreição gloriosa, como convinha ao Filho “por meio do qual tudo foi criado pelo Pai” (1Coríntios 8,6). A respeito d’Ele, São João afirmou Solenemente: “No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus… E o Verbo fez-se homem” (João 1,1 e 14; cfr. 1,18).
A Igreja conservou sempre, santamente, a fé no mistério do Filho de Deus feito homem, transmitindo?a “no decurso dos anos e dos séculos” (I Concilio Vaticano, Dei Filius, c. 4; DS 150), com uma linguagem cada vez mais explícita. Com efeito, no Símbolo de Constantinopla, que até hoje é recitado na celebração eucarística, ela professa a sua fé “em Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos… Deus verdadeiro de Deus verdadeiro… da mesma substância do Pai… que por nós homens, e pela nossa salvação… se fez homem” (Missal Romano; DS 150). O Concílio de Calcedônia decretou que se devia crer que o Filho de Deus foi gerado pelo Pai, segundo a Sua divindade, antes de todos os séculos, e nasceu, no tempo, de Maria Virgem, segundo a Sua humanidade (cfr. Concílio de Calcedônia, Definição; DS 391). Além disso, este mesmo Concilio atribuiu o termo ‘pessoa’ ou ‘hypostasis’ ao único e mesmo Cristo, Filho de Deus, usando, porém, o termo ‘natureza’ para designar a Sua divindade e a Sua humanidade. Com estas palavras, ensinou que estão unidas, na única pessoa do nosso Redentor, as duas naturezas, divina e humana, sem confusão e sem mudança, sem divisão e sem separação (cfr. ibid., 302). Do mesmo modo, o IV Concílio de Latrão ensinou que se deve crer e professar que o Filho Unigênito de Deus, eterno como o Pai, se tomou verdadeiro homem e é uma só pessoa em duas naturezas (cfr. IV Concílio de Latrão, Firmiter credimus; DS 800s.). Esta é a fé católica que o II Concílio do Vaticano, de acordo com a Tradição constante de toda a Igreja, ensinou recentemente com muito clareza em numerosas passagens dos seus documentos[1].
3. Alguns erros recentes sobre a fé no Filho de Deus feito homem
São claramente opostas a esta fé as opiniões segundo as quais não nos foi revelado e nem se sabe que o Filho de Deus subsiste ‘ab aeterno’, no mistério de Deus, distinto do Pai e do Espírito Santo; e também as opiniões segundo as quais não tem sentido a afirmação de que Jesus Cristo tem uma só pessoa, gerada, antes dos séculos, pelo Pai, segundo a natureza divina, e, no tempo, de Maria Virgem, segundo a natureza humana; e, por fim, a asserção segundo a qual a humanidade de Jesus Cristo existe não como assumida na pessoa eterna do Filho de Deus, mas em si mesma, como pessoa-humano, e, por conseguinte, o mistério de Jesus Cristo consiste no fato de Deus se revelar presente de um modo supremo na pessoa humana de Jesus.
Aqueles que pensam assim estão longe da verdadeira fé em Cristo, mesmo quando asseverem que a singular presença de Deus em Jesus faz com que Ele seja a expressão suprema e definitiva da revelação divina, e não recuperam a verdadeira fé na divindade de Cristo, quando acrescentam que Jesus pode ser chamado Deus, porque Deus está sumamente presente naquela pessoa a que eles chamam a Sua pessoa humana.
4. A fé católica na Santíssima Trindade e no Espírito Santo
Quando se nega o mistério da pessoa divina e eterna de Cristo, Filho de Deus, também se negam a verdade da Santíssima Trindade e, com ela, a verdade do Espírito Santo, que procede ‘ab aeterno’ do Pai e do Filho, ou, por outras palavras, do Pai pelo Filho (cfr. Concílio de Florença, Laetentur caeli; DS l300). Por isso, considerando os erros recentes sobre esta doutrina, devem ser recordadas algumas verdades de fé na Santíssima Trindade e, particularmente, no Espírito Santo.
A segundo carta aos Coríntios termina com esta admirável fórmula: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunicação do Espírito Santo sejam com todos vós” (2Coríntios 13,13). No mandato de batizar, referido pelo Evangelho de São Mateus, são nomeados o Pai, o Filho e o Espírito Santo, como três que fazem parte do mistério de Deus e em cujo nome os novos fiéis devem ser regenerados (cfr. Mateus 28,19). Por fim, no Evangelho de São João, Jesus fala da vinda do Espírito Santo, deste modo: “Mas, quando vier o Consolador, que vos hei de enviar da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, Ele dará testemunho de Mim” (João 15,226).
Baseando-se nos dados da divina revelação, o Magistério da Igreja, o único que recebeu “a missão de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida” (II Concílio do Vaticano, Dei Verbum, n. 1O), professou, no Símbolo de Constantinopla, a sua fé “no Espírito Santo que é Senhor e dá a vida… e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado” (Missal Romano; DS 150). Igualmente, o IV Concilio de Latrão ensinou a crer e a professar “que um só é o verdadeiro Deus… Pai e Filho e Espírito Santo: três pessoas, mas uma única essência… o Pai que não procede de ninguém, o Filho que procede somente do Pai, e o Espírito Santo que procede igualmente de ambos, sempre sem início e sem fim” (IV Concílio do Latrão, Firmiter Credimus; DS 800).
5. Alguns erros recentes sobre a Santíssima Trindade e, particularmente, sobre o Espírito Santo
É contrária à fé a opinião segundo a qual a revelação nos deixa em dúvida sobre a eternidade da Santíssima Trindade e, particularmente, sobre a existência eterna do Espírito Santo, como pessoa distinta, em Deus, do Pai e do Filho. É verdade que o mistério da San­tíssima Trindade nos foi revelado na economia da salvação, principalmente em Cristo, que foi enviado ao mundo pelo Pai e que, juntamente com o Pai, envia ao Povo de Deus o Espírito que vivifica. Mas, por meio desta revelação, foi dada aos fiéis também a possibilidade de conhecer de algum modo a vida íntima de Deus, na qual “o Pai que gera, o Filho que é gerado e o Espírito Santo que procede” são “da mesma substância, iguais, do mesmo modo oni­potentes e eternos” (ibid.).
6. Os mistérios da Encarnação e da Santíssima Trindade devem ser fielmente conservados e explicados
O que é expresso nos documentos conciliares acima citados sobre o único e mesmo Cristo Filho de Deus, gerado, antes dos séculos, segundo a natureza divina, e, no tempo, segundo a natureza humana, e sobre as pessoas eternas da Santíssima Trindade, pertence à verdade imutável da fé católica.
Isto não impede, certamente, que a Igreja considere como seu dever, levando também em consideração os novos modos de pensar dos homens, não deixar de envidar esforços, a fim de que os mencionados mistérios sejam aprofundados, por meio da contemplação da fé e da investigação dos teólogos, e mais amplamente explicados, de um modo adequado. Mas, quando se cumpre a necessária tarefa de investigar, é preciso evitar diligentemente que estes mistérios arcanos sejam considerados num sentido diverso daqueles segundo o qual “a Igreja os entendeu e entende”[2].
A verdade intacta destes mistérios é de suma importância para toda a revelação de Cristo, porque eles de tal modo fazem parte do seu núcleo, que, se forem alterados, também será falsificado o resto do tesouro da fé. A verdade destes mesmos mistérios é igualmente importante para a vida cristã, porque nada manifesta tão bem a caridade de Deus, da qual toda a vida dos cristãos deve ser uma resposta, como a Encarnação do Filho de Deus, nosso Redentor (cfr. 1João 4,9S), e também porque “aprouve a Deus, na Sua bondade e sabedoria, revelar-­se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério da Sua vontade, por meio do qual os homens, através de Cristo, Verbo Encarnado, têm acesso ao Pai no Espiríto Santo e n’Ele se tornam participantes da natureza divina” (II Concílio do Vaticano, Dei Verbum, n. 2; cfr. Efésios 2,18; 2Pedro 1,4).
7. Portanto, com respeito às verdades que a presente Decla­ração defende, é dever dos Pastores da Igreja exigir a unidade na profissão de fé do seu povo e, principalmente, daqueles que, em virtude do mandato que lhes foi confiado pelo Magistério, ensinam as ciências sagradas ou pregam a Palavra de Deus. Este dever dos Bispos faz parte do múnus que, divinamente, lhes foi confiado: de “conservar puro e integro o depósito da fé”, em comunhão com o sucessor de Pedro, e de “anunciar incessantemente o Evangelho” (Paulo VI, Exortação Apostólica Quinque jam Anni; em A.A.S. 68, 1971, 99, e em: O.R. ed. port., 10 de janeiro de 1971, p. 9). Por causa do mencionado múnus, são obrigados a não permitir que os ministros da Palavra de Deus se afastem da sã doutrina e a tnansmitam corrompida ou incompleta[3]. Com efeito, o povo confiado aos cuidados dos Bispos, e “do qual” eles “são responsáveis diante de Deus” (Paulo VI, ibid.), goza do “direito irrevogável e sagrado” de “receber a Palavra de Deus, da qual a Igreia nunca deixou de adquirir uma compreensão cada vez mais profunda” (ibid.).
Além disso, os cristãos, e, principalmente, os teólogos, por causa do seu importante ofício e do seu necessário serviço na Igreja, devem professar fielmente os mistérios que são recordados na presente Declaraç?o, igualmente, sob a ação e a luz do Espírito Santo, os filhos da Igreja devem aceitar toda a doutrina da Igreja, sob a guia dos seus Pastores e do Pastor da Igreja universal[4], de modo que haja “uma singular colaboração de Pastores e fiéis, na conservação, no exercício e na profissão da fé recebida”[5].
O Sumo Pontífice, por divina Providência Papa Paulo VI, na audiêncîa concedida, no dia 21 de fevereiro de 1972, ao subscrito Prefeito da Sagrado Congregação para a Doutrina de Fé, ratificou e confirmou esta Declaração que visa a salvaguardar a fé nos mistérios da Encarnação e da Santíssima Trindade, e ordenou que fosse publicado.
Roma, Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 21 de fevereiro de 1972, festa de São Pedro Damião.
† FRANJO Cardeal SEPER
Prefeito
† PAUL PHILIPPE
Arcebispo titular de Heracleópolis Magna
Secretário”

4. Breve comentário

Como se vê, o texto da Declaração não cita nomes de autores nem profere anátemas ou condenações sobre quem quer que seja. Apenas indica posições doutrinárias, distinguindo do erro a verdade. Termina com apelo aos bispos e pastores de almas, a fim de que exerçam fielmente o seu ministério de arautos e defensores da reta fé, em beneficio do povo de Deus, que muitas vezes se vê sujeito a pregações e leituras pouco equilibradas, as quais perturbam e prejudicam seriamente a vida cristã.

Recapitulando o teor do documento atrás transcrito, podemos dizer que são quatro os erros nele rejeitados:

1) A tese segundo a qual a pessoa de Cristo não seria anterior à encarnação. A pessoa do Filho de Deus não seria coeterna com o Pai e o Espírito Santo.

2) A tese que nega, possa a única pessoa de Jesus Cristo — coeterna com o Pai e o Espírito Santo ? subsistir na natureza humana desde o primeiro instante da encarnação no seio de Maria Virgem. Duas naturezas ? a divina e a humana ? seriam incompatíveis com a unidade que se deve afirmar em Cristo.

3) A tese que admite em Jesus Cristo uma só pessoa — a humana — e uma só natureza (humana). Em Cristo, mero homem, Deus se revelaria de modo singular. — Reconheça-se que em Cristo Deus Pai se revela, não, porém, mediante uma pessoa humana, mas, sim, mediante a segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

4) Quem nega a Pessoa divina de Cristo nega também a Santíssima Trindade; a eternidade da Pessoa do Espírito Santo é posta em causa. A Santíssima Trindade teria começado a existir com a vida humana de Cristo.

A linguagem da Declaração de Fé é assaz técnica, pois retoma as definições de antigos Concílios. Como quer que seja, ela se opõe a qualquer tentativa de negar seja Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Essa doutrina foi expressa em termos rigorosamente precisos nos primeiros séculos da Igreja; a nomenclatura então adotada tornou-se garantia de conservação da reta fé, de sorte que a reforma dessa nomenclatura hoje em dia pode acarretar ambiguidades ou mesmo erros em um setor capital para a mensagem cristã. — Eis por que a Santa Igreja interveio enérgica e claramente no momento oportuno. Para o estudioso sincero, não pode restar margem à hesitação.

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NOTAS

[1] Cfr. II Concílio do Vaticano, Lumen Gentium, nn. 3, 7, 52, 53; Dei Verbum, nn. 2 e 3; Gaudum et Spes, n. 22: Unitatis Redintegratio, n. 12; Christus Dominus, n. 1 ; Ad Gentes, n. 3; Paulo VI, Solene Profissão de Fé, em: A.A.S. 60, 1968, 437.
[2] I Concílio do Vaticano, Dei Filius, c. 4, can. 3: DS 3043; João XXIII, Alocuç?o na abertura do II Concílio do Vaticano, em: A.A.S., 54 1962, 792; II Concílio do Vaticano, Gaudium et Spes, n. 62; Paulo VI, Solene Profiss?o de Fé, 4, em: A.A.S. 60, 1968, 434.
[3] Cfr. 2Timóteo 4,1-5; Paulo VI, ibid.; Sínodo dos Bispos, Assembleia de 1967, Relatório da Comissão Sinodal constituída para o exame das opiniões perigosas e do ateísmo, II,3,3, em O.R. 30-31 de outubro de 1967, p. 3.
[4] Cfr. II Concílio do Vaticano, Lumen Gentium, nn. 12 e 25; Sínodo dos Bispos, Assembleia de 1967, ibid. II,4.
[5] II Concílio do Vaticano, Dei Verbum, n. 10.

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BIBLIOGRAFIA

– Marcelo Gonzalez, “La foi en Jésus-Christ et en la Sainte Trinité”, em L?Osservatore Romano (ed. francesa), 05/05/1972, p. 11.
– Jean Galot, “Alcuni recenti errori sui misteri dell’Incarnazione e della Trinità”, em La Civiltà Cattolica n° 2923, 01/04/1972, pp. 41-46.
– Jorge Mejia, “La Declaración doctrinal”, em Criterio nº 1640, 23/03/1972, pp. 144-146.
– Jean Galot, “Tentativi di una nuova Cristologia”, em La Civiltà Cattolica nº 2886, 19/09/1970, pp. 484-494.
– idem, “Rinnovamento della Cristologia”, em La Civiltà Cattolica nº 2887, 03/10/1970. pp. 31-41.
– idem, “Alcuni recenti errori sui misteri dell‘Incarnazione e della Trinità”, em La Civiltà Cattolica nº 2923, 01/04/1972, pp. 41-46.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 151, págs. 310-322, jul./1972.
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