Vocação para margem (ou: “Non serviam”)

Alguns críticos do teísmo, como o falecido Christopher Hitchens, dizem que a religião é a causa dos males do mundo e a maior divulgadora de doutrinas estranhas e indefensáveis. Para eles, por exemplo, o respeito absoluto à liberdade humana por parte de Deus, inclusive depois da morte, é absurdo (o inferno); o esforço humano pelo equilíbrio na obtenção dos prazeres é uma afronta (ascese). No fundo desta postura está a premissa: o que não entendo é um absurdo. Como a dor não tem sentido para os ateus, o inferno como lugar de dor eterna é algo incompreensível; do mesmo modo, como o prazer não pode se submeter a regras, a ascese humana para ordenar as paixões é uma violência, a seus olhos. Para eles, a religião, e o cristianismo em particular, é castradora. No entanto, é justamente o contrário. O pensamento de matiz religioso e especialmente o espírito cristão católico é mais inclusivo e abrangente que o ateísmo puro e simples. O cristão católico não ignora nada: o mundo não é um lugar de onde se deva fugir, mas um campo de batalha que tem o leigo como infantaria entusiasmada; a dor não é uma inimiga, como pensam os ateus, mas uma aliada, se bem entendida; nem a morte, mal irremediável para os ateus – Hitchens que o diga! – tem a palavra final para os cristãos. Enfim, entre os ateus e os cristãos, quem vive castrado, sem poder aproveitar tudo (tudo mesmo!) que nosso mundo oferece são os ateus, pois eles só aceitam o prazer e não a dor; a vida e não a morte; a força, nunca a fraqueza. Nós outros, pelo contrário, assumimos tudo o que o mundo tem para nos dar. Os cristãos só não assumem o amor ao pecado, o apego ao mal. Mas aqui, nem os ateus aceitam. Para cristãos e ateus, amar o mal é inconcebível. Enfim, para os cristãos toda situação pode ser inserida em um projeto divino, a que o homem deve aderir para ser feliz. No nível pessoal, isso significa que toda pessoa tem uma vocação. Mas há algumas pessoas que tem vocação para margem.

Vocação para margem têm aquelas pessoas que, na juventude, criticavam a Igreja Católica por razão de sua apatia no campo político. Atacavam a doutrina, afirmando que ela não era suficientemente atual, capaz de dialogar com os nossos tempos. Apedrejavam os seus sacerdotes, dizendo que eles pareciam homens parados no passado, que deviam ser como os outros homens comuns, para que seu discurso fosse mais próximo dos seus paroquianos. Em outras palavras, na juventude essas pessoas se colocavam na margem esquerda, atacando a Igreja como representante do atraso, do antigo, do status quo.

Não raro, essas mesmas pessoas que queimavam a bandeira dos EUA aos 15 anos, quando fazem 40 passam por mais um processo de conversão e mudam de margem. Aí, descobrem que a Igreja Católica está demasiadamente envolvida com a política. Reclamam que a doutrina ensinada por aí está por demais atualizada, pondo em risco os conteúdos tradicionais. Criticam os sacerdotes, mas agora é por causa da sua lida mui próxima do povo, muito envolvidos com os problemas das pessoas e pouco espirituais. Na idade madura, eles continuam atacando a Igreja, mas da margem direita. Afinal, eles invocam que têm vocação para margem.

Na verdade, ninguém tem vocação para margem, mas há pessoas que sentem a necessidade quase vital de criticar. Da perspectiva moderna ou antiga, enquanto o mundo não se adequa a suas opiniões essas pessoas tornam-se renitentes e, não raro, violentos e injustos analistas da prática alheia. Como uma paródia do “Non Serviam” satânico, elas têm a tarefa pessoal de consertar o rumo da Nau da Igreja, seja orientando-a mais para a direita, seja mais para a esquerda, segundo seus próprios julgamentos. Quem tem vocação para a margem encontra grande dificuldade de deixar-se guiar pelo Doce Cristo na Terra e acha quase incompreensível o texto das Chaves de Pedro (Mt 16, 16ss).

Antes de levantarem os olhos para criticar as ações da Igreja, elas deveriam lembrar o Princípio de Gamaliel, descrito em At 5, 34ss: é preciso ter o cuidado de evitar, demasiadamente apegado às próprias opiniões, aconteça que guerreemos contra o próprio Deus, colocando-nos do lado dos seus inimigos. Afinal, não é esse o princípio dos demônios? Nunca servir?

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