As obras proibidas no domingo

– “Parece-me haver certa confusão no que concerne às obras proibidas nos domingos e dias de preceito. Afinal será lícito ou não bordar, cuidar do pomar, tratar da correspondência comercial?” (Dona de Casa – Rio de Janeiro-RJ).

Sabemos que, após a ressurreição de Cristo, o povo de Deus passou a santificar o domingo, dia da Nova Criação, ao qual corresponde no Antigo Testamento o sábado, dia da antiga Criação. Tendo caído em desuso a guarda do sábado, cessaram também as observâncias que a Lei de Moisés (pedagogo provisório; cf. Gálatas 3,24-26) a este associava; conforme a Torá, o trabalho no sábado era punido com a morte mesma (cf. Êxodo 31,15), de sorte que os israelitas nem ousavam preparar seus alimentos nesse dia.

Quais então foram os costumes pelos quais os cristãos começaram a santificar o domingo?

É mister distinguirmos entre a participação no culto sagrado e a cessação dos afazeres cotidianos:

1) O ato mais característico com que os Apóstolos marcaram o dia do Senhor foi a celebração da Sagrada Eucaristia (cf. Atos 20,7; 1Coríntios 16,2). Esta, sendo a comemoração sacramental da Paixão e da Ressurreição do Senhor, constitui o ato por excelência da vida cristã, até hoje intima e impreterivelmente associado ao domingo.

Deve-se dizer, porém, que até o séc. IV nenhuma lei eclesiástica prescrevia a frequentação da Santa Missa; esta se baseava em um costume generalizado entre os fiéis. A primeira determinação neste terreno se deve ao Concílio provincial de Elvira (Espanha), em 305, o qual infligia a excomunhão a quem por três vezes consecutivas faltasse às reuniões dominicais na Igreja. Aos poucos, a legislação se foi tornando mais pormenorizada: o Concílio de Agde (França), em 406, exigia a assistência à Missa inteira; o de Roma, em 610, inculcou o dever de assistir à Missa mesmo aos pastores e agricultores. As leis civis deste ou daquele povo não raro corroboravam a determinação eclesiástica: por exemplo, o rei Santo Estêvão da Hungria, em 1016, mandou raspar os cabelos e infligir uma pena corporal àqueles que habitualmente faltassem à Missa. A legislação antiga foi de novo considerada no Código de Direito Canônico, que, promulgado em 1917, prescreveu a todos os cristãos a assistência à Santa Missa dominical (cân. 1247).

2) Quanto à cessação dos trabalhos no domingo, deve-se distinguir entre a praxe dos seis primeiros séculos e a das épocas subsequentes:

a) Nos seis primeiros séculos, deixava-se de trabalhar no domingo pelo motivo primário de que o culto sagrado o exigia; era preciso, sim, suspender, total ou parcialmente, os afazeres cotidianos para se poder celebrar com solenidade a Eucaristia. Além disto, motivos de piedade e veneração para com a Ressurreição do Senhor fomentavam nos cristãos o costume de não trabalhar no domingo após a celebração da Eucaristia. Contudo, até o séc. IV não havia lei da Igreja que prescrevesse estritamente o repouso dominical; o Concilio de Laodicéia, posterior ao ano de 381, nos dá um dos primeiros testemunhos neste sentido: manda que, se possível, os fiéis se abstenham do trabalho no domingo (a cláusula explicita “se possível” indica uma legislação mais branda que a do Antigo Testamento). Acontecia mesmo que às vezes se recomendava aos cristãos o trabalho no domingo após haverem participado do culto sagrado, a fim de não ficarem sujeitos aos perigos que o ócio pode acarretar. É o que se lê, por exemplo, na “Didascalia Apostolorum”, coleção jurídica da segunda metade do séc. III que, após prescrever a frequentação da Liturgia dominical, acrescenta:

– “Vós todos, fiéis, sempre e em qualquer época, cada vez que não estiverdes na igreja, sede assíduos ao trabalho, durante toda a vossa vida (…) Sede atentos ao que é do vosso encargo; fazei vosso trabalho e jamais estejais ociosos (…) Trabalhai sempre, pois a preguiça é vício que não tem cura”.

O autor da “Didascalia”, portanto, não conhecia outro repouso no domingo se não o que fosse motivado pela celebração do culto.

Nos círculos de monges, que, sem dúvida, procuravam a perfeição, aparece o mesmo conceito largo de repouso dominical. É o que S. Jerônimo atesta, referindo-se a virgens e matronas que, sob a sua direção, praticavam a ascese em Belém da Palestina no séc. IV:

– “Somente no domingo iam à igreja, ao lado da qual habitavam. Ao voltarem, todas juntas aplicavam-se ao trabalho rigoroso, e confeccionavam vestes para si ou para outrem” (Epíst. 103,20).

A Regra de São Bento (+547), por sua vez, permite o trabalho no domingo, desde que o ócio venha a ser nocivo para o monge:

– “No domingo todos se apliquem à leitura, excetuados aqueles que tenham sido designados para os diversos encargos. Se, porém, alguém for tão negligente ou preguiçoso que não possa ou não queira meditar ou ler, dê-se-lhe um trabalho, a fim de que não fique ocioso” (cap. 48).

Do seu lado, o Imperador Constantino (306-337), desejando favorecer a vida cristã, promulgou o seguinte edito:

– “Todos – juízes, povo da cidade e artífices de todas as profissões – repousem no domingo. Contudo, os agricultores poderão continuar o seu trabalho, pois acontece frequentemente que não há outro dia em que se possa semear em boas condições. Não venham a perder por uma questão de dia os frutos que a Providência celestial nos concede” (Cod. Justin. XIII 12,2).

Em suma, dir-se-á que nos seis primeiros séculos o domingo era primariamente considerado como o dia da Sagrada Eucaristia. Isto implicava, naturalmente, uma cessação do trabalho habitual, ao menos durante algumas horas do dia. A devoção de muitos fiéis levava-os a dedicar as outras horas a práticas de piedade, o que por vezes fazia do domingo um dia em que não se trabalhava. Havia, porém, não poucos casos em que a devoção mesma ou a rudez de espírito induziam ao trabalho manual.

b) Do séc. VI em diante, a legislação eclesiástica se tornou mais rigorosa no assunto, baseando-se na distinção entre obras servis e obras liberais. Para se entender a evolução, tenha-se em vista o seguinte quadro histórico:

As invasões bárbaras na Europa acarretaram insegurança social e econômica para as populações dos territórios ocupados. Derrubado o Império Romano Ocidental (476), fazia-se sentir a falta de uma autoridade que garantisse os direitos dos cidadãos. Somente os grandes proprietários se podiam defender da vassalagem e do domínio alheio; os pequenos possuidores passaram então a confiar aos senhores mais poderosos seus bens e sua própria vida, em troca de proteção na insegurança geral. Teve assim início o regime senhorial e feudal da Idade Média: a maioria da população europeia foi reduzida à condição servil, tornando-se os homens vassalos ou servos da gleba.

Ora, sob o regime feudal, a maioria dos cristãos dedicava-se a trabalho braçal, nos campos ou nas oficinas, sem ser remunerada por salário. Por conseguinte, este trabalho braçal, “servil” (dos servos da gleba), é que passou a constituir o eventual empecilho para que participassem do culto divino aos domingos. De onde se entende que Concílios regionais e leis dos reis cristãos, merovíngios e carolíngios, se tenham posto a condenar tal trabalho braçal no Dia do Senhor. A obra assim proibida não podia ser definida pela circunstância de ser assalariada (pois não o era), nem pela intenção, lucrativa ou meramente recreativa, de quem a executava (pois era trabalho não-livre, servil), mas só podia ser designada pela sua natureza intrínseca, isto é, pelo fato de ser o trabalho corporal ou mecânico que os servos da gleba executavam.

O espírito, porém, que animava as novas disposições, era o mesmo que outrora; não se condenava o trabalho braçal no domingo porque em si fosse mau, mas unicamente porque uma circunstância contingente – o regime social da época – o tornava empecilho eventual para a frequentação do culto divino. Deve-se mesmo dizer: se os servos da gleba fossem profissionais não da agricultura, mas de uma carreira liberal (medicina, pedagogia), não há dúvida de que também a medicina, a pedagogia (hoje consideradas lícitas no domingo) teriam sido proibidas no Dia do Senhor, porque, à semelhança do trabalho manual, impediriam o culto divino.

Destarte é que se formou o conceito, ainda vigente, de “obras servis proibidas no domingo”. Sobre esse fundo de História, hoje em dia se costuma dizer: no domingo são vedadas as obras servis (trabalhos executados principalmente por atividade do corpo: lavrar, semear, ceifar, construir, costurar…) e permitidos os afazeres liberais (executados principalmente pelas faculdades do espírito: ler, escrever, desenhar, cantar, tocar órgão, dar aula, etc.).

Tal distinção, porém, não leva em conta a intenção de quem age: deseja ganhar dinheiro ou visa unicamente recrear-se? É, portanto, distinção demasiado artificial, que não corresponde ao espírito da lei do repouso dominical; esta foi concebida para libertar o homem da absorção que o ganha-pão cotidiano acarreta. Ora, se no domingo se permite um trabalho que vise o lucro (dar aula, por exemplo), atendendo-se tão somente ao fato de não ser trabalho braçal, não se atinge a finalidade da lei (permite-se que o homem seja “servilizado”); e, se se proíbe determinado afazer recreativo pelo simples fato de exigir atividade do corpo, de certo impede-se o descanso mental do individuo e a elevação do seu espírito a Deus (não se permite que o homem seja libertado).

Por isto, os moralistas contemporâneos tendem mais e mais a se agrupar em torno da seguinte doutrina: o Direito Canônico [de 1917] prescreve, sim, a abstenção de obras servis no domingo (can. 1248); não indica, porém, o que torna tal obra “servil”. Ao estipular este critério, atenda, portanto, o moralista não tanto à participação do corpo e à do espírito que o trabalho exija, mas, primariamente, à intenção de quem age. Sobre esta base podem-se estabelecer as seguintes normas para a observância do domingo:

1. São certamente ilícitos os pesados trabalhos agrícolas e mecânicos. A Tradição da Igreja sempre se lhes opôs porque inevitavelmente materializam o homem. Também ilícitos, por prescrição explícita do cân. 1639, são os atos judiciários (as sessões de Tribunais, o pronunciamento de sentenças etc.).

2. São certamente lícitos os trabalhos que pertencem ao ritmo normal da sociedade: a necessária limpeza doméstica, a cozinha, o tráfego, a venda de certos comestíveis etc.

3. Podem-se tranquilamente considerar como lícitos certos trabalhos braçais não pesados (por exemplo, costurar, tratar de aves, cuidar de plantas), realizados sem intenção lucrativa, mas unicamente a título de caridade ou recreio, ou seja, para se fazer coisa diferente do que se faz durante a semana. Para quem trabalha seis dias num escritório ou numa fábrica, tais obras são o meio adequado para distender os nervos e proporcionar ao cristão a libertação da mente visada pelo Dia do Senhor.

4. Quanto aos trabalhos preponderantemente intelectuais (tratar de contabilidade, escrever correspondência comercial…) executados com fim lucrativo, a rigor não poderiam ser tachados de ilícitos no domingo, já que o trabalho lícito e o ilícito foram, durante séculos, classificados unicamente de acordo com a qualidade da obra, sem se ponderar a intenção do agente. Todavia, justamente neste ponto é preciso que se excite a consciência dos fiéis, a fim de que, guardando a letra, não violem o espírito da lei do domingo; é preciso que neste dia os cristãos criem para si um ambiente e um horário diferentes daqueles que as jornadas de semana oferecem.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 1 – jan/1958
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