João Batista era o Profeta Elias reencarnado?

– “Queira explicar o texto do Evangelho de São Mateus: ‘E se me quereis dar crédito, ele (=João Batista) é Elias que há de vir’ (Mateus 11,14), e dizer algo sobre a reencarnação”.

1) Abordemos primeiramente o texto citado. Como refere a Sagrada Escritura em 2Reis 2,11, o profeta Elias, do Antigo Testamento, não morreu, mas foi arrebatado vivo aos céus.

Em consequência, os judeus julgavam que havia de voltar à terra nos tempos do Messias, a fim de preparar os homens a receber o Salvador; o profeta Malaquias parecia corroborar essa esperança, anunciando em nome de Deus:

– “Eis que Eu vos envio Elias, o profeta, antes que venha o dia do Senhor, grande e terrível. Reconduzirá os corações dos pais aos filhos e os corações dos filhos aos pais” (Malaquias 4,5).

Ora, é a esta expectativa que Jesus alude no texto de São Mateus, acima transcrito. Diz que o Precursor encarregado de preparar as vias do Messias já está presente (nos tempos de Cristo), pois é João Batista mesmo; este, de fato, podia ser tido como “novo Elias”, pois possuía a têmpera forte e destemida, as qualidades características de Elias. Note-se, porém, que tinha apenas os predicados para desempenhar missão semelhante à de Elias; não era “Elias em pessoa”, como João mesmo declarou formalmente quando o interrogaram a esse respeito:

– “Não sou Elias” (João 1,21).

Era porque João reproduzia as qualidades e a tarefa de Elias que Jesus, depois da morte do Batista, podia afirmar categoricamente:

– “Eu vo-lo digo: Elias já veio e não o reconheceram, mas o trataram segundo seus caprichos. O Filho do homem terá por sua vez que sofrer por parte deles” (Mateus 17,12).

Como se vê, seria forçada qualquer interpretação que quisesse deduzir dos textos evangélicos a reencarnação de Elias na figura de João Batista.

De resto, Elias não se podia reencarnar porque não morreu, não se “desencarnou”. A Escritura apenas afirma que apareceu no mundo imediatamente antes da vinda do Messias alguém que, na sua época, preencheu um papel corajoso, semelhante ao que Elias exerceu no Antigo Testamento (é neste sentido que se deve entender a profecia de Malaquias; não se creia que Elias certamente voltará no fim do mundo).

Quanto ao fato de que os judeus, em seus comentários bíblicos, julgavam que Elias como tal havia de voltar (não propriamente reencarnar-se), não nos fornece base para concluir que professavam a doutrina da reencarnação (esta é coisa bem diferente daquela crença).

2) Não teria melhor êxito o recurso a outros textos da Escritura, como são as palavras de Jesus a Nicodemos em João 3,3:

– “Em verdade, em verdade te digo: se alguém não nascer ‘do alto’ (tradução menos autorizada: ‘de novo’), não poderá ver o Reino de Deus”.

O contexto mostra bem que Jesus fala de um renascimento a partir da água e do Espírito, não a partir da carne ou do seio materno (hipótese esta que já Nicodemos tinha por absurda; cf. João 3,4); Jesus fala de vida nova no Espírito Santo, não de vida natural, fisiológica:

– “O que nasceu da carne, é carne; o que nasceu do Espírito, é espírito” (João 3,6; leia-se por inteiro o trecho João 3,4-7).

Positivamente, Jesus tem em vista o batismo que torna o homem “filho de Deus” e por isto, desde cedo na tradição cristã, foi chamado “sacramento da regeneração”.

Costuma-se citar também o episódio de João 9,1-3:

– “Ao passar, viu (Jesus) um homem cego de nascença. Os discípulos lhe perguntaram então: ‘Mestre, quem pecou: ele ou seus pais, para que nascesse cego?’ Jesus respondeu: ‘Nem ele pecou nem seus pais, mas (isto se dá) para que as obras de Deus se manifestem nele'”.

Não será este um testemunho da crença judaica na reencarnação? Vejamos a mentalidade que inspira a cena descrita:

Os judeus julgavam que toda doença ou enfermidade era castigo devido a um pecado (haja vista, por exemplo, a argumentação dos amigos de Jó no livro do mesmo nome). Por isto, ao se defrontarem com alguém que era cego desde o nascimento, os Apóstolos se viam embaraçados para explicar o caso. Teria o cego mesmo pecado, e — note-se bem — pecado antes de nascer? A hipótese lhes devia parecer absurda, pois a tradição judaica, longe de professar a reencarnação, bem sabia que as crianças nascem sem ter cometido previamente nem bem nem mal, como refere São Paulo em Romanos 9,11. Então teriam seus pais pecado, induzindo sobre ele o castigo? Mas também esta suposição encontrava obstáculo por parte do princípio da responsabilidade individual estabelecido por Deus em Ezequiel 18,2-4; Jeremias 31,29-30; e Deuteronômio 24,16.

Feitas estas conjecturas, os Apóstolos espontaneamente as propuseram ao Mestre, num bom senso quase infantil, sem se dar ao trabalho de procurar terceira solução para o caso; o dilema era certamente simplório demais – explicável, porém, em vista da lógica rudimentar daqueles pescadores pouco afeitos ao raciocínio erudito e destituídos, naquela hora, da intenção de filosofar. Jesus respondeu sem abordar o aspecto especulativo da questão, elucidando diretamente o caso concreto que lhe apresentavam: nem uma hipótese nem outra – como era evidente – mas um desígnio superior de Deus.

A Bíblia Sagrada é diretamente contrária à reencarnação, quando, por exemplo, afirma:

– “Foi estabelecido, para os homens, morrer uma só vez, depois do que há o julgamento” (Hebreus 9,27).

Ou quando refere as palavras de Jesus ao bom ladrão:

– “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lucas 23,43).

Os textos muito enfáticos em que Cristo e os Apóstolos anunciam a ressurreição dos mortos e o inferno, são outros tantos testemunhos que se opõem à reencarnação; tenham-se em vista Mateus 5,22; 13,50; 22,23-33; Marcos 3,29; 9,43-48; João 5,28-29; 6,54; 1Coríntios 15,13-19.

3. Há, porém, quem não reconheça a autoridade da Bíblia e tente afirmar a tese da reencarnação apelando, por exemplo, para os seguintes argumentos :

a) A desigualdade das sortes humanas: Alguns indivíduos têm prendas naturais (inteligência, força de vontade, saúde…) mais ricas, outros menos [ricas]; uns parecem levar vida feliz, outros não, etc. Perguntam então: não seria isso consequência de uma existência anterior à atual, na qual os homens tenham granjeado os méritos ou deméritos que lhes acarretaram o currículo da vida presente?

Em resposta, far-se-á observar:

– Deus, criando liberalmente como criou, não tinha obrigação de fazer todas as criaturas humanas iguais. As criaturas não-racionais que cercam o homem, longe de apresentar monotonia ou uniformidade, falam-nos da maravilhosa variedade de perfeições espalhadas em escala muito matizada; não há sequer duas folhas ou duas flores absolutamente iguais uma à outra. Assim também Deus quis fazer os homens, cada qual dotado de sua individualidade própria, faceta única da infinita Perfeição Divina;

– O Criador, além de constituir os homens em sua individualidade singular, dotou-os de livre arbítrio, faculdade mediante a qual cada um abraça consciente e voluntariamente o seu Fim Supremo. Havendo dado esta prerrogativa para a maior glória do homem (que assim ultrapassa a condição de máquina), o Criador não a deforma nem mutila. Acontece, porém, que, usando de tal prerrogativa, os indivíduos podem seguir vias erradas. Ora, isto lhes acarreta detrimento de ordem não somente moral, mas também física, pois o pecado não apenas ofende a Deus, mas fere a própria natureza humana, desregrando-a e provocando reação, sanção da parte desta. Pois bem, já que o primeiro homem, Adão, pecou na qualidade de Pai do gênero humano, entende-se que todo filho de Adão, herdando a sua natureza, herde também a miséria física e a desordem moral.

São estes dois fatores que explicam que, sem ter vivido anteriormente na carne, todo homem nasça nesta terra com suas características próprias (possuindo qualidades e também deficiências, que seus vizinhos não têm na mesma proporção; toda criatura, pelo fato mesmo de ser criatura, é falível e deficiente), nasça também sujeito ao sofrimento e à dor.

É certo, porém, que no juízo final Deus levará em conta as possibilidades e o grau de responsabilidade de cada um, longe de aplicar a todos o mesmo critério. Além disto, o Senhor dá a todos os homens – absolutamente a todos – os meios necessários para que cada qual, dentro da sua capacidade, volte ao Criador e consiga a felicidade eterna. O testemunho mais eloquente dessa benevolência divina é a figura de Cristo crucificado em favor de todo o gênero humano; essa imagem atesta quanto o Salvador leva a sério a sorte eterna dos homens. O sofrimento e a morte entraram no mundo em consequência do pecado, ou seja, do abuso que o homem fez da sua liberdade. Sobre este fundo, porém, o Criador se evidencia justo e, mais ainda, misericordioso. Para reivindicar estes atributos de Deus, não é preciso abandonar a doutrina cristã da ressurreição da carne para seguir a tese da reencarnação; muito ao contrário… De resto, note-se que o sofrimento não é enigma nem espantalho para o cristão, depois que a segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez homem e o abraçou; vem a ser instrumento de purificação e redenção para o discípulo que abrace generosamente a sua cruz com Cristo.

b) A crença no inferno – dizem – é contrária ao conceito de um Deus bom e perfeito: O inferno só pode parecer absurdo a quem não tenha noção exata do que ele é. Os esclarecimentos respectivos se encontram [em outros artigos aqui publicados].

4. Contra a doutrina da reencarnação podem-se outrossim mover argumentos de ordem filosófica, derivados estritamente da sã razão:

a) Não temos prova positiva de tal fenômeno. Carecemos, em absoluto, de qualquer reminiscência de vida anteriormente passada na terra.

Ora, para quem ignora o motivo pelo qual é punido (porque se reencarnou), vã é a sanção (a reencarnação); a pena só se torna eficaz ou medicinal para quem saiba porque lhe é infligida.

E não se diga que certas pessoas em estado de transe contam acontecimentos “verificados em reencarnações anteriores”. Hoje está sobejamente comprovado que tais narrativas correspondem a impressões e noticias colhidas por tais pessoas nesta vida mesma; a volta aos tempos passados e a antecipação do futuro se explicam perfeitamente por erupção e combinação de noções contidas no subconsciente e adquiridas em idade anterior. Habitualmente fica-nos na consciência apenas uma-oitava parte (1/8) dos conhecimentos que possuímos; por um choque ou traumatismo psíquico qualquer, quanta novidade não podemos manifestar aos que só nos conhecem em nosso estado de lucidez normal!…

Veja-se, a propósito, o famoso livro publicado depois do “caso Bridey Murphy”: “A Scientific Report on ‘The Search for Bridey Murphy'”, editado por Milton V. Kline (The Julian Press, Inc., Nova Iorque-NY, 1956).

b) A teoria da reencarnação pressupõe e afirma uma atitude religiosa falsa, ou melhor, uma atitude que simplesmente não é religiosa.

Com efeito, ela atribui ao homem o poder de se remir, de se tornar perfeito por seus esforços, fazendo praticamente abstração do auxilio divino. Pouco ou nada entra em linha de conta de um reencarnacionista a autêntica noção de Deus, que é a de um Pai bondoso e providente, o qual deu existência aos homens, quis compartilhar e consagrar o sofrimento e a morte do homem, e sem o qual a criatura nada absolutamente pode.

Não admira, pois, que a reencarnação tenha sido outrora – e ainda hoje seja – professada dentro de uma ideologia panteísta ou monista; assim, as crenças hindus, que inspiram muitos reencarnacionistas, professam a distinção entre o Divino e o humano, entre o Infinito e o finito, ensinando que a Divindade (a qual nesses sistemas é concebida como substância impessoal, neutra, “a Mente Cósmica”) “se realiza” no homem, vai “tomando consciência de si” no homem, à medida que este evolui ou se aperfeiçoa. Esta tese parece explicar que a criatura possa por si chegar à união com a Divindade; todavia, constitui insustentável aberração não somente religiosa, mas também filosófica, pois coloca o finito e o Infinito na mesma linha, no mesmo plano: Deus, que por definição é o Ilimitado, o qual tudo explica e por nada é explicado, não pode vir a identificar-se com o finito e contingente, nem mesmo transitoriamente; há um hiato intransponível entre o homem e Deus, hiato tal que o homem só se aproxima de Deus caso o Todo-Poderoso se digne tomar a iniciativa de chamar e amparar continuamente a sua criatura.

Na base destas considerações, pode-se afirmar que a doutrina da reencarnação apresenta, sim, algo de sedutor, dado o misticismo e a sede de pureza que a inspira; trata-se, porém, de um misticismo viciado na raiz por flagrante incoerência lógica e por uma ponta de soberba do homem, que deseja emancipar-se de um Deus Transcendente e Pessoal.

Veja-se a respeito a brochura de Fr. Boaventura Kloppenburg, “Por que não admito a Reencarnação” (ed. Vozes, Caixa Postal 23, Petrópolis-RJ).

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 3:1957 – jul/1957.
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