Estudos em Liturgia Romana – Parte II

Por Rafael Vitola Brodbeck

TEOLOGIA EUCARÍSTICA

O sacramento da Eucaristia é o ápice da vida do crente. Pela presença do Senhor Jesus, real e vivo, nesse sacramento, a graça de Deus, manifestada sobretudo na morte e ressurreição de Seu Filho unigênito (cf. Rm 5,8-11), se torna sensível aos fiéis e é celebrada pela Igreja, quando faz presente, pelo Espírito Santo, o único sacrifício de Cristo (cf. Hb 10,11-12) realizado no madeiro. A mesa da Eucaristia, o Calvário que é renovado pelo altar, reúne os cristãos locais e do mundo inteiro para, real e espiritualmente, oferecerem sacríficio de louvor (cf. Ef 5,1-2) e assisitirem o Cristo ressuscitado, que, por Seu corpo glorioso, não é preso a noção espaço-temporal, e, por essa razão “é o mesmo ontem, e hoje, e eternamente” (Hb 13,8), tornar presente Sua entrega máxima, para expiação dos pecados da Igreja, Povo de Deus.

A Eucaristia, cujo significado vem do grego, e quer dizer “ação de graças”, possui inúmeros aspectos teológicos e de piedade a serem analisados. Antes de tudo, ela é a comemoração da morte de Jesus, na cruz (cf. Jo 19,30), e de Sua ressurreição gloriosa (cf. Mc 16,1-6). Jesus, ao instituir a celebração eucarística, diz “fazei isso em memória de mim” (Lc 22,19; I Co 11,24). Contudo, essa memória (gr. anamnesis), em sua raiz lingüística, não significa o mesmo “memória” usado nas línguas latinas. Pode ser traduzido, como se falou na parte propedêutica desse estudo, como “recordar tornando presente”. Por isso, essa comemoração é atual, pois o sacrifício é renovado, é tornando presente. Não se trata de um novo sacrifício, nem de um complemento do sacrifício anterior, pois a Bíblia afirma que Jesus se entregou de uma só vez (cf. Hb 10, 12), e essa entrega foi suficiente para nos merecer a justificação (cf. Tg 3,7; Rm 3,24; 5,8-9), segundo a nossa fé (cf. Rm 1,17; Hb 10,38). É o antigo, o único sacrifício, cruento, que se realiza aos olhos do crente atual, visto que Deus é o Senhor do tempo (cf. Gn 21,2; Sl 31,15/heb). “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor…” (I Co 11,26).

A Eucaristia é, ainda, o testemunho da unidade dos cristãos. Por isso é chamada de comunhão (gr. koinonia). Reunidos em um mesmo lugar, eles partem o pão (cf. At 2,42), ou seja, reconhecem que o irmão, lavado por Jesus, também deve participar da Ceia Santíssima. Por isso, Jesus exorta ao cumprimento da disciplina espiritual que ordena que o participante do altar deva primeiro se reconciliar com o irmão antes de comungar do sacrifício (cf. Mt 5,23-24). Também o apóstolo Paulo alerta sobre algo semelhante, e ainda abrange toda a sorte de pecados, que devem se evitados afim de que possamos participar dignamente da Eucaristia. Uma vez que somos um só Corpo Místico (cf. I Co 12), não devemos atentar contra a nossa saúde espiritual, pois afetamos a saúde de todo o corpo. Assim, São Paulo lembra de não comungarmos da Ceia em estado de pecado: “Portanto, qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão, e beba deste cálice.” (I Co 11,27-28). Sem a graça de Deus nos perdoando, não podemos participar dignamente da Eucaristia.

A celebração tem também o seu aspecto escatológico, uma vez que celebramos “… até que venha” (I Co 11,26) o Senhor Jesus. É na celebração da morte de Cristo que encontramos motivação para estarmos santos, e nos abstermos de tudo o que procede do mal (cf. I Ts 5,22). Na Ceia, prefiguramos o céu, e mesmo o Reino que há de vir, como que num banquete celeste com o Cordeiro e todos os salvos (cf. Mt 8,11; 22,1-14; Mc 14,25; Lc 13,29; 22,17-18.30). A própria liturgia eucarística nos lembra esse pedido para a parusia do Senhor. Nas diversas orações das liturgias ocidental e orientais, a menção à característica escatológica da celebração sacramental é marcante. É o Corpo do Senhor que nos dá forças para esperarmos Sua Volta Gloriosa, para arrebatar os crentes (cf. I Ts 4,15-17), e para clamarmos: Maranata! “Ora, vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20).

Também é na Liturgia Eucarística que testemunhamos ao mundo nossa adesão a Cristo, nosso reconhecimento de Seu senhorio (cf. Rm 10,9) em nossa vida. Nesse testemunho, louvamos ao Pai, com ação de graças (de onde o nome grego eucharistia), sobretudo pelo motivo pelo qual celebramos o sacramento, isto é, pela salvação advinda da morte e ressurreição de Cristo, mas também por todas as bênção recebidas, espirituais e materiais. A Eucaristia é o alimento dos crentes (cf. Jo 6,50-51).

 

“Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos. Porque isto é o meu sangue, o sangue o Novo Testamento, que é derramado por muitos, para a remissão dos pecados.” (Mt 25,26-28)

 

Destacamos alguns termos que são usados na teologia clássica para o estudo da dogmática sacramental. Existem a matéria e a forma. Na celebração da Eucaristia, a matéria são as espécies de pão e vinho, enquanto a forma são as palavras da instituição da Ceia. Para a validade, se requer ainda a intenção de celebrar (mesmo que não o sacerdote não creia, ele precisa querer fazer o que a Igreja Católica faz, e isso é demonstrado quando do seguimento das rubricas, por exemplo), e o poder (gr. dynamis) carismático dado ao celebrante (ou seja, deve ser um sacerdote validamente ordenado – católico romano, ortodoxo, vétero-católico, jansenista ou outro cismático que mantenha as Ordens válidas).

 

São Tomás de Aquino chamou a mudança das substâncias de pão e vinho em Corpo e Sangue do Senhor, de transubstanciação. A partir de estudos de teologia patrística, sobretudo Santo Agostinho, Santo Ambrósio e São João Crisóstomo, chegou à conclusão que Cristo se fazia realmente presente na Eucaristia, e que as espécies de pão e vinho se transformavam, em sua substância, em verdadeira Carne e verdadeira Bebida do Senhor.

 

O Catecismo qualifica o sacrifício eucarístico como ação de graças, memorial e presença.

 

Ação de graças pois é reconhecimento do louvor e da glória de Deus. Sob esse aspecto, unimo-nos à multidão dos anjos e aos santos do céu, tornando nossas liturgias um só ato de adoração. É sobretudo dirigida ao Pai.

 

Como memorial, tornamos presente o sacrifício que nos liberta do pecado. “A Eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, a atualização e a oferta sacramental do seu único sacrifício na liturgia da Igreja, que é o corpo dele.” (Cat. 1362)

 

Ensina o Concílio Ecumênico de Trento:

 

“[Cristo] nosso Deus e Senhor ofereceu-se a si mesmo a Deus Pai uma vez por todas, morrendo como intercessor sobre o altar da cruz, a fim de realizar por eles (os homens) uma redenção eterna. Todavia, como a sua morte não devia pôr fim ao sacerdócio (cf. Hb 7,24.27), na Última Ceia, ‘na noite em que foi entregue’ (I Co 11,13), quis deixar à Igreja, sua Esposa muito amada, um sacrifício visível (como o reclama a natureza humana) em que seria re-presentado (feito presente) o sacrifício cruento que ia realizar-se uma vez por todas uma única vez na cruz, sacrifício este cuja memória haveria de perpetuar-se até o fim dos séculos (I Co 11,23) e cuja virtude salutar haveria de aplicar-se à redenção dos pecados que cometemos cada dia.” (DS 1740)

 

“Neste divino sacrifício que se realiza na missa, este mesmo Cristo, que se ofereceu a si mesmo uma vez de maneira cruenta no altar da cruz, está contido e é imolado de maneira incruenta.” (DS 1743)

 

É a Missa também uma presença. Mais do que a presença espiritual de Cristo, que, por sua promessa, se dá todas as vezes que dois ou mais se reúnem em Seu Nome. Mais do que a presença simbólica nas espécies eucarísticas, como pretendem os batistas e pentecostais clássicos. Mais do que a presença real apenas do poder de Cristo nos elementos, como ensinou, erroneamente, Calvino. Mais do que a coexistência entre pão, vinho, Corpo e Sangue, numa consubstanciação de forte tradição luterana.

 

A presença de Cristo na Eucaristia é real, pois ela é a essência do Sacramento do Altar. Para haver um verdadeiro sacrifício, deve existir uma verdadeira vítima. Essa vítima, tornada presente, é Cristo. Um sacrifício único se torna novamente presente. E Jesus se torna novamente presente, também. Não um novo sacrifício, como também não é um outro Jesus Cristo que se oferece. “(…) se torna novamente presente a vitória e o triunfo de Sua morte.” (Concílio Ecumênico de Trento, Sessão XIII, Decreto “De Ss. Eucharistia”, 5)

 

“Pois aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora se ofereceu na Cruz.” (Concílio Ecumênico de Trento, Sessão XXII, Decreto “De Ss. Missae  Sacrificio”, 2)

 

FRUTOS DA LITURGIA CORRETAMENTE CELEBRADA

 

Uma vez que “a Liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força” (Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição “Sacrosanctum Concilium”, 10), é urgente que percebamos seus frutos de uma maneira adequada.

 

Se a liturgia une céu e terra, e, na celebração da Santa Missa, é meio único e eficiente para converter as ofertas na presença real de Jesus Cristo, recordando o Seu sacrifício, temos daí que grandes frutos espirituais nos são dados.

 

Podemos elencá-los, a partir dos pedidos feitos na Oração Eucarística, segundo o rito romano:

 

·   Deus nos torna dignos de estar em Sua presença e O servir;

·   Somos reunidos pelo Espírito Santo num só Corpo, a Una e Santa Igreja Católica e Apostólica, que cresce na caridade, com o papa, com os bispos e com todos os ministros do Povo de Deus;

·   O Senhor se lembra dos fiéis defuntos pelos quais celebramos Missa;

·   Ele tem piedade de todos nós e nos dá participar da vida eterna, com a Virgem Maria, Mãe de Deus, com os santos apóstolos e todos os que neste mundo O serviram.

 

A Eucaristia nos prepara à santidade, e, mais do que mera recompensa aos santos, como queriam os hereges jansenistas, é um verdadeiro remédio contra nossos pecados. Ao mesmo tempo em que devemos estar purificados de todos os pecados mortais ao nos aproximarmos do Corpo do Senhor, sabemos que, ao comungarmos d´Ele, recebemos o perdão das faltas veniais e como que uma vacina contra posteriores quedas.

 

O sacramento desperta em nós o gosto, por vezes sensível, das consolações divinas, e nos faz almejar sempre a santidade.

 

Assim se expressa Salomão em seus cânticos, numa imagem, já preferida pelos Padres, de Cristo dirigindo palavras à Sua Esposa, a Santa Igreja Católica:

 

“Como és, bela e graciosa, ó meu amor, ó minhas delícias! Teu porte assemelha-se ao da palmeira, de que teus dois seios são os cachos. Vou subir à palmeira, disse eu comigo mesmo, e colherei os seus frutos. Sejam-me os teus seios como os cachos da vinha. E o perfume de tua boca como o odor das maçãs; teus beijos são como um vinho delicioso que corre para o bem-amado, umedecendo-lhe os lábios na hora do sono.” (Ct 7,7-10)

 

O Senhor Jesus se alegra e mostra todo o Seu amor pela Amada, a Igreja, que, reunida no céu e na terra, celebra Sua adoração, renovando o sacrifício que nos reconcilia consigo e com Seu Pai celeste, no poder do Espírito Santo.

 

Respondendo Seu apelo, a assembléia dos santos do céu, em sua contínua adoração, e a assembléia dos santos da terra, reunidos na Santa Missa, deve celebrar de forma a refletir o espírito da liturgia: sacrifício verdadeiro, comunhão dos santos, união mística entre Nosso Senhor Jesus Cristo e a Una e Santa Igreja Católica e Apostólica, resposta de amor e fidelidade a Deus e Suas autoridade na terra constituídas.

 

Para isso, o autor do Cântico dos Cânticos descreve a resposta de sua amada, a Sulamita, tipo da Igreja:

 

“Eu sou para o meu amado o objeto de seus desejos. Vem, meu bem-amado, saiamos ao campo, passemos a noite nos pomares; pela manhã iremos às vinhas, para ver se a vinha lançou rebentos, se as suas flores se abrem, se as romãzeiras estão em flor. Ali te darei as minhas carícias. As mandrágoras exalam o seu perfume; temos à nossa porta frutos excelentes, novos e velhos que guardei para ti, meu bem-amado.” (Ct 7,11-14)

 

A Missa é o lugar das delícias, onde a Igreja e Cristo deleitam-se, manifestando o amor um para com o outro, de forma plena e pura. Eis a razão da imagem matrimonial. Nela, a Una e Santa Igreja Católica e Apostólica, une-se, pela comunhão dos santos, totalmente. E unida, por sua vez, une-se ao Seu Esposo, Nosso Senhor Jesus Cristo, para O adorar, oferecê-Lo como sacrifício único tornado novamente presente (nesse aspecto, Cristo é vítima), fazer-se Cristo na pessoa do padre (nesse aspecto, Cristo é sacerdote) e, dizemos mais, para O amar, como no cântico.

 

Por essa razão, se requer que o culto, dentro do qual a Eucaristia é celebrada, seja perfeita imagem da solene liturgia celeste. Cada qual deve ser imbuído de um genuíno espírito de adoração. Todos devem ter plena consciência de que o que se está celebrando não é uma simples reunião de oração e louvor, mas a adoração pessoal ao Deus vivo, mediante a mais perfeita forma de cultuá-Lo: o sacrifício de Seu Filho, que nos reconcilia com Ele. Os celebrantes da liturgia (sacerdote, diácono, assistência) não devem apenas recitar palavras, nem se portar como se estivessem numa importante reunião de oração. A Missa não é uma reunião de oração. Para isso, basta um grupo de pessoas reunidos e rezando, sem a necessidade da presença de uma pessoa ordenada. A Missa é um sacrifício. E tudo deve para ele apontar. “(…) a Liturgia cada dia edifica em templo santo ao Senhor, em tabernáculo de Deus o Espírito aqueles que estão dentro dela, até a medida da idade da plenitude de Cristo, ao mesmo tempo admiravelmente lhes robustece as forças para que preguem Cristo.” (Concílio Ecumênico Vaticano II; Sacrosanctum Concilium, 2)

 

Se as pessoas, inclusive católicas praticantes, perderam a noção sacrificial da Missa, foi pela não observância das rubricas prescritas nos livros litúrgicos. Cada gesto, cada ação, cada palavra, cada veste, cada vaso, cada oração, tudo tem seu significado e remete ao sacrifício que se vai oferecer. Tudo simboliza a união entre a Igreja da terra e a Igreja do céu, que juntas formam a única Esposa do Cordeiro. Logo, se celebramos a liturgia como ela deve ser feita, além dos dons invisíveis de graça e santidade serem aumentados (pois, nos rendemos mais à ação do Espírito pela contemplação do mysterium fidei, e, via de conseqüência, captamos melhor o fruto do sacrifício, isto é, a nossa santificação cotidiana), percebemos uma variedade enorme de sinais à Igreja. Entre eles, destaca-se, sobretudo, o aumento das vocações sacerdotais. Isso é facilmente demonstrado quando constatamos o número de ordenações diaconais e presbiterais dentro das dioceses e congregações notadamente reconhecidas pela sua ortodoxia litúrgica e doutrinária. Verbi gratia, a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, a Diocese de Roma, as Igrejas Orientais, os Legionários de Cristo, os padres da prelazia Opus Dei, a Fraternidade Sacerdotal São Pedro – dedicada à celebração da missa segundo o Missal Romano de 1962, o chamado Ordo Tridentino -, a recentemente erigida Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney, o Instituto Cristo Rei Sacerdote Soberano.

 

A Liturgia da Missa reflete a liturgia do céu. A Liturgia da Missa é um sacrifício verdadeiro, não uma mera dramatização espiritual do mesmo. A  Liturgia da Missa é um memorial de como fomos salvos pela Paixão de Cristo. A Liturgia da Missa é a presença real do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor, dignos de toda adoração.

 

É evidente, pois, que os fiéis tenham bem presentes essas idéias, para melhor receber as graças próprias da Missa. Mesmo não comungando, a Missa em si nos traz infinitos e gratuitos méritos do Coração de Deus. Por isso, o Missal Romano, e os livros litúrgicos dos diversos ritos ocidentais (ambrosiano, galicano, bracarense, mozarábico) e orientais (bizantino, maronita, copta, siríaco, armênio, caldaico) prescrevem determinados atos, orações, gestos, vasos e paramentos. Uma oração litúrgica deve ser rezada de certa maneira, não por obediência apenas – muito embora, ela seja uma grande virtude, que nos conduz à santidade. A fidelidade aos ritos litúrgicos criam o aludido ambiente de adoração, nos remete à liturgia celeste, e nos aponta para o sacrifício que ocorre no novo Gólgota, o altar da igreja – parte mais importante da arquitetura eclesial.

 

Devemos, por humilde obediência ao Santo Padre e a nossas tradições litúrgicas próprias, seguir, à risca, cada rubrica do Missal. É fazendo cada oração contida no próprio do dia ou ditada pela liturgia, executando determinado ato ou gesto, usando certos vasos e paramentando-se conforme as normas canônicas, que se sobressai o que, essencialmente, é a Santa Missa. As normas do rito romano servem para, quando as seguimos fielmente, conforme nos ordena o Concílio Vaticano II, na sua Constituição Sacrosanctum Concilium, melhor apresentarmos ao povo de Deus que o que está ocorrendo na Missa não é uma narração da Santa Ceia, mas a própria; não uma representação do Calvário, mas o próprio, tornado presente! Temos de seguir as rubricas!

 

Esse seguimento dá mais frutos além dos mencionados. Certo que qualquer Missa, mesmo celebrada de maneira heterodoxa – quando válida, apenas -, produz frutos na alma disposta a entrar em comunhão com Deus. Porém, a Missa correta, isto é, obediente às rubricas do Missal Romano (ou do livro correspondente em outros ritos), além de multiplicar esse frutos, digamos, ordinários, prepara o espírito até mesmo do rebelde para se colocar diante do sagrado. Pela beleza dos atos litúrgicos, muitos já renderam seus corações a Cristo, confessando, devotadamente, seus pecados. Isso porque perceberam não estarem numa simples reunião de oração ou num culto de louvor, mas diante da real entrega de Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz. Reconhecendo que, diante de seus olhos, Jesus está se imolando, e tornando as espécies eucarísticas Seu Corpo e Seu Sangue, une o céu e a terra, os anjos e os homens, e realiza a perfeita communio sanctorum, o pecador só tem a gritar, do fundo de sua alma: Kyrie, eleison! Dominus, miserere nobis! Senhor, tende piedade de nós!

 

Já no Antigo Testamento, Deus dava ordens claras de como realizar o sacrifício: “Apresentarás o novilho diante da tenda do encontro. Aarão e seus filhos imporão as mãos sobre a cabeça do novilho. Degolarás o novilho diante do Senhor, na entrada da tenda do encontro. Tomarás do sangue do novilho e, com teu dedo, aplicá-lo-ás nos chifres do altar. Em seguida, derramarás o resto do sangue na base do altar. Tomarás toda a gordura que envolve as entranhas , o lobo do fígado, os dois rins com a gordura que os envolve e os queimarás no altar. Mas a carne do novilho, seu couro e suas fezes, tu os queimarás fora do acampamento. É um sacrifício pelo pecado.” (Êx 29,10-14)

 

Esse ritual era um símbolo pedagógico do sacrifício perfeito que o Senhor Jesus realizaria, de uma vez por todas, na Cruz do Calvário. Cada ação tinha sua tipologia. “O culto que estes celebravam é, aliás, apenas a imagem, sombra das realidades celestiais.” (Hb 8,5)

 

Apresentar o novilho diante da tenda do encontro, por exemplo, simboliza Cristo, o Agnus Dei, que se apresenta diante de Deus. A tenda do encontro simbolizava, para os hebreus, a própria presença do Todo Poderoso. Logo, é o cordeiro indo à presença do Altíssimo.

 

O derramamento de sangue no altar é o preço que Jesus pagaria por nossos pecados, pois “o salário do pecado é a morte.” (Rm 6,23)

 

A carne sendo queimada fora do acampamento prenuncia que o Filho de Deus morreria além dos muros de Jerusalém. Nessa cena, o próprio Senhor é expulso da cidade onde o povo diz cultuá-Lo. Aceitando humildemente, Cristo institui a Sua Igreja Católica, responsável por preparar a Sua volta, quando, enfim, voltará a Jerusalém para reinar soberanamente (cf. Ap 22).

 

Muito mais, deveríamos, estar atentos aos ritos que nos ensinam a celebrar não um sacrifício provisório e simbólico, mas perene e eficaz. Se em Is 53, no Canto do Servo de Javé, vemos as condições e o sofrimento de Jesus, compreendemos que se trata de um sacrifício expiatório de nossas faltas. Uma simples contemplação desse sacrifício cruento, feito agora de modo incruento, já é suficiente para nos consternar a alma e provocar, pelo poder do Espírito Santo, genuíno arrependimento. Quanto mais, não a meditação no sacrifício, mas o próprio, a visualização da entrega total de Jesus, sobre nossos altares em todas as missas!

 

Esse segredo já o sabiam os santos. São Gregório Magno, o papa amante da liturgia romana, a ponto de reformar os cânticos da Missa e torná-la mais condizente com o sacrifício que se celebra. São Pio V, que, com sua Bula Quo Primum Tempore, protegeu a Missa dos ataques de seus inimigos. Ademais, nesse bula, se acha escrito: “Que certas rubricas bem fixadas sejam determinadas; os celebrantes deverão observá-las de maneira uniforme, a fim de que o povo não possa ficar chocado ou escandalizado por ritos novos ou diferentes”.

 

Outrossim, os santos russos, especialmente São Serafim de Sarov, tinham um amor muito grande pela celebração da liturgia (nesse caso, a de São João Crisóstomo, chamada bizantina). E outros santos, como Santo Ambrósio, criador da liturgia seguida na Catedral de Milão, e de um canto ritual especial, estavam imersos na noção de sacrifício que permeia toda a Missa corretamente celebrada.

 

Santo Agostinho foi seduzido pelos cânticos da Igreja Milanesa, o que colaborou em sua conversão. São Bento, patriarca do monaquismo ocidental, era apaixonado pelos ritos dos monges do deserto, e fez de sua Ordem, um baluarte da ortodoxia litúrgica, e grande guardião dos cantos gregorianos.

 

Muitos outros santos se poderia citar: Santa Clara, com  o episódio em que acompanhou a Santa Missa em visão mística; São Sava da Sérvia, com sua paixão pela construção de igrejas, fundação de mosteiros (incluindo o grande monastério sérvio, no Monte Atos, referência do monasticismo da Igreja Ortodoxa) e pelo zelo no pastoreio da recém-organizada Igreja autocefálica de seu país; São Bernardo de Claraval, reformador monástico cisterciense; São Pio de Pialtrecina, místico franciscano muito venerado no Brasil; São Leonardo de Porto-Maurício, autor da pérola “Tesouro Oculto”, em que revela todo seu amor pela Santa Missa; São Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei; São Pio X, o último papa canonizado.

 

A Missa nos conduz pelo caminho da santidade. Quando corretamente oferecido, o sacrifício conduz as almas ao desejo de entrar pela porta estreita e se tornarem santos de Deus.

 

Conta a História que o pequeno principado eslavo da Rus´ de Kiev (hoje, Ucrânia), querendo adotar uma religião nacional, tomou conhecimento dos ritos que eram celebrados em Constantinopla, pelo Patriarca, pelos Metropolitas, Bispos e sacerdotes. Voltando para Kiev, a fim de contar ao monarca Vladimir – mais tarde, São Vladimir – o que tinham visto, seus emissários descreveram que, na liturgia cristã, o céu descia à terra e a terra se elevava ao céu, e que não poderia haver melhor culto e religião mais verdadeira do que aquela na qual o próprio Deus se faz presente. Em vista disso, o monarca trouxe missionários para evangelizar e batizar as terras eslavas, em 988.

 

São os frutos da Missa, feita de maneira ortodoxa.

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