Vós dizeis que a Igreja Católica apostatou, que o Paganismo, como um tufão incontrolável, lhe penetrou todos os recantos, e, qual um carrasco impiedoso, não poupou nenhum dos seus membros.
A acusação é grave, e exige provas indiscutíveis. E que provas, senhores, me podereis apresentar?
Eu vos direi: alegareis o culto da Virgem Maria, o purgatório, a veneração das imagens e outras tantas doutrinas e práticas que o Protestantismo, no seu ódio incontido à Igreja Romana, repudiou. Ora, desde quando o repúdio do Protestantismo serve como prova de alguma coisa?
Direis que a Bíblia se opõe a essas doutrinas e práticas. Mas quem o disse? O Protestantismo? Então voltamos para o mesmo lugar, visto que não me serve o repúdio do vosso Protestantismo, assim como não vos servem as afirmações do meu Catolicismo. É tudo uma questão de interpretação.
Se disserdes, portanto, que tais coisas são contrárias às Escrituras, eu vos responderei que não são, e, se apontardes textos que, na vossa opinião, favorecem o que sustentais, vos direi que o vosso próprio entendimento vos traiu, e indicarei mil outras passagens a contrastar com o que pensais ser a verdade. Por vossa vez, certamente me acusareis de torcer miseravelmente a Palavra de Deus. O que restará, pois? Nada além de afirmações contra afirmações e interpretações contra interpretações. Tudo findará numa contenda inútil, dessas que embrutecem o espírito e ensoberbecem a inteligência, já tão inclinada à vaidade.
Não, senhores! Devemos partir de um ponto que nos seja pacífico, de uma premissa que todos admitamos. Somente assim saberemos com quem está a verdade e onde reside o erro.
Afirmais a paganização da Igreja, e eu não me incomodo em concedê-lo por um momento. A Igreja Católica apostatou? Seja.
Ora, se veio a apostatar, é porque, de fato, não era ainda apóstata. Quem diz apostasia diz a passagem de uma realidade para outra diametralmente oposta. O ato de apostatar exige uma condição prévia inteiramente incompatível com a apostasia. Assim como uma barra de ferro só se poderá esquentar se estiver fria, e um pedaço de madeira só se poderá partir se estiver inteiro, e um homem só poderá morrer se estiver vivo, também a Igreja Católica só poderia apostatar se estivesse em algum momento livre de apostasia; só poderia paganizar-se se não estivesse paganizada ainda.
Negareis o óbvio? Não o creio.
Muito bem. Mas se um dia a Igreja não foi apóstata, se não era paganizada em algum momento da História, segue-se que foi um dia legítima, autêntica, verdadeira. Se era verdadeira, era, por conseguinte, a Igreja de Jesus Cristo, pois não havia outra. Temos, então, que essa Igreja que chamais “apóstata”, foi em alguma época a verdadeira Igreja, pura nas suas doutrinas e práticas.
Negareis o óbvio? Não o creio.
Mas afirmais que ela apostatou. Como? A verdadeira Igreja poderia alguma vez apostatar?
É aqui, senhores, que a vossa afirmação desmorona, como um imenso castelo de areia firmado na flacidez do chão molhado da praia. Desde quando a Igreja poderia apostatar? Nunca! Jesus Cristo teria sido um mentiroso, um impostor, e mui justa seria a sentença condenatória exarada por Pôncio Pilatos e a acusação vinda da parte do Sinédrio. Mas isso ninguém jamais cogitou. Justo foi Pilatos? Justo o Sinédrio? Impossível!
As promessas neotestamentárias da assistência divina à Igreja, por outro lado, são muitas e claras. Ao dizer a Pedro do estabelecimento da Igreja, o Salvador garantiu que as portas do Inferno não prevaleceriam contra ela (cf. Mt. 16,18). Ora, se a Igreja depois disto apostatou, deixando de ser a verdadeira Igreja, segue-se que as portas do Inferno prevaleceram e Jesus foi um falso profeta…
Em outra ocasião, pouco antes de ascender, o Senhor disse aos apóstolos que ficaria com eles “até a consumação dos séculos” (Mateus 28,20). Mas o que seria desta presença sempre continuada, se o Paganismo depois invadisse a Igreja e a corrompesse até os seus fundamentos?
Sabendo da proximidade da sua ida para junto do Pai, Jesus falou do Espírito Santo: “Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco” (João 14,16; e ainda 14,26; 15,26). Mas onde, senhores, [estaria] a eficácia da atuação deste Paráclito se apostatasse a Igreja?
Ah, Galileu! Se a Igreja apostatou, não passaste de um traidor miserável, que nos ludibriou a todos! Prometeste que as portas do Inferno jamais prevaleceriam, mas a Igreja apostatou. Prometeste a tua assistência até o final dos séculos, mas a Igreja apostatou. Prometeste o Espírito da verdade para que ficasse eternamente, mas a Igreja apostatou. Ah! Serei ateu! Passarei para a irreligião! O Jesus em que acreditei mentiu para mim! Oh, judeus! Acolhei-me em vosso meio, abraçai-me em vossas sinagogas! O Messias não chegou! Jesus mentiu! Bendito sejas, Caifás, por teres denunciado um falso Cristo! Barrabás, bendita a tua libertação. Judas! Judas! Por que tiraste a própria vida? Morreste por um farsante! Nero! Nero! A humanidade te será eternamente grata por teres usado da tua força para exterminar os seguidores de um embusteiro que se dizia Redentor.
Não soubesse eu, senhores, que a assistência divina é infalível e que tem, pelos séculos, preservado a Igreja de todas as heresias, e estes brados de revolta soariam os mais justos e louváveis. Mas sei que a Igreja, um dia edificada sobre a Rocha, jamais renegou os ensinamentos que recebeu, porque nela atua Aquele que é a própria Verdade, mesmo que assim não queiram as vossas incontáveis denominações, que, não tendo Deus Cristo por fundador, jazem impotentes ante um turbilhão de contradições doutrinárias.
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 459