A Igreja foi durante séculos favorável ao aborto?

Em síntese: A Igreja sempre foi contrária ao aborto, ou seja, ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Já no século I se encontra um testemunho deste repúdio na Didaqué. Os Concílios regionais, desde o de Elvira (início do século IV), foram impondo penas severas aos réus de aborto. O Direito Canônico hoje vigente, fazendo eco às diretrizes do passado, prevê a excomunhão latae sententiae para quem provoque o aborto (seguindo-se o efeito).


Todavia até época recente os cientistas hesitaram sobre o momento em que tem início a vida humana: seria imediatamente após a concepção ou após a fecundação do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles, um intervalo (de 40 ou 80 dias) entre a concepção e a animação do feto? A hesitação da ciência, bem compreensível, dada a falta de meios de pesquisa, fez que vários teólogos católicos julgassem com menos severidade a eliminação do feto antes do 40.º dia (no caso dos indivíduos masculinos) ou antes do 80.º dia (no caso dos indivíduos femininos). Note-se bem: sempre foi condenada a ocisão de uma criança; a hesitação versava apenas sobre a questão de saber se já existe verdadeiro ser humano desde o momento da concepção.

Nos recentes debates públicos sobre o aborto tem sido considerada a posição da Igreja em termos que deixam interrogações na mente da sociedade brasileira. Entre outras coisas, diz-se que a Igreja não tem autoridade para impugnar o aborto, pois que ela o permitiu desde o século IV até o século XIX. A afirmação é realmente surpreendente e exige esclarecimentos e retificações. Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos pronunciamentos oficiais da Igreja sobre o aborto através dos séculos; após o quê voltar-nos-emos para a questão do início da vida humana, que deixou dúvidas em escritores de todos os séculos até época recente.

1. Os Pronunciamentos da Igreja

 

  1. Desde o século I manifesta-se na Igreja a consciência de que o aborto é pecaminoso. Assim, por exemplo, reza a Didaqué, o primeiro Catecismo cristão, datado de 90-100:

     

    • “Não matarás, não cometerás adultério… Não matarás criança por aborto nem criança já nascida” (2,2).

       

    • “O caminho da morte é… dos assassinos de crianças” (5,2).

       

    Na segunda metade do século III; o autor da Epístola a Diogneto observava:

     

      “Os cristãos casam-se como todos os homens; como todos, procriam, mas não rejeitam os filhos” (V,6).

       

    O autor da Epístola atribuída a S. Barnabé no século II e depois Tertuliano (? 220 aproximadamente), S. Gregório de Nissa (? após 394), São Basílio Magno (? 379) fizeram eco aos escritores precedentes.

     

  2. A legislação da Igreja oficializou esse modo de pensar, estipulando sanções para o crime do aborto.

    Assim o Concílio de Ancira (hoje Ancara) na Ásia Menor em 314, cânon 20, menciona uma norma que os conciliares diziam ser antiga e segundo a qual as mulheres culpadas de aborto ficam excluídas das assembléias da Igreja até a morte; o Concílio atenuou o rigor dessa penalidade, reduzindo-a para dez anos:

     

      “As mulheres que fornicam e depois matam os seus filhos ou que procedem de tal modo que eliminem o fruto de seu útero, segundo uma lei antiga são afastadas da Igreja até o fim da sua vida. Todavia num trato mais humano determinamos que lhes sejam impostos dez anos de penitência segundo as etapas habituais” (Hardouin, Acta Conciliorum; Paris 1715, t. I, col. 279)1

       

    Outros Concílios repetiram a condenação do aborto: o de Elvira (Espanha) em 313 aproximadamente, cânon 63; o de Lerida, em 524, cânon 2; o de Trullos ou Constantinopla, em 629, cânon 91; o de Worms em 869 cânon 35…

    Em 29/10/1588, o Papa Sixto V publicou a Bula Effraenatam: referindo-se aos Concílios antigos, especialmente aos de Lerida e Constantinopla, condenou peremptoriamente qualquer tipo de aborto e impôs severas penas a quem o cometesse, penas que só poderiam ser absolvidas pela Santa Sé. Além disto, a Bula não distingue entre feto não animado e feto animado por alma intelectiva, distinção esta de que falaremos às p. 454-456 deste artigo e que na época parecia muito importante.

    Tal Bula era rigorosa demais para poder ser observada, principalmente pelo fato de reservar à Santa Sé a absolvição das penas infligidas aos réus de aborto. Por isto foi substituída poucos anos depois pela Bula Sedes Apostolica de Gregório XIV, datada de 31/05/1591; este documento distingue entre feto animado e feto não animado por alma humana: o aborto de feto animado ou verdadeiramente humano seria punido com a excomunhão para os culpados, mas sem reserva da absolvição à Santa Sé; quanto ao aborto de feto não animado ou não humano, ficaria a questão como estava antes da Bula de Sixto V (seria passivo de sanção menos severa do que o aborto de feto animado).

    Como se vê, a questão da animação mediata ou imediata era ardente na época. Diante das posições extremadas que alguns autores professavam, o Papa Inocêncio XI condenou em 02/03/1679, como escandalosas e na prática perniciosas, as seguintes sentenças:

     

    • “34. É lícito efetuar o aborto antes da animação para impedir que uma jovem grávida seja morta ou desonrada.

      35. Parece provável que todo feto carece de alma racional enquanto está no seio materno; só é dotado de tal alma quando é dado à luz. Em conseqüência, deve-se dizer que nenhum aborto implica homicídio” (Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio de Símbolos e Definições n. 2134s.).

       

    Como se vê, o Papa não quis abonar a tese do aborto sob pretexto de que não afeta um ser humano propriamente dito. Embora não se soubesse com certeza no século XVII quando começa a vida humana, Inocêncio XI não se prevaleceu desta incerteza para legitimar a eliminação do feto contido no seio materno.

    No século XIX o Papa Pio IX renovou a condenação do aborto, sem distinguir animação mediata ou imediata:

     

      “Declaramos estar sujeitos a excomunhão latae sententiae (anexa diretamente ao crime) reservada aos Bispos ou Ordinários, os que praticam aborto com a eliminação do concepto” (Bula Apostolicae Sedis de 12/10/1869).

       

    Esta sentença categórica persistiu na Igreja até o Código de Direito Canônico atual, que prevê a excomunhão para o delito:

     

      “Cânon 1398. Quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”.

       

    Vê-se, pois, que a Igreja desde os seus primórdios se manifestou contrária ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Existia, porém, para os teólogos a grave questão de saber quando começa a vida humana; a falta de conhecimentos genéticos adequados levava alguns a crer que, em determinadas circunstâncias, não havia verdadeira vida humana no seio materno. É o que passamos a examinar mais detidamente.

     

2. Animação mediata ou imediata?

Os seres vivos são compostos de um corpo organizado e um princípio vital (chamado anima, em latim). Animação, portanto, é o ato de se unirem o princípio vital (anima) e o corpo organizado. No homem, animação ocorre quando a alma (anima) é criada por Deus e infundida nos elementos materiais orgânicos, aptos a exercerem as funções da vida humana (que é vegetativa, sensitiva e intelectiva). Pergunta-se, pois, quando se dá a animação: logo por ocasião da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Tem-se então a animação imediata… Ou a certo intervalo após a fecundação? Tem-se assim a animação mediata.

Vejamos como os pensadores responderam à questão.

Na antigüidade pré-cristã somente o filósofo grego Aristóteles (? 322 a.C.) tratou do assunto. O seu raciocínio não é claro, mas parece defender a animação mediata: o embrião humano teria primeiramente um princípio vital meramente vegetativo; depois seria animado por um princípio vital vegetativo e sensitivo, e só posteriormente por um princípio (anima) vegetativo, sensitivo e intelectivo ou por uma alma humana propriamente dita.

Passemos agora aos pensadores cristãos, distinguindo gregos e latinos.

 

    2.1. Os escritores gregos

    A maioria destes era partidária da animação imediata.

    Foi principalmente S. Gregório de Nissa (? após 394) quem marcou a tradição grega. Rejeitava a teoria da preexistência seja da alma, seja do corpo, e afirmava a origem simultânea de um e de outro elemento; desde o primeiro instante da existência do embrião, a alma encontra-se nele com todas as suas potencialidades, que se vão manifestando à medida que o corpo se desenvolve.

    São Basílio Magno (? 379), irmão de S. Gregório de Nissa, adotou o pensamento deste. Por isto considerava assassinos os que provocam o aborto de um feto.

    São Máximo Confessor (? 662) abraçou a mesma tese, fundamentando-se do seguinte modo: se o corpo existe antes de ter uma alma, é um corpo morto, pois todo vivente possui uma alma. Se preexiste à alma racional, tendo uma alma meramente vegetativa ou sensitiva, segue-se que o ser humano gera uma planta ou um animal irracional ? o que é impossível, pois toda planta provém de outra planta e todo animal irracional nasce de outro animal irracional, e não do homem.

    Entre os defensores da animação mediata, está Teodoreto de Ciro (? 466 aproximadamente). Apela para o livro do Gênesis, onde lhe parece que Moisés propõe a formação do corpo humano primeiramente e só depois a infusão da alma humana (cf. Gn 2,7).

    É certo, porém, que entre os gregos prevaleceu a tese da animação imediata.

    2.2 Os escritores latinos

    Entre estes destaca-se Tertuliano (? 220 aproximadamente). Era favorável à animação imediata, argumentando, porém, a partir de um princípio que lhe valeu a réplica dos pósteros. Com efeito; Tertuliano defendia a animação imediata, julgando que as almas dos genitores desprendiam de si uma semente (tradux) da qual se originaria a alma da prole; por conseguinte, juntamente com os óvulos e os espermatozóides, os genitores transmitiram sementes de alma humana. Esta doutrina, chamada traducianismo, não preservava devidamente a espiritualidade da alma, mas reduzia a psyché humana à materialidade. Por isto os escritores latinos, desejosos de ressaltar a espiritualidade da alma, puseram-se a combater o traducianismo e, com este, a doutrina da animação imediata. Afirmavam: a concepção é obra dos genitores, mas a animação é obra direta de Deus, que cria e infunde a alma humana. Para bem distinguir uma da outra, distanciaram-nas também cronologicamente: a animação se daria tempos após a concepção da criança.

    O autor do livro “De spiritu et anima”, falsamente atribuído a S. Agostinho (? 430), afirmava que o corpo vive a vida vegetativa e cresce no seio materno antes de receber a alma intelectiva ou humana. Outro autor anônimo, que foi confundido com S. Agostinho, comparava a formação de cada ser humano à formação de Adão: Deus só daria a alma intelectiva ao corpo humano depois que este estivesse formado, como aconteceu no caso de Adão (Quaestiones ex Vetere Testamento c. XXIII). Cassiodoro (? 580) raciocinava do mesmo modo e acrescentava o testemunho dos médicos que estabeleciam a animação do corpo humano no quadragésimo dias após a concepção (De anima c. VIII). Cassiodoro, porém, observava que, em assuntos tão obscuros, seria melhor confessar a própria ignorância do que falar com temeridade arriscada.

    Na Alta Idade Média a sentença da animação mediata foi reforçada pela difusão das obras de Aristóteles a partir do século XIII. S. Tomás de Aquino (? 1274) a adotou com outros pensadores da época, estipulando a infusão da alma humana ou racional no 40.º dia para os indivíduos masculinos e no 80.º dia para os indivíduos femininos. Houve também aqueles que, seguindo uma insinuação do médico grego Hipócrates, estabeleciam o 30.º dia para o sexo masculino e o 40.º para o sexo feminino.

    A partir do século XIII, algumas vozes, principalmente dentre os médicos, começaram a se fazer ouvir contra a hipótese dos pensadores medievais, de modo que aos poucos foi predominando a sentença da animação imediata. A Genética contemporânea, com seus apurados estudos, só contribui para confirmar definitivamente esta noção científica. Ver o testemunho do Dr. Jérôme Lejeune em PR 305/1987, p.457-461.

    Os defensores da animação mediata apelaram para três textos bíblicos, cujo alcance nos compete agora considerar.

     

3. Três textos bíblicos

Vêm ao caso Êx 21,22s.; Lv 12,2-5 e Jó 10,9-12.

 

  •  
      “Se homens brigarem e ferirem mulher grávida, e forem causa de aborto sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano grave, então dará vida por vida”.
      “Lembra-te de que me fizeste de barro, e agora me farás voltar ao pó? Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne me revestiste, de ossos e de nervos me teceste. Deste a vida e o amor, a tua solicitude me guardou”.
  • 3.1 O texto de Êx 21,22s.

    Segundo a tradução grega dos LXX, este texto supõe que um homem imprudente dê um golpe numa mulher grávida e provoque o aborto. Se a mulher morre ou se o fruto de seu ventre estava formado, a punição para o delinqüente será a morte (“morte por morte”). Se porém, a mulher não morre e seu fruto não estava formado, o réu pagará apenas uma multa. Este texto parece supor que existe feto formado, plenamente humano, e feto não formado, não plenamente humano. S. Agostinho e outros autores latinos (que usavam a Bíblia traduzida do grego para o latim) e gregos se apoiaram em tais versículos bíblicos para propugnar a animação mediata; cf. S. Agostinho, In Heptateuchum, II c. LXXX.

    Em resposta, deve-se observar que a tradução grega citada não corresponde ao texto original hebraico, nem às versões latina (da Vulgata), samaritana, síria, árabe. Eis o mais verossímil teor do texto segundo o original hebraico:

     

    Esta lei quer dizer o seguinte: se o delinqüente provocar expulsão do feto, mas sem morte nem da mãe nem da criança, a punição será uma multa. Se, porém, houver morte ou da mãe ou da criança, o réu será condenado à morte. Como se vê, não há aí distinção entre feto formado e feto não formado.

    O próprio texto dos LXX, ao falar de “feto formado” e “feto não formado”, não tem necessariamente em vista os períodos de pré-animação e de animação; pode apenas referir-se à fase em que o embrião ainda é quase indiferenciado e àquela em que já pode ser identificado como ser humano.

    Como quer que seja, só pode ser utilizado, no caso, o texto hebraico como instrumento de argumentação, e não o texto grego.

    3.2. Os dizeres de Lv 12,2-5

    A Lei de Moisés prescreve quarenta dias de purificação às mulheres que tenham dado à luz um menino, e oitenta dias no caso de terem gerado uma menina. ? Ora esta lei nada tem que ver com períodos de formação do feto no seio materno; mas foi por numerosos autores antigos considerada como símbolo de fases de animação. Esta consideração, porém, nada prova, pois um símbolo não é demonstração nem prova.

    3.3. As palavras de Jó 10,9-12

    Eis os dizeres de Jó:

     

    Neste texto o autor sagrado menciona primeiramente a formação do corpo (pele, carne, ossos, nervos) e, depois, a entrega da vida como dom da misericórdia divina. Por conseguinte, a alma humana teria origem posterior ao corpo. Esta conclusão parece corroborada pelo paralelismo que o texto tece entre a formação do corpo de Jó e a do corpo de Adão, ambas partindo do barro, que só depois de plasmado recebeu a alma humana.

    Em resposta, notamos que o autor sagrado quer apenas referir a ordem que vai do menos importante (corpo) ao mais importante (princípio vital); não há aí sucessão cronológica de fases de formação do ser humano. De resto, sabemos que o autor sagrado não tencionava oferecer uma descrição científica dos fenômenos que ocorrem na origem de uma criatura, de modo que é despropositado querer deduzir de tais dizeres uma sentença de Genética ou de Embriologia. Adão e Jacó são comparados entre si não sob o aspecto geneticista ou biológico, mas, sim, na medida em que ambos são objeto da Providência Divina.

     

4. Conclusão

Como se deduz das declarações dos Concílios e dos Papas atrás citados, a Igreja sempre foi contrária à ocisão de uma criança no seio materno. Acontece, porém, que não sabendo quando o feto se torna criança (ser humano) propriamente dita, os doutores antigos distinguiam a eliminação do feto antes do 40.º ou 80.º dia e o aborto propriamente dito. Não chegaram a legitimar ou aprovar aquela, mas julgaram que não podia ser considerada com tanto rigor como o aborto propriamente dito; veja-se a intervenção de Gregório XIV em 1591. Na verdade, a extração de um elemento não humano não pode ser tida como aborto.

Os antigos estavam, pois, condicionados pelo seu insuficiente conhecimento de Genética, mas por certo não toleravam o morticínio de uma criança, por mais incômoda que parecesse aos pais. Hoje em dia tal condicionamento desapareceu, de modo que se pode com mais nitidez e firmeza repudiar o aborto desde a concepção no seio materno, qualquer que seja a fase de evolução do feto.

A propósito ver:

 

  • BEUGNET, A., Avortement, em Dictionnaire de Théologie Catholique II/2, cols. 2644-2652.
  • CHOLLET, A., Animation, em Dictionnaire de Théologie Catholique I/2, cols. 1306-1320.
  • CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS, A Igreja e o Aborto. Ed. Paulinas, 1972.
  • HÄRING, B., Ética Médica. Roma 1973.
  • __________, Medicina e Manipulação. Ed. Paulinas 1977.
  • VARGA, ANDREW, Problemas de Bioética. Unisinos, São Leopoldo 1982.
  • VIDAL, MARCIANO, Ética de Atitudes, vol. 2º, Ed. Santuário, Aparecida 1979.

Fonte: revista “Pergunte e Responderemos” – nº 413 – out/96

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