A teologia dos batistas (sobre a salvação)

– “Quais os argumentos bíblicos e teológicos aplicáveis na controvérsia com os batistas, sobre a doutrina da graça? A maneira como concebem a salvação parece bem diferente da católica” (Nazareth – Rio de Janeiro-RJ).

1. Antes do mais, convém lembrar os traços principais das mencionadas doutrinas batistas.

Para os batistas, «a salvação do crente é eterna», o que quer dizer: todo homem que sincera e firmemente confie em Cristo, pode considerar-se filho de Deus, destinado infalivelmente a conseguir a bem-aventurança eterna; nada absolutamente (nem tentações, nem infidelidades passageiras) lhe poderá arrebatar o galardão celeste; Deus, que é rico em meios para auxiliar os seus fiéis, saberá sempre fazer prevalecer a virtude e a causa do bem em tal alma. De onde se segue que as obras (sejam virtuosas, sejam pecaminosas) não influem decisivamente sobre a salvação eterna: tudo depende de crer, ou melhor, confiar em Cristo. Quanto aos que se perdem no inferno, será preciso dizer que em verdade nunca tiveram a graça de Deus, pois esta, uma vez possuída, leva infalivelmente o seu possessor à glória celeste.

Os textos bíblicos sobre os quais se funda tal doutrina, seriam aqueles em que Jesus ou os Apóstolos afirmam terem os fiéis recebido a vida eterna; cf. João 3,15.36; 5,24; 6,40.47. Ao passo que estas passagens gozam de alto apreço entre os batistas, é menos estimado o sermão de Jesus na montanha (Mateus 5-7), trecho em que o Senhor recomenda aos fiéis uma conduta de vida aparentemente legalista, cumpridora de obras.

Uma síntese da soteriologia batista se encontra no livrinho de William Taylor, “A Salvação do Crente é Eterna”, ao qual havemos de nos referir mais de uma vez nas considerações abaixo.

2. O que dizer de tais ideias?

Em primeiro lugar, reconheça-se que «vida eterna», segundo as Escrituras, é realmente vida imortal ou sem fim (Taylor, no seu opúsculo, muito se empenha por demonstrar filológica e etimologicamente que o «eterno quer dizer eterno mesmo»; cf. p.13 da obra citada). Não resta dúvida, pois, de que a vida que Deus dá ao homem em Cristo, de per si, carece de fim (tem como qualidade inerente a si a imortalidade). Disto, porém, seguir-se-á que vida eterna é também inamissível, quando dada de presente a uma criatura?

Não! A ilação não seria lógica nem é recomendada pelas Escrituras.

3. Não seria lógica… Algo de eterno não é necessariamente algo que não possa ser perdido pelo seu possuidor (sem deixar de ser por si mesmo eterno). Posso possuir um tesouro em si duradouro ou perene: se eu o guardar fielmente, ele será duradouro em meu proveito; se o negligenciar, perdê-lo-ei, isto é, o tesouro continuará a ser perene, não, porém, em meu favor. O adjetivo «eterno», portanto, designa a índole do dom que Deus outorga aos homens, quando se considera este dom da parte de Deus e em si mesmo. Para que este dom se torne permanente ou sem fim no cristão, não se exclui (ao contrário, a Escritura a requer) a livre colaboração deste, ou seja, a livre aceitação da graça e a contínua entrega do discípulo a esta; pois Deus, que nos fez sem nós, não nos salva sem nós, como diz Santo Agostinho. O Senhor, sem dúvida, é fiel às suas promessas e aos seus dons (cf. Romanos 8; 1Coríntios 1,9); não retira por iniciativa própria o que Ele concedeu, mas também não força o homem nem a aceitar nem a guardar o dom divino; justamente, se o Criador fez o homem livre, fê-lo para que este, à diferença das criaturas inferiores, se encaminhasse para Deus usando do seu livre arbítrio.

Entende-se, porém, porque nossos irmãos batistas identifiquem vida eterna e vida inamissível. Não reconhecem o valor do livre arbítrio e da colaboração humana com a graça de Deus; e não o reconhecem, por causa das premissas luteranas e calvinistas que eles abraçam: os batistas constituem uma confissão fundada no séc. XVIII por John Smith, ministro anglicano (cf. artigo “Os batistas são os discípulos de São João Batista?”), o qual se inspirou preponderantemente de ideias calvinistas.

Em que consistem, pois, essas premissas luterano-calvinistas?

Lutero, no séc. XVI, deu início ao movimento da Pseudo-Reforma, afirmando, entre outras coisas, que o pecado original destruiu o livre arbítrio no homem, de sorte que este é incapaz de fazer o bem (praticar obras boas) de acordo com as decisões de sua vontade. Em compensação, Lutero ensinava que seus discípulos podiam ter certeza da sua justificação (ou de possuírem a amizade de Deus nesta vida) na medida em que tivessem fé ou confiança inabalável em Cristo. Calvino retomou estas ideias e as desenvolveu; ensinou que a fé ou confiança no Redentor dá ao crente certeza infalível não só da sua justificação momentânea (na vida presente), mas também da sua salvação eterna (na vida futura); a vontade humana não entra em conta no processo de salvação eterna; destarte, Calvino queria enfaticamente exaltar que Deus é tudo e o homem nada. A honra de Deus lhe parecia exigir tais afirmações. Note-se que os mesmos princípios levaram Calvino a dizer, outrossim, que existe uma predestinação que é absoluta da parte de Deus: desde toda a eternidade, o Todo-Poderoso decretou que tais e tais indivíduos se salvarão no céu, ao passo que tais e tais outros se perderão no inferno; esse decreto de predestinação é de todo inalterável; o homem nada pode fazer contra ele, de modo que o predestinado para a glória recebe a graça de Deus e, ainda que peque, não fica no pecado; o predestinado para o inferno nunca recebe a graça de Deus e, ainda que pratique atos bons, não deixa de ser viciado ou mau. Estas ideias repercutiram, sem dúvida, na formação do credo batista.

Nos seus inícios (séc. XVII) os batistas se dividiam em “Batistas gerais” (professando que Cristo por sua cruz salvou todos os crentes) e “Batistas particulares” (professando que salvou apenas os predestinados). No decorrer do séc. XVII, na Inglaterra, foram prevalecendo os Batistas particulares, enquanto declinavam os Batistas gerais. No séc. XVIII, quando as comunidades batistas corriam o perigo de certo entorpecimento, foram provocadas a novo fervor por John Wesley (+1791), fundador de uma seita à parte, o Metodismo, que propugnava uma espiritualidade mais metódica. Os batistas, por seu turno, começaram então um movimento de evangelização popular, tendo como um dos seus pioneiros no início do séc. XIX William Carey Taylor; este fundou a “Sociedade dos Batistas particulares para a propagação do Evangelho entre os pagãos” e partiu para as Índias. Foi este movimento que deu as características próprias à vida batista na Inglaterra e nos Estados Unidos.

4. Mas será que a Sagrada Escritura mesma não sugere a identificação de vida eterna e vida inamissível?

Não. É bem evidente que ela acautela os fiéis contra o perigo de por sua própria culpa perderem a graça de Deus e consequentemente a vida eterna. É, por exemplo, o que São Paulo inculca aos Filipenses: «Assim como sempre obedecestes (…), assim também operai a vossa salvação com temor e tremor» (2,12). O mesmo Apóstolo diz que procura tornar-se conforme à morte de Cristo, «para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição dos mortos. Não que já a tenha alcançado ou que seja perfeito, mas prossigo para abraçar aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus» (3,10-14; tradução de João Ferreira de Almeida).

Aos Coríntios, o Apóstolo afirma exercer a mesma solicitude para conseguir a salvação:

– “Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns. E faço isto por causa do Evangelho, para ser também participante dele. Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos na verdade correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis. E todo aquele que luta, de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível. Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar. Antes subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado” (1Coríntios 9,22-27).

W.C. Taylor, analisando esta passagem tão significativa, julga que o Apóstolo não se refere à consecução da salvação eterna, mas apenas à obtenção de um galardão independente da salvação; Paulo teria tido a certeza de ser salvo, não, porém, a de conseguir uma coroa de vitória no céu (como os atletas podem hesitar a respeito de sua vitória ou da aquisição de uma coroa no estádio). Ora, esta distinção do comentador inglês é totalmente estranha à Bíblia; vida eterna e galardão (ou coroa) da vida eterna se identificam plenamente na Escritura Sagrada; o dom que Deus dá definitivamente ao homem no céu é um só, é simplesmente a vida eterna; não há vida eterna com galardão (ou com coroa) nem vida eterna sem galardão (ou sem coroa):

– “Bem-aventurado o varão que sofre a tentação, porque, quando for provado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que O amam” (Tiago 1,12).

– “Quando aparecer o Sumo Pastor, alcançareis a incorruptível coroa de glória” (1Pedro 5,4).

– “Sê fiel até a morte, e eu Te darei a coroa da vida (…) Guarda o que tens para que ninguém tome a tua coroa”, diz o Senhor no Apocalipse (12,10; 3,11).

Aliás toda a epístola de São Tiago (que Lutero rejeitava, mas que Calvino e os protestantes modernos reconhecem como canônica) inculca fortemente a necessidade de obras boas para que o cristão não venha a perder a vida eterna.

– “Meus irmãos: o que aproveita se alguém disser que tem fé e não tiver as obras? Porventura, a fé pode salvá-lo? (…) A fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma (…) Tu crês que há um só Deus; fazes bem. Também os demônios o creem e estremecem. Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando oferecia sobre o altar o seu filho Isaque? Bem vês que a fé coopera com as suas obras e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada (…) Vês então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé. Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tiago 2,14.17.19.21-22.24.26).

Se, de outro lado, São Paulo tanto acentua o valor da fé (principalmente em Romanos e Gálatas), parecendo excluir o das obras, isto se deve ao fato de que São Paulo tem em vista o início da justificação; combatendo a mentalidade legalista de certos judeus, quer afirmar não haver méritos prévios do homem que lhe possam merecer o dom da fé sobrenatural; esta é concedida por Deus de modo totalmente gratuito, sem que em absoluto o homem a possa atrair a título de justiça ou em recompensa; é, sim, crendo docilmente na Palavra de Deus com ânimo contrito que o pecador começa a ser amigo de Deus e recebe o gérmen da graça santificante ou da vida eterna; depois desta primeira conversão e justificação é que poderá, com o auxilio de Deus, realizar obras meritórias. São Tiago não contradiz a São Paulo porque visa questão diferente: considera não o ingresso no estado de graça, mas a conservação desta última; assegura então que impossível é perseverar na amizade de Deus unicamente mediante a fé; as obras boas se tornam imprescindíveis para que alguém não se torne como os demônios, os quais acreditam, sim, mas, não obstante, estão condenados por não terem as obras da caridade.

Quem considera as perspectivas próprias visadas por São Paulo e São Tiago, não dará valor absoluto a afirmações de um ou de outro separadas do seu contexto, e saberá estimar a necessidade das boas obras para que alguém não se perca. Merece atenção o fato de que a Sagrada Escritura exige categoricamente as obras boas de todo e qualquer cristão, sem distinguir entre predestinados e não predestinados; não fala de homens que, aparentemente apenas, se perderão pelas suas más obras, e homens, que realmente se perderão pelas suas más obras. É São Paulo quem assim escreve:

– “Deus recompensará cada um segundo as suas obras, a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em fazer o bem, procuram glória e honra e incorrupção; mas a indignação e a ira aos que são contenciosos e desobedientes à verdade e obedientes à iniquidade; tribulação e angústia sobre toda alma do homem que obra o mal, primeiramente do judeu, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a qualquer que obra o bem, primeiramente ao judeu, e também ao grego” (Romanos 2,6-10).

Vê-se nesta passagem como São Paulo mesmo associa estritamente a sorte eterna à prática de obras.

Contudo está claro que as boas obras do justo não constituem uma fonte de salvação independente dos méritos de Cristo; são produzidas com o auxílio da graça do Redentor, que nelas frutifica. Seria impossível, porém, não as levar em conta no processo da nossa justificação; haja vista o relevo enorme que Cristo lhes deu no seu sermão da montanha, o qual, segundo São Mateus, proferido logo no limiar da vida pública de Jesus, constitui a Magna Carta do Reino de Deus. Nenhum comentador de autoridade, cristão ou não-cristão, ousaria afirmar que o «sermão do monte em geral só ensina indiretamente o Evangelho (…) a própria linguagem do Evangelho está ausente de Mateus 5 a 7» (cf. Taylor, obra citapda, p.79). Ao contrário, os estudiosos e os homens de Deus sempre reconheceram no sermão da montanha uma das expressões mais típicas da mensagem de Jesus ao mundo.

Por último, será preciso reconhecer (fazendo eco à Sagrada Escritura e aos nossos irmãos batistas) que a graça santificante possuída nesta vida é realmente o gérmen ou a semente da glória celeste; não há solução de continuidade entre o dom de Deus que os justos trazem nesta peregrinação terrestre e o dom que renova a alma e o corpo dos santos no céu; a diferença é apenas a que intercede entre a semente e a planta plenamente desenvolvida. Neste sentido, pode-se e deve-se dizer que eterno é o dom de Deus; isto, porém, não significa que o homem não o possa recusar livremente no decorrer desta vida, mesmo depois de o haver aceito. Não levar em conta a liberdade da criatura seria indigno de Deus, que justamente quer ser louvado não apenas por autômatos, mas por seres a quem Ele deu uma livre vontade como expressão de maior perfeição ontológica.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 3 – mar/1958
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