A Tradição de pensar bem as coisas

Já fazia algum tempo que eu não cruzava com um desses “protestantes sabe-tudo” que são capazes de produzir dois erros em uma única palavra. Então hoje surgiu um, condenando – obviamente – as “tradições dos homens” contra as quais Cristo firmemente se pronunciou. E como nossos irmãos separados não estão acostumados ao rigor em matéria de análise e muito menos em assuntos teológicos, no espírito da paz que o bom Papa Francisco me ensina a empregar com os mais pobres, perguntei ao irmão:

– “Então diga-me, bom homem: existe algum outro tipo de tradição que não seja de homens? E não venha me dizer que há tradições de mulheres ou de crianças, porque não creio que o Senhor estivesse se referindo a isso”.

Por um gesto – um franzir de testa – vi que ele estava consumindo rapidamente bastante combustível mental… Então acrescentei: “Se o Senhor especificou que as tradições dos homens são as que não devem ser seguidas, logo deve haver outras tradições, presumivelmente outras que não são oriundas de homens e que os bons seguidores de Cristo devem seguir”. Mas o meu trem chegou e nos despedimos até podermos nos encontrar novamente na plataforma. E enquanto voltava para casa, depois de passar um longo dia na capital, continuei meditando sobre o tema e agora compartilho algumas coisas que durante a viagem floresceram na minha cabeça calva e grisalha.

As coisas claras são as que melhor são aprendidas e a Sagrada Tradição é uma das coisas mais claras que a Igreja possui. Esta não se opõe, de maneira nenhuma, ao estudo da Bíblia, que são as Sagradas Escrituras citadas e estudadas pela Igreja há mais de vinte séculos. Não devemos deixar que a supina ignorância do católico médio nos engane, pois para ser católico ninguém precisa memorizar textos bíblicos; isto não é o essencial. Para ser católico, deve-se ter, antes de mais nada, uma boa e santa consciência. O resto é consequência. Para o católico, as Sagradas Escrituras são como que o ar que está em todos os lugares ao nosso redor, mas que não percebemos necessariamente até que nos falte. No entanto, começando pelo início, devemos dizer que, falando historicamente, o próprio cânon das Escrituras é produto da Sagrada Tradição, essa Tradição boa que Cristo indiretamente sugere quando diz que não devemos seguir a má tradição. Uma vez definido o cânon, não surge – digo novamente: não surge! – a necessidade de se opor Tradição e Escritura. Na verdade, se requer que a Tradição esteja em completo acordo com a evidência canônica textual (uma outra forma de dizer “as Escrituras”). Por essa simples razão, a postura protestante acaba sendo uma falsa opção. Não se trata de optar entre uma ou outra, pois ambas emergem da mesma Verdade e não se contradizem em nada. Quando surge uma aparente contradição, não há motivo nenhum para nos preocuparmos. Uma análise rigorosa revelará sempre que estamos equivocados ao crer que algo estava errado. Assim tem sido provado uma vez após outra nessa relação entre Escritura e Tradição, não só agora, mas no decorrer de 20 séculos.

Nossa Igreja não foi fundada sobre a Bíblia, nem tampouco sobre a Tradição. Nossa Igreja foi fundada sobre a pessoa de Cristo e, especialmente, sobre a Sua pessoa ressuscitada três dias depois do Calvário. Se prestamos reverência à Tradição e à Escritura é porque por elas os homens que não viram Cristo na Cruz podem vê-Lo agora, ao serem abertas essas duas portas que levam até Ele. Isso em bons termos significa que através da Escritura e da Tradição aprendemos a ser como Cristo. O resto são flores… Saber acerca de Cristo não é suficiente (o Diabo sabe muito mais sobre Cristo do que qualquer um de nós e, quando vê Cristo, sai correndo); o que é bom, o que presta, é conhecer Cristo e imitá-Lo em tudo. Creio que assim caminha o nosso Papa Francisco, que continuará vivendo neste mundo o seu papel de alter Christus até que entre nas nossas cabeças que precisamos começar a ser como Ele nos disse: “Vós sereis meus amigos se fizerdes o que Eu vos digo” [João 15,14]. Uma condição delicada, mas que não deixa de ser bem clara e justa.

No tocante à Tradição, em minha recente estadia na Argentina pude observar algo que me encheu de tristeza: Há quem oponha uma suposta aderência à Sagrada Tradição não à Escritura – como os protestantes – mas à própria Igreja. Tive uma conversa com um desses supertradicionalistas em que ele, com toda sinceridade, me explicava o porquê de Francisco poder ser considerado um antipapa etc. Ligado a tudo isso, me apresentava as razões pelas quais a Missa do Novus Ordo era na verdade uma falsa missa, promovida por forças obscuras etc. Fracassei em tentar mostrar-lhe que a sua posição era muito semelhante à dos protestantes. Ninguém faz uma revolução sem declarar primeiro que é um “reformador do autêntico”. Porém, com essa proposição vem anexo a pedra do moinho: o presente foi corrompido e, portanto, é inautêntico. Aí está o “X” da questão, porque o próprio Cristo nos disse que ninguém pode saquear o tesouro de um homem forte a não ser que primeiro amarre esse homem forte [cf. Mateus 12,29; Marcos 3,27]. E se alguém entrou na Igreja e amarrou nosso Deus, submetendo-O a presenciar impotente o saque de Seu mais valioso tesouro… então é porque aconteceu o impossível e já é inútil insistir na Fé. Tudo deu errado e o mundo mudou completamente, como nesta terrível cena de O Homem que era Quinta-Feira, de Chesterton: o momento em que Syme descobre que o anarquista Domingo e o Chefe da Polícia são a mesma pessoa e as trevas pairam sobre o mundo inteiro.

O caso que relato não é novo. Os fariseus foram os que caíram primeiro na armadilha. Suas tradições eram projetadas para manter o erro fora do perímetro protetor que rodeava a nação. Se concentraram tão escrupulosamente em manterem-se puros que a impureza os alcançou e, ao invés de conservar a nação, perderam-na; e juntamente com ela perderam o Templo, o sacerdócio levítico, os sacrifícios, sua liberdade… Tudo foi levado pelas tropas romanas ou ardeu até as cinzas. A ideia original era preservar a nação para que o Messias a encontrasse pura; mas o Messias veio e não preciso recordar aqui o que fizeram com Ele. “Astúcia humana, vítima das tuas próprias invenções, és tão desastrosamente criativa” (Ovídio, Amores, Livro 3).

Descobrimos um paralelo entre esse nacionalismo feroz dos fariseus e as suas tradições tão falsas quanto otimistas: sua astúcia mecânica de querer arrastar Deus para um contrato que lhes desse a vitória. Enquanto Deus firmava o contrato pela salvação do homem com Seu próprio Sangue, os pobres supertradicionalistas dos tempos de Cristo exclamavam: “É melhor que um homem morra pelo povo e não que o povo pereça por causa de um homem” [João 18,14]. Isto porque temiam que os romanos viessem e queimassem o Templo e a cidade. Crucificando o Messias, garantiram justamente que os romanos viessem e lhes queimassem o Templo e a cidade.

Verifico que as críticas supertradicionalistas a Francisco descem pela mesma corda. Os fariseus sonhavam em derrotar Roma, a qual era vista como decadente e frágil. Ao contrário, Jesus via Roma como um fruto maduro a ponto de cair nas Suas mãos. Bastaram apenas três séculos para que o Messias conquistasse para Si o Mons Vaticanus, o monte dos vaticínios onde os profetas romanos, os augures, pronunciavam suas “sagradas profecias” ou vaticinia. Aí, nesse lugar sagrado para os romanos, estava a porta por onde Pedro pôde ingressar no céu. Aí, no Vaticano de hoje, os Bispos do Messias vestem o púrpura real do velho Império. E como bom guerreiro semita, o Messias tratou de cortar a língua do César vencido: hoje, a língua dos Césares, é apenas oficialmente falada na Igreja que também ficou com o nome de “Romana”.

E o que aconteceu com os fariseus? O que ocorre sempre com os que abandonam o seu posto no meio da batalha: nunca mais retornaram e persiste ainda sua fama de mentecaptos bem-intencionados e demasiadamente astutos para a sua própria causa. Melhor teria sido que se aproximassem do seu Senhor e teriam sido curados; porém – ai! – sua casa acabou sendo abandonada às suas próprias forças e a realidade os atingiu, riscando-os para sempre do mapa.

Esta é a sorte sic semper daqueles que não entendem o perigo que as falsas opções embutem.

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