Por Carlos Nabeto
A Semana Santa nos faz recordar profundamente a Paixão, morte e ressurreição do Senhor, e a inscrição de Pilatos que foi colocada no alto da Sua cruz (que a maioria das imagens dessa cena abrevia como “INRI” ou “JNRJ”) apresenta 3 pontos interessantes:
1) Todos os 4 Evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João) mencionam a inscrição da cruz (Mat. 27,37; Mc. 15,26; Lc. 23,38 e Jo. 19,19). Com certeza, o objetivo desta inscrição era dar ciência, de modo breve e direto, a todos que a lessem, a razão específica daquela condenação: “Aquele” réu de morte era tido como “o rei dos judeus” (em unciais gregas: “Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”), fato este rejeitado pelas autoridades religiosas e políticas da Palestina, e que redundava em crime de lesa-majestade e alta traição contra o Reino galileu de Herodes Antipas e o Império Romano, ao qual pertencia.
2) Apesar de todos os Evangelistas descreverem a mesma e exata acusação contida na inscrição (“Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”), cada um deles traz uma inscrição diferente dos demais, por incluir ou omitir o nome de Jesus, e/ou adotar alguma outra expressão que apontasse especificamente para Ele (eis aqui um caso de “variância textual” entre os Evangelistas):
– Mateus: “Este é Jesus, o rei dos judeus” (“ΟΥΤΟΣ ΕΣΤΙΝ ΙΗΣΟΥΣ Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”);
– Marcos: “O rei dos judeus” (“Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”);
– Lucas: “O rei dos judeus [é] este” (“Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ ΟΥΤΟΣ”);
– João: “Jesus, o nazareno, o rei dos judeus” (“ΙΗΣΟΥΣ Ο ΝΑΖΩΡΑΙΟΣ Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”).
3) Além da variância textual entre os Evangelistas, há ainda casos de variância textual entre os manuscritos dos Evangelhos de Marcos e Lucas:
– Marcos: o Codex Bezae (D), do séc. V, traz: “Este é o rei dos judeus” (“ΟΥΤΟΣ ΕΣΤΙΝ Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”) – Há aqui uma evidente tentativa de harmonização feita pelo copista, tomando as primeiras palavras da inscrição de Mateus, mas sem o nome de Jesus (e/ou de Lucas; vide variações abaixo). Esta variante pode ser desde logo descartada não só pelo testemunho dos mais antigos manuscritos (cf. TC), como também pela imensa maioria dos manuscritos gregos (cf. TR/TMaj);
– Lucas: registra as seguintes possibilidades para a inscrição:
* Variante 1) “Este é o rei dos judeus” (“ΟΥΤΟΣ ΕΣΤΙΝ Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”), conforme testemunho do Codex Alexandrinus (A) e do já citado Codex Bezae (D), ambos do séc. V;
* Variante 2) “Este é Jesus o rei dos judeus” (“ΟΥΤΟΣ ΕΣΤΙΝ ΙΗΣΟΥΣ Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ”), conforme consta no Codex Guelferbytanus B (Q), do séc. V, e no Codex Petropolitanus Purpureus ( N ), do séc. VI.
Ambas as variantes de Lucas visam criar harmonia textual com a inscrição de Mateus (a única invariável nos antigos manuscritos dos Evangelhos sinóticos), seguindo a mesma ordem de palavras e omitindo (Var.1) ou não (Var.2) o nome de Jesus. Porém, os mais antigos códices (Vaticanus [B] e Sinaiticus [א]), ambos do séc. IV, trazem: “Ο ΒΑΣΙΛΕΥΣ ΤΩΝ ΙΟΥΔΑΙΩΝ ΟΥΤΟΣ” (o que é confirmado pelo papiro P66, de cerca do ano 200); a tradução é a mesma: “Este [é] o rei dos judeus”, muito embora haja a omissão do verbo “é” (“ΕΣΤΙΝ”), que é subentendido, e a palavra “este” (“ΟΥΤΟΣ”) seja encontrada no fim da frase (em grego, graças às declinações, a ordem das palavras não chega a constituir um problema para o sentido como no português).
Então, pelo exposto, quais teriam sido as exatas palavras colocadas na cruz de Cristo? As variantes textuais encontradas em Marcos e Lucas, com vistas a harmonizar suas respectivas inscrições com aquela invariável (manuscritologicamente falando) de Mateus, leva-nos logo a reduzí-las da nossa lista de probabilidades. Some-se a isso o fato de Marcos e Lucas não serem Apóstolos, mas discípulos diretos de S. Pedro e S. Paulo; teriam então reproduzido o que ouviram falar (e que na essência não muda nada): algo básico (no caso de Marcos, o mais breve dos evangelistas) ou um pouco mais específico e elegante na língua grega (no caso de Lucas, médico erudito).
Sobra-nos, então, S. Mateus e S. João, ambos Apóstolos, cujas inscrições são invariáveis na transmissão textual manuscrita. Pois bem: embora Mateus tenha escrito seu Evangelho muito antes de João, ele NÃO esteve presente na Crucificação; por isso, informou apenas “a acusação” de Jesus (Mat. 27,37). De outro modo, João foi testemunha ocular (cf. Jo. 19,25-27) e único entre os Apóstolos a ler pessoalmente a inscrição: era, pois, o único que conhecia e podia nos transmitir o conteúdo exato e, por isso mesmo, afirma categoricamente, sem titubear: “Estava escrito:…”. Recorde-se ainda que João, em seu Evangelho, se caracteriza por fornecer dados e esclarecer pontos que os Sinóticos omitiram ou foram menos precisos, consequência da grande proximidade que tinha com Jesus (não à toa era “o discípulo amado”!).
Para concluir, devemos notar que histórica e juridicamente a inscrição de João é a única que atinge a finalidade para a qual foi providenciada: especificava o nome do “réu”, sua origem e acusação (individualizando-o), e era redigida em 3 línguas diferentes (a do povo nativo, a oficial do Império e a franca), de modo que todos pudessem ler, conforme sua cultura, o exato motivo daquela pena terrível e Quem era precisamente o apenado! Uma inscrição que virou Profissão de Fé em nossas imagens do Cristo crucificado e que conquistou o mundo!