Catolicismo Primitivo (Parte 3/4) – São Clemente Romano

São Clemente Romano foi o terceiro sucessor de São Pedro e bispo de Roma, tal como afirma Santo Ireneu de Lião em seu tratado “Contra as Heresias”[1] e Eusébio de Cesareia em sua “História Eclesiástica”[2], que também o identificaram com o colaborador de São Paulo mencionado no Novo Testamento (Filipenses 4,3). Pensa-se que conheceu pessoalmente São Pedro e São Paulo. Eusébio fixa o seu pontificado entre os anos 92 a 101. Há algumas tradições pouco dignas de crédito que afirmam que ele foi martirizado[3].

CARTA AOS CORÍNTIOS

Ainda que se lhe atribuam diversos escritos, considera-se autêntica a Carta à comunidade de Corinto, escrita para disciplinar essa comunidade que atravessava uma crise por ter deposto de seus cargos os presbíteros legitimamente constituídos. Referida carta foi considerada canônica por alguns cristãos notáveis, ao ponto de constar no Novo Testamento apresentado por Cirilo, patriarca de Alexandria, ao Rei Carlos I, hoje conservado no Museu Britânico.

Conta com um rico conteúdo apologético em vários temas como: a primazia petrina, a justificação, a sucessão apostólica e a unidade da Igreja.

PRIMAZIA PETRINA

No que diz respeito ao tema do primado de São Pedro, é um documento importantíssimo porque recolhe uma forte evidência implícita de que já no século I, São Clemente, como bispo de Roma e sucessor de São Pedro, possuía uma clara consciência de sua primazia como cabeça visível da Igreja e, portanto, da sua missão de manter a unidade e ortodoxia. Daí que ao escrever à comunidade de Corinto, começa desculpando-se pela demora em abordar o problema e posteriormente emprega um tom de autoridade que seria totalmente impróprio se não tivesse jurisdição sobre uma igreja tão distante.

  • “Por causa das repentinas e sucessivas calamidades e tribulações que sobrevieram sobre nós, cremos, irmãos, ter voltado nossa atenção um pouco tardiamente para os assuntos discutidos entre vós. Nos referimos, caríssimos, à sedição, estranha e alheia aos eleitos de Deus, abominável e sacrílega, que uns tantos sujeitos, pessoas atrevidas e arrogantes, acenderam até tal ponto de insensatez, que vosso nome, venerável, celebradíssimo e digno do amor de todos os homens, veio a ser gravemente ultrajado.” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 1,1)
  • “Mas se alguns desobedecerem às advertências que por nosso meio Ele mesmo [=Deus] vos dirigiu, saibam que se tornarão réus de não pequeno pecado e se exporão a grave perigo. Mas nós seremos inocentes deste pecado e pediremos com fervorosa oração e súplica ao Criador de todas as coisas para que conserve íntegro em todo o mundo o número exato de seus eleitos, por meio de seu servo amado Jesus Cristo.” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 59,1)

Ao longo da História se repetirá, uma e outra vez, que as diferentes igrejas do orbe apelarão para a autoridade da Sé Apostólica, ao longo dos seus vários e numerosos conflitos.

JUSTIFICAÇÃO E SALVAÇÃO

No tema da justificação pela fé, São Clemente nos deixa outra rica contribuição. Ainda que deixe claro que o homem se justifica pela fé e não pelas obras, esclarece que também é necessário realizar boas obras e cumprir os Mandamentos para se salvar; daí que tenha que esforçar-se perseverando no bem para encontrar-se no número dos salvos:

  • “Vigiai, caríssimos: não seja que vossos benefícios, que são muitos, se convertam para nós em motivo de condenação, caso não se faça em toda concórdia, levando conduta digna Dele, o que é bom e agradável em Sua presença.” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 21,1)
  • “Pois bem: o que vamos fazer, irmãos? Vamos ser desidiosos no bem agir e abandonaremos a caridade? Não permita o Senhor que tal coisa ocorra, pelo menos em nós, mas apressemo-nos a levar a cabo toda obra boa com fervor e generosidade de ânimo. Com efeito, o próprio Criador e Dono de todas as coisas se regozija e se compraz em suas obras (…) Já vimos como todos os justos se adornaram com boas obras e o Senhor mesmo, encoberto com elas, se alegrou. Assim, tendo este Modelo, aproximemo-nos intrepidamente da Sua vontade e com toda nossa força façamos obra de justiça.” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 33,1-2.7)
  • “Agora, pois, de nossa parte, lutemos por encontrarmo-nos no número dos que O esperam, a fim de ser também partícipes dos dons prometidos. Mas, como conseguir isto, caríssimos? Consegui-lo-emos sob a condição de que nossa mente esteja fielmente afiançada em Deus; sob a condição de que busquemos onde quer que seja o que é agradável e aceito por Ele; sob a condição, finalmente, de que cumpramos plenamente o quanto diz com seus desígnios irreprováveis e sigamos o caminho da verdade, atirando para longe de nós toda injustiça e maldade, avareza, contendas, malícia e erros, fofocas e calúnias, ódio a Deus, soberba e jactância, vanglória e inospitalidade. Porque os que tais coisas realizam são odiosos a Deus; e não só os que as realizam, como também aqueles que as aprovam e consentem.” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 35,4-6).
  • “Porque Deus vive e vive o Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo, e também a fé e a esperança dos eleitos, só aquele que em espírito de humildade e perseverante modéstia cumprir sem voltar atrás nas justificações e nos mandamentos dados por Deus, só esse será ordenado e eleito no número dos que se salvam por meio de Jesus Cristo, pelo qual se dá a Deus a glória pelos séculos dos séculos. Amém.” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 58,2).

A SUCESSÃO APOSTÓLICA

Nesta Carta, temos também outro testemunho importantíssimo a partir do ponto de vista apologético, porque nos deixou uma definição explícita da doutrina católica da sucessão apostólica, na qual é o próprio Jesus Cristo quem institui os Apóstolos, os quais, obedecendo Sua vontade, instituem os Bispos como seus sucessores no ministério apostólico:

  • “Os Apóstolos nos pregaram o Evangelho da parte do Senhor Jesus Cristo; Jesus Cristo foi enviado de Deus. Em suma, Cristo da parte de Deus e os Apóstolos da parte de Cristo: uma e outra coisa, portanto, sucederam ordenadamente por vontade de Deus. Assim, pois, tendo os Apóstolos recebido os mandatos, e plenamente garantidos pela ressurreição do Senhor Jesus Cristo, e confirmados na fé pela Palavra de Deus, saíram cheios da certeza que lhes infundiu o Espírito Santo, para dar a alegre notícia de que o Reino de Deus estava para chegar. E assim, segundo pregavam por lugares e cidades a Boa Nova, e batizavam os que obedeciam ao desígnio de Deus, iam estabelecendo os que eram primícias deles – depois de prová-los pelo Espírito – como inspetores e ministros dos que haveriam de crer. E isto não era novidade, pois já muito tempo antes se havia escrito acerca de tais inspetores e ministros. A Escritura, com efeito, diz assim em algum lugar: ‘Estabelecerei os inspetores deles em justiça e os seus ministros na fé’ (…) Também nossos Apóstolos tiveram conhecimento, por inspiração de nosso Senhor Jesus Cristo, que haveria contenda sobre este Nome e dignidade do episcopado. Por causa disso, portanto, como tiveram perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram os supra mencionados e juntamente impuseram para o futuro a norma de que, morrendo estes, outros homens aprovados lhes sucedessem no ministério. Agora, pois, homens estabelecidos pelos Apóstolos ou, posteriormente, por outros exímios homens com consentimento da Igreja inteira; homens que têm servido irreprovavelmente ao rebanho de Cristo com espírito de humildade, pacífica e desinteressadamente; atestados, ademais, durante muito tempo por todos. Justamente a tais homens, vos dizemos, não cremos que possam ser expulsos de seu ministério. E é assim que cometeremos um pecado nada pequeno se depormos do cargo de Bispo a quem incontestável e religiosamente ofereceu os dons” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 42,1-5; 44,1-4).

DIVISÕES ENTRE CRISTÃOS

Outro elemento importante é a condenação que São Clemente faz às divisões na Igreja e que no Protestantismo fragmentado em milhares de denominações encontra atualmente sua máxima expressão. Insiste que os cismáticos, quando criam divisões, causam escândalos e extraviam almas:

  • “Com que fim desgarramos e despedaçamos os membros de Cristo e nos revoltamos contra nosso próprio corpo, chegando a tal ponto de insensatez que nos esquecemos que somos membros uns dos outros? Lembrai-vos das palavras de Jesus, Senhor nosso. Ele disse, com efeito: ‘Ai daquele homem! Mais lhe valeria não ter nascido do que escandalizar um só de meus eleitos. Melhor seria que lhe colocassem uma pedra de moinho no pescoço e o afundassem no mar do que extraviar um só de meus eleitos’. Vossa cisão extraviou a muitos, desanimou a muitos, fez muitos duvidarem, mergulhou todos nós na tristeza; e, no entanto, vossa sedição é contumaz” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios 46,7-9).

Você pode ler uma tradução católica da Primeira carta aos Coríntios nesta url: São Clemente Romano, Primeira carta aos Coríntios

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NOTAS

[1] Santo Ireneu em suas “Adversus Haereses” ou tratado “Contra as Heresias” assinala que “logo depois de ter fundado e edificado a Igreja, os beatos Apóstolos, entregaram o serviço do episcopado a Lino, a este Lino que Paulo recorda em suas providências a Timóteo (2Timóteo 4,21). Anacleto o sucedeu. Depois dele, em terceiro lugar desde os Apóstolos, Clemente herdou o episcopado, o qual viu os beatos Apóstolos e com eles conferiu e teve diante dos olhos a pregação e tradição dos Apóstolos que ainda ressoava; e não somente ele, porque ainda viviam então muitos que dos Apóstolos tinham recebido a doutrina. No tempo deste mesmo Clemente, ocorrendo uma dissensão não pequena entre os irmãos que estavam em Corinto, a Igreja de Roma escreveu a carta de maior autoridade aos Corintos, para congregá-los na paz e reparar sua fé, e para anunciar-lhes a Tradição que pouco tempo antes havia recebido dos Apóstolos” (Santo Ireneu de Lião, Contra as Heresias 3,3).

[2] Eusébio narra que “Paulo também dá testemunho de que Clemente – o qual, por sua vez, foi estabelecido terceiro bispo da igreja de Roma – foi seu colaborador e companheiro de combate” (Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 3,4,9).

[3] Johannes Quasten assinala o seguinte em sua obra “Patrologia”, vol. I, publicada pela Biblioteca de Autores Cristãos: “As Pseudo-Clementinas, que fazem de Clemente membro da família imperial dos Flávios, não são de modo nenhum dignas de fé. Merece ainda menos credibilidade a opinião de Dion Cássio (Hist. Rom. 67,14), segundo o qual Clemente seria nada menos que o próprio cônsul Tito Flávio Clemente, da família imperial, executado no ano 95 ou 96 por professar a fé de Cristo. Tampouco consta historicamente o martírio deste quarto bispo de Roma; o ‘Martyrium S. Clementis’, escrito em grego, é do século IV e apresenta, ademais, um caráter puramente lendário.”

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