“De episcoporum muneribus” (Paulo VI: 15.06.1966)

CARTA APOSTÓLICA “MOTU PROPRIO”

DE EPISCOPORUM MUNERIBUS

Sobre o Poder de Dispensar

A doutrina sobre os múnus dos Bispos que, para nossa alegria, nos coube promulgar solenemente durante o 2º Concílio do Vaticano, claramente ensina que as Igrejas particulares, confiadas aos Bispos na qualidade de legados de Cristo, são por eles regidas com autoridade e poder sagrados, e que o ofício de pastor, isto é, o cuidado constante e cotidiano pelas ovelhas, lhes é confiado plenamente, com poder próprio, ordinário e imediato. Em virtude desse poder “cabe-lhes o sagrado direito e o dever, perante Deus, de legislar para seus súditos, de julgar e de regulamentar tudo quanto se refere à organização do culto e do apostolado”[1]. Esse poder compreende, segundo ensina o mesmo 2º Concílio de Vaticano, múnus a serem exercidos simultaneamente por muitos, os quais, por vontade de Cristo, atuam em seu Corpo Místico de acordo com a ordem da sagrada hierarquia. É assim que esse poder somente é liberado para o ato quando intervém, por parte da autoridade eclesiástica, uma determinação canônica ou jurídica, de conformidade com normas aprovadas pela suprema autoridade da Igreja[2].

No Decreto Christus Dominus tais princípios são reafirmados pelo mesmo Concílio, o qual, enquanto ensina que aos Bispos nas suas Dioceses compete nativamente todo o poder necessário para o exercício de seu múnus pastoral, ao mesmo tempo proclama nosso poder imediato sobre cada uma das Igrejas de nos reservarmos certas causas em vista do bem comum de todo o Povo do Senhor, poder esse próprio, por direito nativo, ao sucessor de Pedro[3].

Constituiu para nós, porém, imensa alegria o termos podido proclamar abertamente a dignidade dos Bispos, exaltar-lhes os múnus e reconhecer-lhes a autoridade, pois tudo isso deve, na realidade, ser considerado como vínculos de recíproca solicitude que nos unem com os veneráveis Irmãos. Ademais, por esses princípios assim postos em sua luz, a Igreja, unida concordemente para a solidez da unidade do corpo, brilha com tanto maior fulgor. Pois os Bispos, em união com o Sumo Pontífice, são os realizadores dos desígnios divinos e de Deus recebem a força e a orientação para mais eficazmente guardar e propor o sagrado depósito da doutrina cristã.

Como, entretanto, em breve deverão ser editadas normas para a execução dos decretos conciliares, as quais hão de cuidadosamente considerar tanto a doutrina há pouco exposta como os múnus e direitos dos Bispos, julgamos ser de nosso ofício completar, naquilo em que cabe, as normas contidas no Decreto Christus Dominus, bem como esclarecê-las na medida em que carecem de interpretação, para que se possam colher todos os frutos que delas se esperam.

Como é do conhecimento de todos, o Concílio Ecumênico, no intuito de oferecer o mais rapidamente possível os auxílios da religião aos homens mergulhados nos dia de hoje em um ritmo de vida mais movimentado, entre outras faculdades concedeu aos Bispos também esta: “de dispensar, em caso particular, de uma lei geral da Igreja os fiéis sobre os quais, segundo as normas do Direito, têm autoridade, sempre que julgarem que isto contribua para o bem espiritual deles, a não ser que tenha sido feita especial reserva pela Suprema Autoridade da Igreja”[4].

Pondo em execução esse princípio, a fim de que na Igreja latina haja uma só norma e maneira de agir, julgamos necessário especificar a relação das leis cujo ônus de dispensa deve ser reservado a nós, ou seja, as leis de cujo poder de dispensar a Santa Sé nunca abriu mão, ou das quais apenas raramente, por motivos de particular importância na vida humana, costumou dispensar.

Assim, depois de ouvidos os Dicastérios da Cúria Romana, as Comissões Pós-Conciliares, bem como os Secretariados, e após ter ponderado atentamente seus pareceres, de plena ciência e por força da nossa Suprema Autoridade Apostólica, declaramos e decretamos como válido para toda a Igreja latina, até a promulgação do novo Código, o que segue:

I – As leis que em sua prudência a Mãe Igreja, pelo Código de Direito Canônico, sancionou, e que por outros documentos posteriores estabeleceu e não revogou, declaramo-las santas e íntegras, a não ser o que o 2º Concílio do Vaticano as tenha abertamente ab-rogado ou as tenha em parte modificado ou derrogado.

II – Pelo que dispõe o Decreto Christus Dominus nº 8b, o cânon 81 do Código de Direito Canônico é apenas derrogado.

III – Por Bispos Diocesanos entendem-se não só os Bispos residenciais mas todos quantos em Direito a eles se equiparam[5]. Isso é exigido pela paridade de direitos entre os Bispos Diocesanos e os demais, bem como a comum razão de ser dos mesmos direitos, além da necessidade de se atender ao bem espiritual dos fiéis. Usufruem por isso dessa mesma faculdade de dispensar os Vigários e Prefeitos Apostólicos[6], os Administradores Apostólicos perpétuos[7], os Abades e Prelados nullius[8].

IV – Nos termos do cânon 80, entende-se por dispensa o afrouxamento da lei em um caso especial. A faculdade de dispensar, entretanto, compreende apenas as leis preceptivas ou proibitivas, não, porém, as constitutivas. Também não está incluída no conceito de dispensa a concessão de licença, de faculdade, de indulto ou de absolvição. De outra parte, como as leis relativas aos processos foram constituídas para a defesa de direitos e a dispensa das mesmas não atinge diretamente o bem dos fiéis, não são objeto da faculdade de que trata o Decreto Christus Dominus no nº 8b.

V – Sob o nome de lei geral da Igreja estão arroladas apenas as leis disciplinares estabelecidas pela Suprema Autoridade Eclesiástica e às quais estão obrigados em toda parte aqueles para os quais foram editadas, de acordo com o cânon 13, §1; nunca, porém, as leis divinas, naturais ou positivas, das quais tão somente o Pontífice Romano pode dispensar, por força de seu poder vicário, como o faz ao dispensar do matrimônio contraído e não consumado, de tudo o que se refere ao privilégio da fé, e ainda de outras leis.

VI – Por caso particular não só se entende cada fiel tomado singularmente, mas também várias pessoas singulares que formam uma comunidade em sentido estrito.

VII – Os fiéis em favor dos quais se exerce, nos termos do Direito, a autoridade de dispensar, são todos os que, em razão de domicílio[9], ou de outro título qualquer, estão sob a jurisdição do Bispo.

VIII – Conforme a norma do cânon 84, §1, para a concessão da dispensa requer-se causa justa e razoável, tendo-se também em conta a gravidade da lei de que se dispensa. Causa legítima de dispensa é o bem espiritual dos fiéis[10].

IX – Salvo as faculdades especialmente atribuídas aos Legados do Pontífice Romano e aos Ordinários, expressamente nos reservamos as dispensas que seguem:

1. Da obrigação do celibato, ou seja, da proibição que cerceia os diáconos e presbíteros de contrair matrimônio, ainda que legitimamente reconduzidos ou regressos ao estado leigo[11].

2. Da proibição de exercer a ordem do presbiterado, por parte dos casados que tenham sido promovidos à dita ordem sem a dispensa da Sé Apostólica.

3. Da proibição que pesa sobre os clérigos constituídos em ordem sacra:

a) De exercerem a medicina ou a cirurgia;

b) De assumirem cargos públicos que comportem exercício de jurisdição ou de administração laical;

c) De candidatar-se ou aceitar cargos de senador ou de deputado nos lugares onde exista proibição pontifícia;

d) De exercerem, por si ou por outros, négocios ou comércio, quer em proveito próprio, quer para o bem de terceiros.

4. Das leis gerais que atingem os religiosos como tais; não, porém, enquanto estes, nos termos do Direito comum e principalmente do Decreto Christus Dominus[12], estão sujeitos à jurisidição dos Ordinários locais, salvo sempre o direito do respectivo Superior e a disciplina religiosa. Das demais leis gerais, somente quando se trata de membros de religião clerical isenta.

5. Da obrigação de denunciar o sacerdote que tiver cometido o crime de solicitação na confissão, de que fala o cânon 904.

6. Da falta, para além de um ano, de idade por parte dos candidatos às ordem (ao examinar as causas que os levam a dispensar da falta de idade dos ordinandos, lembrem-se os Bispos da gravidade de quanto estabelece o Decreto Optatam Totius 12).

7. Do regime do curso de estudos de filosofia racional e de teologia, tanto no que respeita ao legítimo espaço de tempo quanto no que se refere às disciplinas primárias[13].

8. De todas as irregularidades levadas ao foro judicial.

9. Das irregularidades e impedimentos de receber as ordens, a saber:

a) Da irregularidade por defeito, em se tratando de filhos adulterinos ou sacrílegos, de corporalmente deformados, de epiléticos ou dementes;

b) Da irregularidade por delito público por parte de quantos consumaram a apostasia da fé, ou passaram à heresia ou cisma;

c) Da irregularidade por delito público dos que ousaram tentar matrimônio ou o celebraram civilmente apenas, quer estejam eles mesmos ligados por vínculo matrimonial ou por ordem sacra ou por votos religiosos, ainda que apenas simples ou temporários, quer o façam com mulher obrigada aos mesmos votos ou unida em matrimônio válido[14];

d) Da irregularidade por delito público ou oculto dos que cometeram homicídio voluntário ou provocaram aborto de feto humano, desde que tenha se seguido o efeito, assim como de quantos cooperaram[15];

e) Do impedimento por força do qual aos homens casados é vedado o acesso à ordem do presbiterado.

10. Quanto ao exercício de ordem já recebida: das irregularidades de que trata o cânon 985, 3º, mas apenas nos casos públicos; das que se indicam no nº 4, também em casos ocultos, a não ser que seja impossível o recurso à Sagrada Penitenciária. Neste caso, porém, quem recebeu a dispensa fica com o ônus de quanto antes recorrer à mesma Sagrada Penitenciária.

11. Do impedimento de idade para validamente contrair matrimônio, sempre que a falta de idade vá além de um ano.

12. Do impedimento matrimonial que tem origem no diaconato ou na ordem sagrada do presbiterado ou na profissão religiosa solene.

13. Do impedimento de crime de que trata o cânon 1075, nnº 2 e 3.

14. Do impedimento de consagüinidade em linha reta e em linha colateral, até o segundo grau misto com o primeiro.

15. Do impedimento de afinidade em linha reta.

16. Tratando-se de matrimônios mistos, de todos os impedimentos matrimoniais, sempre que não se puderem cumprir os requisitos estabelecidos no nº I da Instrução Matrimonii Sacramentum, editada pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aos 18 de março de 1966[16].

17. Da forma estabelecida pelo Direito para a validade do matrimônio.

18. Da lei que exige a renovação do consenso na agnatio in radice, sempre que:

a) Se requer dispensa de impedimento reservado à Sé Apostólica;

b) Se trata de impedimento de Direito natural ou divino que já tenha cessado;

c) Se trata de matrimônios mistos, quando não tiverem sido observadas as prescrições da dita Instrução da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, nº 1.

19. Da pena vindicativa estabelecida pelo Direito comum, quando declarada ou inflingida pela própria Sé Apostólica.

20. Do tempo estabelecido para o jejum eucarístico.

As normas sobre as faculdades de dispensar, atribuídas aos Bispos de acordo com o Decreto Christus Dominus, entrarão em vigor a partir de 15 de agosto do corrente ano.

Tudo quanto fica por nós estabelecido nesta Carta dada motu proprio ordenamos firme e ratificado, revogadas quaisquer disposições em contrário.

– Dado em Roma, junto a São Pedro, aos 15 dias do mês de junho de 1966, terceiro de nosso pontificado.

Paulus PP. VI.

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Referências:

[1] Cf. Const. Lumen Gentium 27.

[2] Cf. nota explicativa prévia da Const. Lumen Gentium 2.

[3] Cf. Decr. Christus Dominus 8a.

[4] Ibid. 8b.

[5] Ibid. 21.

[6] Cf. cân. 294, §1).

[7] Cf. cân. 315, §1).

[8] Cf. cân. 323, §1).

[9] Cf. cân. 94.

[10] Cf. Decreto Christus Dominus 8b.

[11] Cf. cân. 213, §2).

[12] Cf. Decreto Christus Dominus 33 a 35.

[13] Cf. Decreto Optatam Totius 12.

[14] Cf. cân. 985, 3º.

[15] Cf. cân. 985, 4º.

[16] Cf. AAS, 1966, pág. 237.

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