Em síntese: O diálogo entre luteranos e católicos iniciado em 1967 sobre a questão da justificaç?o está chegando a resultados muito positivos: em 1997 foi redigida uma Declaração por teólogos católicos e luteranos que admite acordo sobre pontos fundamentais, embora fiquem diferenças abertas, como as que se relacionam com o modo de entender o pecado original, a concupiscência, a colaboração ativa do homem com a graça. Tais questões serão consideradas em ulterior sessão de estudos.
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Justificação, em linguagem teológica, é o processo pelo qual alguém se torna justo ou amigo de Deus, passando do pecado para a graça. Vimos no artigo “Fala a História: as 95 Teses de Martinho Lutero”, que Lutero afirmou a justificação forense ou meramente jurídica: o pecado original não é apagado pelo Batismo, mas permanece indelevelmente no cristão, representado pela concupiscência desregrada (que é pecado, mesmo quando não há o consentimento do indivíduo). Em consequência, o cristão é justificado ou feito amigo de Deus unicamente porque Jesus Cristo o recobre com seu manto de justiça ou santidade; assim no seu íntimo o cristão é pecador, mas Deus o tem na conta de justo.
Esta doutrina, proferida numa fase de crise [espiritual] de Martinho Lutero, vai sendo revista em nossos dias por teólogos credenciados luteranos e católicos, os quais têm mostrado que o tema da justificação não é a barreira intransponível que deva continuar a separar católicos e luteranos.
As Etapas Percorridas
São três as etapas percorridas no diálogo entre a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial, que congrega 124 comunidades, ou seja, 90% dos luteranos:
a primeira, em 1967-1972, terminou com o Relatório de Malta, que declarou: “Atualmente está em vias de desenvolvimento um acordo de vasto alcance relativo ao sentido da justificação”;
a segunda, em 1980, concluiu-se com a Declaraç?o “Todos sob um só Cristo”, que afirmava em termos mais explícitos: “Emerge um amplo consentimento sobre a doutrina da justificação, que foi de importância decisiva para a Reforma”;
? a terceira, de 1994-1997, encerrou-se com uma longa Declaração, que compreende 44 artigos, os quais receberam a aprovação unânime da Federação Luterana Mundial aos 16/6/1998 e foram objeto de um pronunciamento oficial da Igreja Católica. Esta emitiu uma Nota a respeito, na qual afirma claramente que “um alto grau de acordo foi realizado… a justo título está dito que existe um consentimento sobre verdades fundamentais da doutrina da justificação”. Por isto já não têm aplicação as sentenças condenatórias proferidas de parte a parte no século XVI. Observa, porém, a Nota que não se pode dizer que há plena identidade de concepções sobre a justificação entre luteranos e católicos. Entre as diferenças está o modo de entender a cobiça desregrada e espontânea do ser humano: para os luteranos, ela é pecado; para os católicos, não, visto que todo pecado propriamente dito supõe consentimento consciente e deliberado da parte do pecador; a concupiscência desregrada é algo de involuntário e pré·deliberado; só se torna pecado se a pessoa a aceita consciente e voluntariamente.
Por isto deve realizar-se uma quarta etapa do diálogo católico-luterano, que estudará as diferenças restantes na concepção de justificação e considerará as ulteriores questões debatidas, como o relacionamento entre Palavra de Deus e Magistério da igreja, autoridade na Igreja, ministérios, sacramentos…
[Reconciliação do Vaticano com Lutero?]
O jornal “O Globo”, em sua edição de 27/07/1998, pág. 7, publicou o artigo de Leineide Duarte intitulado “A Reconciliação do Vaticano com Lutero”. A autora, que é protestante, usa de estilo jornalístico e insinua que a Igreja Católica reconhece a doutrina de Lutero o que não corresponde à verdade, como se depreende de quanto acaba de ser dito.
Afirma que a reforma luterana segue somente a Bíblia, ao passo que “o Catolicismo continua aceitando os dogmas e as tradições incorporadas através dos séculos”. Nisto há grave equívoco. Note-se que a Reforma luterana não segue somente a Bíblia, pois ela é incapaz de provar pela Bíblia que os livros sagrados são 66 e não 73 (com outras palavras: o catálogo bíblico não é definido pela própria Bíblia, mas pela Tradição oral, que lhe é anterior e que berçou a Bíblia). Mais: a Igreja Católica sabe, pela própria Escritura (cf. João 20,30s; 21,24), que muitos ditos e feitos de Jesus não foram consignados nos Evangelhos, mas ficaram na Tradição (transmissão) oral; por isto a Igreja Católica guarda a Tradição oral, não quaisquer tradições, mas a Tradição divino-apostólica ou aquela que vem de Cristo e dos Apóstolos (como seria o caso do Batismo de crianças, a veneração dos Santos e de suas imagens, a guarda do sétimo dia no domingo e não no sábado…). Na verdade, é impossível usar somente a Bíblia prescindindo da Palavra viva oral que lhe deu origem e que continua a ressoar através dos séculos no magistério da Igreja, ao qual Jesus prometeu sua assistência infalível (cf. Mateus 28,18-20; 16,17-19; João 14,26…).
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 437, págs. 463-464, out./1998.