Alguém me apontou o seguinte parágrafo, que tem a virtude de ser bastante representativo de uma espécie de pensamento exclusivista, bem ao estilo do ditado muçulmano “Basta o Corão”, misturado com aquele princípio soviético que condenava os dissidentes ao tratamento psiquiátrico nas clínicas da KGB:
– “Muitos [católicos tradicionais e assemelhados] chamariam de mal-educado àquele que renega a família ou a pátria em que nasceu, àquele que menospreza o que é seu às custas da sua admiração por outros povos presumidamente melhores: mais intelectuais, mais espirituais, mais ricos. Porém, ao contrário, entre eles mesmos não é mal-visto renegarem o próprio tempo; pelo contrário, é comum que o bom católico maldiga o século em que vive em comparação com os séculos passados, presumidamente melhores. Não sei se chamo isto de dupla moral ou incoerência; melhor talvez esquizofrenia. Uma das muitas; talvez uma das piores” (Extraído do blog “Esperando Nacer”).
Basicamente, este parágrafo – citado de um Blog que se diz católico e presume uma intelectualidade genial – ignora o princípio paulino de examinar tudo, retendo o que é bom e descartando o que é mau. Este grande princípio do Cristianismo é a imitação de Deus na criação primigênia em que o Espírito começa a construir a partir do caos do abismo até ficar satisfeito e verificar, ao final de cada dia de trabalho criativo, que “tudo é bom”.
Comentando sobre isso, um amigo me escreveu:
– “Creio que ninguém ignora o mal do passado, mas retém o bom e, por isso, o aprecia, enquanto que o mau é esquecido pois já não é responsável por apontá-lo, nem por tentar mudá-lo. Tampouco alguém ignora o que é bom presentemente, mas aponta o que é mau porque ainda é responsável por mudá-lo ou indicá-lo a quem pode fazê-lo, ou de advertir aos que podem ser prejudicados. E um dos males do tempo presente é a sua talante rupturista, característica típica da Modernidade e da Pós-Modernidade que rompe consigo mesma. Porém, esse combate não é entre o tempo presente e o tempo passado. Não! Ele se desenvolve no presente, entre os que não querem romper com as suas raízes e os que as detestam. Contudo, essa luta ocorre no presente e o tempo ’em que vivemos’ não é o mesmo para uns e para outros. Apesar do soberbo apoderamento que tentam os que pretendem ser ‘os homens de hoje’ ou ‘os jovens de hoje’, com que direito não consideram contemporâneos os que vivem contemporaneamente, considerando-os como ‘de ontem’?!?? Isso é violência semântica; é ainda uma triste característica daqueles que querem praticar o descarte da vida, da cultura, das leis, da economia”.
Com efeito, deixemos claro que este tempo em que vivemos é o dia que o Senhor criou para educar-nos nesta nova criação que também surge do caos abismal onde o bem e o mal encontram-se misturados, e que, tal como a criação material, restará ser plenamente boa para a satisfação do Criador. Como Jó aprendeu há quase 40 séculos, o poder de Deus que move as constelações não vai ser minimizado pela desordem do mal. Deus tem o tempo e a energia para mover tudo à sua ordem final e, diante disso, não há escapatória ou resistência que O frustre.
Criticar o século em que vivemos é, portanto, essencial, pois faz parte dessa discriminação positiva que fazemos imitando o Espírito que separa e ordena, retendo o que é valioso e útil, e descartando tudo o que é mau e inútil.
Contra a evidente razoabilidade do conselho paulino e do exemplo do Espírito Santo, sempre encontramos a atitude pedante do recém-chegado que julga que o seu tempo é superior ao do passado, apenas porque é presente, é progresso. Esse sintoma da Modernidade começa como uma pequenina verruga, com Locke, e se expande até se converter no câncer que consome o homem do nosso tempo. É Locke que inicia a espiral da história e que logo atinge sua fruição com Marx: o homem não caiu, não descendeu de uma Idade Dourada em que é restaurado por Deus, mas ascendeu do barro “ad astra per aspera” por sua própria força. Nesse contexto, o hoje sempre deve ser em tudo melhor do que o ontem, ainda que o vento do Espírito sopre em sentido contrário com toda a Sua majestosa intensidade. Para forçar essa visão de titãs que se erguem das profundezas da História até alcançar o homem moderno, deve-se necessariamente concluir que as constelações se movem por si mesmas e que o sentido último da sua existência reside na sua própria vontade. Nessa concepção de mundo, o homem fica sozinho e declara: “o meu espírito vai aonde eu quero”.
O curioso daquele parágrafo é a invocação da pátria, do sentido de pertença que é justamente o que o Modernismo tenta aniquilar com todas as suas forças. Cícero dizia: “Onde quer que esteja o bem, ali está a pátria” e esse “estar bem” não era meramente material. Malcolm Muggeridge dizia que o melhor governo é aquele que melhor permite o voo da alma, nada importando se é democracia, monarquia ou o que quer que seja. Estou seguro de que isso era o que os romanos pensavam pois para eles Roma elevava a condição dos bárbaros a uma ordem superior – a ordem romana – e lhes concedia a condição de cidadãos, que eles consideravam uma característica de nobreza muito superior à simples pertença a um “pagus”, que nada mais era do que um acidente do tempo e do espaço, já que devemos nascer de algum lado. A ideia de pátria é diferente do mero “pagus” e também do “lares”, o lugar amado onde o romano conservava os seus deuses ancestrais. A pátria para eles é Roma, pois é Roma quem eleva a condição dos homens, a “alma mater” que lhes deu missão e império.
Esse conceito de pátria desapareceu de cena com a concepção modernista de mundo. Para a grande maioria das pessoas, a pátria é nada mais nada menos que o lugar onde alguém nasceu e a nação política que o governa. Este conceito trouxe um grande problema para quem nasceu nas mutáveis fronteiras da Europa até o século XX!
Este novo conceito de pátria não somente é historicamente falso como também mesquinho, pois rouba do homem moderno a possibilidade de encontrar a sua “alma mater”. Caetano Veloso diz na canção “Língua”:
“A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria.”
Instintivamente, Veloso descobre que a pátria geográfica é insuficiente e quer mudá-la para um lugar onde o homem possa renascer e crescer. Chama a atenção o fato de o poeta fundamentar o seu conceito de pátria com a palavra, o idioma e a irmandade. O eco é surpreendentemente cristão.
Na pressa de destruir a paternidade, o Modernismo altera, furta, diminui o significado de pátria, reduzindo-o a um mero “pagus”. Isso é típico da loucura modernista que quer ver todos dentro de uma caixinha, completamente classificados, desinfetados e estéreis, todos marchando para Treblinka com um número tatuado no braço e o símbolo da sua desqualificação consturado na manga.
Nisso consiste também a sua própria esquizofrenia, o “doublethought” que George Orwell expõe em seu livro “1984”, porque a pátria modernista é um lugar onde o homem não tem como escapar sem ser condenado e, ao mesmo tempo, é algo que pode ser condenado à perda. Pela condição de apátrida, o homem moderno perde também esse miserável verniz de ser humano que o Modernismo lhe tinha deixado possuir.
Não é curioso que os soviéticos acrescentaram a todas essas desgraças o estigma da doença mental? A mesma coisa faz o autor daquele parágrafo que supõe a esquizofrenia daqueles que exercem o direito divino de escolher entre o bem e o mal. Se não me engano, foi André Gide quem disse: “escolher é como criar”. E como isso é certo: o Espírito, tal como o vento, vai onde quer, separando o mar da terra firme para que o homem possa caminhar até a terra prometida, para que possa escolher esse caminho que Deus põe à sua frente. São os inimigos de Deus que querem se adiantar sem serem convidados, rejeitando a condução de Deus e avançando como uma toupeira. É sobre esses inimigos que a água do mar se fecha. O Espírito escolheu outra vez e novamente separou o bom e o mau. O ontem da escravidão ficou para trás e o futuro se fez presente no mistério da escolha entre o bem e o mal, o que para nós, seres humanos, sempre ocorre hoje.
“Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos” (Salmo 118,24).
- Fonte: http://CasoRosendi.com
- Tradução: Carlos Martins Nabeto