Vida de cão

Minha mãe costumava dizer que é uma maldade uma criança não ter um cachorro, porque lidar com um animal não humano, mas carinhoso, ensina a lidar com o diferente.

Faz já um tempinho que não sou criança, mas continuo louco por cachorro. Hoje tenho dois: O Max, um pastor alemão com pedigree e tudo mais; e a Petúnia, uma vira-latas maravilhosa adotada no canil municipal. Ambos, por incrível que possa parecer, são muito caninos. A natureza canina, partilhada por ambos, é facilmente reconhecível. Eles têm uma percepção de mundo hierárquica, prestam mais atenção no que cheiram que no que veem, protegem o território deles, caçam animaizinhos, mostram apreço comendo na minha frente, abanam o rabo quando felizes e o escondem quando se sentem culpados… em suma, são cachorros, ótimos cachorros, que mais que merecem o amor que lhes damos.

E é justamente por adorar cachorros que fico com muita pena dos que são submetidos a um tratamento que não é conforme à natureza canina deles. Refiro-me àqueles que são usados como tela para a projeção de instintos maternais mal resolvidos, cujos donos os tentam tratar “como gente”.

Ora, isso é tão cruel como proibir um ser humano de usar roupas, mantê-lo no quintal, sem poder entrar na casa, e alimentá-lo com ração seca. É contrário à natureza deles.

Os pobres animaizinhos continuam sendo cachorros, mas não conseguem entender o que se quer deles. Tudo que um cachorro quer é saber o lugar dele na hierarquia – que é abaixo do do dono – e agradar aos superiores. Um cachorro tratado “como gente” alterna entre sentir-se superior ao dono – o que o faz morder ou latir, urinar onde o cheiro do dono está forte etc. – e sentir-se maltratado por não ser “respeitado” como chefe da matilha em que ele crê viver, comendo do prato do dono antes dele e tudo o mais que ele espera na sua visão hierárquica de mundo. Tamanha maldade é receita pronta para um cãozinho neurótico.

Um cachorro bem resolvido só quer agradar ao dono, que ele percebe como seu mestre e senhor, como o líder da matilha. Ele só precisa entender claramente o que o dono quer, para que possa agir de acordo, fazendo o que agrada ao dono e não fazendo o que desagrada. Só tendo um lugar claro no mundo e uma percepção clara do que se espera dele ele pode ser plenamente feliz, ser plenamente cachorro.

A não ser que se goste de ser tratado como um cachorro, é um ato de amor não tratar um cachorro “como gente”. Gente é gente, e cachorro é cachorro. E ele só será feliz sendo plenamente cachorro.

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