A leitura fundamentalista da Bíblia

A leitura fundamentalista da Bíblia é um entendimento literalista do texto bíblico, que considera sua forma final como a expressão verbatim da Palavra de Deus e a vê como clara, simples e sem ambigüidade. Normalmente recusa-se a usar o método histórico-crítico ou qualquer outro suposto método científico de interpretação e não leva em conta as origens históricas da Bíblia, nem o desenvolvimento de seu texto ou suas diversas formas literárias.

Essa maneira de ler a Bíblia originou-se, em última instância, de uma ênfase no sentido literal da Escritura na época da Reforma, em reação à interpretação alegórica do fim da Idade Média. Entretanto, no período ulterior ao Iluminismo, surge formalmente entre os protestantes como baluarte contra a exegese liberal do século XIX. O nome “fundamentalismo” deriva de um documento publicado pelo Congresso Bíblico Americano realizado em Niágara, Estado de Nova York, em 1895. Nele, protestantes conservadores, reagindo contra o darwinismo, o progresso científico na biologia e na geologia, e a interpretação liberal da Bíblia no século XIX, formularam uma declaração de cinco pontos sobre doutrinas a ser mantidas, mais tarde chamados de “cinco pontos do fundamentalismo”. Eles eram: a inerrância verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição corporal quando da segunda vinda de Cristo. Para assegurar esses pontos, insistia-se sobre “o que a Biblia diz” em um sentido literal de fato (a relação entre o “fundamentalismo islâmico” – fenômeno bastante noticiado hoje – e o fundamentalismo bíblico restringe-se ao nome).

A leitura fundamentalista da Biblia está certa ao insistir na inspiração da Bíblia, na inerrância da Palavra de Deus e outras verdades bíblicas dos “cinco pontos”. Mas seu jeito de apresentar essas verdades fundamenta-se em uma ideologia que não é bíblica, apesar das alegações de seus representantes, pois exige adesão firme a rígidas atitudes doutrinárias e uma leitura sem questionamento ou críticas da Bíblia como única fonte de ensinamento sobre a vida cristã e a salvação. Seu apelo é ao “senso comum”, porque o livro de Deus não pode conter erros, portanto nenhum erro histórico. De maneira intolerante, exerce uma influência nas pessoas que é quase a de um “culto” ou “seita” extremista.

Ao não levar em conta o caráter histórico da revelação bíblica, a leitura fundamentalista não admite que a Palavra de Deus inspirada tenha sido expressa na linguagem de autores humanos que podem ter tido capacidades extraordinárias ou limitadas e escreveram em diversas formas literárias. Conseqüentemente, tende a tratar o texto bíblico como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e considera o autor humano mero escriba que registrou a mensagem divina. Além disso, dá indevida ênfase à inerrância de detalhes, em especial os que supostamente dizem respeito a acontecimentos históricos ou questões científicas. Ignora os problemas apresentados pelos textos hebraicos, aramaicos e gregos originais e muitas vezes se prende a determinada tradução ou edição da Bíblia. Na interpretação dos Evangelhos, confunde o estágio final da tradição evangélica (o que os evangelistas escreveram, c. 65-95 d.C.) com seu estágio inicial (o que Jesus fez e disse, c. 1-33 d.C.). Conseqüentemente, ignora a maneira como as comunidades cristãs primitivas entenderam o impacto produzido por Jesus e sua mensagem. Por isso, esta leitura literalista da Bíblia tem pouco a ver com o sentido literal genuíno da Escritura [também analisado nesta obra].

Ligado a esta leitura literalista está o princípio Scriptura sola, “somente a Escritura”. Assim, a posição fundamentalista tende a desprezar a Tradição genuína da Biblia que se desenvolveu guiada pelo Espírito Santo dentro da comunidade de fé cristã. Em resultado, os fundamentalistas são antieclesiais, duvidando até mesmo dos credos antigos e das primeiras decisões conciliares.

Ao falar da leitura fundamentalista e suas conseqüências, a Comissão não faz rodeios. Considera-a “perigosa”, apesar da atração que exerce sobre as pessoas que procuram na Bíblia respostas prontas para problemas de vida aqui na terra. Fala sobre o “suicídio do pensamento”, muitas vezes associado ao fundamentalismo, porque este é, de fato, um convite para não pensar, não questionar o texto da Bíblia e, assim, infunde uma falsa certeza. O que muitas vezes ocorre em conseqüência de se deixar atrair por este modo de ler a Bíblia é que inevitavelmente muitas dessas pessoas têm um crescimento intelectual e, percebendo não ser possível ler a Bíblia desse modo, simplesmente abandonam todos os compromissos de fé.

Infelizmente, nos últimos tempos, os católicos vêm criando uma forma própria de leitura fundamentalista da Bíblia. Esta representa, por um lado, a volta a uma maneira pré-crítica de ler a Bíblia que fazia parte da herança católica pós-tridentina e da Contra-Reforma (isto é, antiprotestante). Por outro, é resultado da confusão que reina atualmente na interpretação católica da Bíblia, sobre a qual a Comissão fala na Introdução. A este respeito, os católicos, como outros, são vítimas da ilusão e se deixam afetar por correntes da busca contemporânea de uma garantia contra os problemas da vida. Por isso, estão se voltando para a Bíblia em busca de respostas rápidas e correndo os mesmos riscos.

Fonte: Livro “A Bíblia na Igreja”, ed. Loyola, pp. 65-69.

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