Até que ponto pode ser admitida a teoria do Evolucionismo?

– “Desejava um esclarecimento sobre a doutrina do transformismo (=evolucionismo). Até que ponto pode ser admitida?” (Drumond – Petrópolis-RJ).

O transformismo, sistema que explica a origem das espécies e, em particular, do homem por efeito de evolução da matéria, começou a ser propagado com grande voga no século passado. Encontrou então séria resistência por parte dos círculos católicos, resistência devida a duas razões principais:

a) Parecia contradizer à Sagrada Escritura. Em virtude de interpretação muito literal do texto de Gênesis 1-3, julgava-se que ensinava a criação do mundo em seis dias de 24 horas, aparecendo desde o início cada criatura no seu tipo definitivo;

b) Os fautores do evolucionismo, juntamente com suas doutrinas biológicas, ensinavam ou sugeriam uma filosofia materialista, negando ou silenciando indevidamente a Causa Primeira, Deus. Essa tendência materialista invadiu de modo geral todos os setores do saber no século XIX: sociologia (marxismo), psicologia (freudismo), história da civilização (o homem “pré-lógico” de Lévy-Bruhl), a etnologia (pretensos povos sem religião), etc. Em consequência, pareciam indissoluvelmente unidos, de um lado, o evolucionismo (darwinismo) e o espírito antirreligioso; do outro lado, o fixismo e a crença em Deus.

Contudo, no início do século XX foram-se desfazendo as apreensões dos católicos:

a) Novas descobertas de paleontologia e arqueologia no Oriente (Palestina, Mesopotâmia) e no Egito possibilitaram um conhecimento mais adequado da mentalidade e dos modos de expressão dos povos antigos; os exegetas perceberam então o sentido figurado de muitos dizeres da Bíblia que haviam sido até então entendidos ao pé da letra. Verificaram, com mais clareza do que antes, que a Escritura nada quer ensinar no terreno das ciências naturais, mas apenas se serve da linguagem dos antigos semitas (o Espírito Santo não extinguia o cabedal de cultura humana dos hagiógrafos) para exprimir o significado religioso que o mundo e o homem têm. Estava assim removida a ideia de que a Sagrada Escritura incute o fixismo biológico e, por isto, se opõe ao evolucionismo;

b) Uma reflexão serena evidenciou outrossim que o transformismo é perfeitamente separável do materialismo e conciliável com a crença em Deus Criador do mundo e Providente.

Diante disto, a Igreja (mormente na encíclica “Humani generis” de 1950) definiu a posição católica frente ao problema da origem do homem nos seguintes termos:

Distinga-se entre corpo e alma:

a) O corpo do primeiro homem pode muito bem ter provindo da matéria animada (antropoide, macaco). Cabe à ciência decidir a questão de acordo com o resultado das suas investigações paleontológicas, biológicas, etc. Vão seria em nome da religião afirmar que o homem foi certamente criado do barro, pois o barro de que fala Gênesis 2,7 é condicionado pela imagem do oleiro que a Bíblia emprega para designar a Deus, consoante um proceder literário muito usual na antiguidade: o oleiro, artífice que costuma dominar com admirável habilidade a matéria, era geralmente tido entre os orientais como símbolo da Divindade sábia e poderosa, da qual o homem depende. A fé, neste campo de estudos, apenas ensina que Deus é o Autor da matéria, tendo-a tirado do nada; pode, porém, tê-la produzido em estado caótico, dando-lhe as leis de sua evolução e regendo este desenvolvimento até que tenha atingido o grau de complexidade característico do organismo humano.

b) Quanto à alma racional, princípio espiritual de vida, é impossível que provenha da matéria em evolução, pois o espírito transcende a potencialidade da matéria; não pode estar virtualmente contido nesta, pois é capaz de conceber noções abstratas, imateriais (por exemplo, o que é que faz que Pedro, Paulo e Maria, embora impressionem diversamente os sentidos do observador, sejam igualmente seres humanos); o espírito chega a apreender o Infinito, ao passo que o corpo, por seus sentidos, só atinge o finito e dimensional. Por conseguinte, suposto o processo evolutivo da matéria, dir-se-á que, quando o corpo do antropoide atingiu as condições de complexidade necessárias para ser sede da vida intelectiva ou humana, Deus criou e lhe infundiu uma alma espiritual. Note-se, porém, que a infusão da alma humana não é fenômeno que deixe vestígios nos estrados geológicos; as ciências empíricas, portanto, nunca poderão nem comprovar nem refutar esta doutrina da sã filosofia e da Revelação cristã.

c) Quanto à primeira mulher, não é, segundo a fé, necessário que tenha tido origem diferente da do varão; pode-se muito bem admitir para os corpos do primeiro homem e da primeira mulher o mesmo processo evolutivo. A formação de Eva a partir de uma costela de Adão, descrita em Gênesis 2,21-22, pode ser interpretada em sentido meramente metafórico. O autor sagrado teria usado de tal figura para inculcar que a mulher possui a mesma natureza e dignidade que seu marido; “ser carne da carne e osso dos ossos de alguém” (cf. Gênesis 2,23) significava, à guisa de provérbio, entre os orientais, “ser íntimo amigo ou parente” (cf. Gênesis 29,14; 37,27; Juízes 9,2-3; 2Samuel 5,1; 1Crônicas 11,1). Ora, justamente Adão aplicou esta expressão a Eva depois de ter verificado que nenhum animal bruto era condigno dele; para preparar e corroborar a afirmação de Adão, o autor sagrado pode ter descrito a formação de Eva a partir da carne e dos ossos do varão, sem pretender atribuir sentido literal ao episódio. Em tal caso, concluir-se-ia do texto bíblico apenas que a mulher não é instrumento servil do homem, mas reflete também ela a imagem e semelhança do Criador.

d) O gênero humano de que nos fala a história é procedente de um só casal — Adão e Eva. A fé professa assim o monogenismo, rejeitando a hipótese poligenista (muitos casais a dar origem à atual estirpe humana). Esta posição é decorrente da doutrina do pecado original: todo homem nasce com a natureza tendente para o mal, porque herda as consequências de uma culpa cometida pelo primeiro pai; já que a congênita desordem moral é comum a todos os homens, todos são igualmente filhos de Adão. O dogma da Redenção corrobora esta doutrina: São Paulo (Romanos 5,18-19; 1Coríntios 15,21-22.45) fala de dois homens responsáveis pela história universal, Adão e Cristo, sendo o primeiro o introdutor da morte no mundo e, o segundo, o Princípio da ressurreição; ora, assim como Cristo foi um indivíduo, Adão, que lhe faz frente, deve ter sido também um indivíduo, não uma coletividade.

A ciência não contradiz ao monogenismo. Ela ensina que toda “espécie”, seja animal, seja vegetal, possui um “berço” donde se espalha pela terra inteira, em vez de se originar simultaneamente em diversas partes do globo. A fé acrescenta a esta conclusão que no “berço” comum da humanidade só um casal foi elevado ao estado sobrenatural, paradisíaco, e viveu o drama do pecado de Adão e Eva; pode ter havido outros casais de autênticos homens ao lado deste; contudo não entraram na catástrofe do paraíso terrestre; extinguiram-se (caso tenham existido) sem se mesclar com o gênero humano hoje existente.

A Bíblia, de resto, não indica quando viveu Adão; não se lhe atribua uma cronologia de 4000 ou 6000 anos, pois as cifras apresentadas em Gênesis 3-11 têm o significado meramente convencional e simbólico que elas tinham na historiografia dos Patriarcas de qualquer dos povos antigos.

A existência das raças humanas não é argumento contrário ao monogenismo. Basta observar o seguinte: se o cão, o lobo e a raposa, que não são susceptíveis de cópula entre si, provêm de um só tipo vivente, ponto de partida comum, como ensinam os zoólogos, porque não poderiam cinco ou mais raças humanas perfeitamente fecundas entre si provir de um casal originário? As diferenças raciais se explicam pela ação de fatores diversos, que lentamente agiram sobre o tipo humano: adaptação ao ambiente de vida, mutacionismo (ou seja, mudanças bruscas e imprevisíveis no genótipo, que acarretam modificações estáveis na configuração somática e psíquica dos descendentes), regressão ou degenerescência etc.; em particular, observe-se que as mutações se efetuam geralmente em “indivíduos raros”, ou seja, em um ou poucos casais da mesma geração.

Em conclusão: a fé católica nada tem a opor a qualquer das teorias evolucionistas que salvaguardem os dois seguintes pontos:

a) a matéria primitiva foi produzida do nada e por Deus dotada das suas leis de evolução;

b) o espírito ou a alma do homem não se origina por evolução, mas é diretamente criado pelo Soberano Senhor.

Veja:

– Estêvão Bettencourt, “Ciência e Fé na História dos Primórdios”, Rio de Janeiro: Agir, 3ª ed., 1957.
– P. Leonardi, “Origem dos Seres Vivos”, em “Heresias do nosso tempo”, por um grupo de filósofos e cientistas italianos.

 

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 4:1957 – ago/1957.

 

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