João Paulo II – O Cristo na Terra

Um fato acontecido na semana do falecimento do Papa João Paulo II, quando alguns leitores da revista Veja reclamaram da sua capa, que mostrava um momento em que este Papa expõe sua dor ao tentar se pronunciar, me deixou seriamente estarrecido. Parece que o mundo não tolera mais a imagem do sofrimento, ou pelo menos tentar fugir dela. Pensando na ótica cristã é um grande e grave retrocesso. Na época de Jesus a palavra mal e sofrimento tinham um mesmo significado, ou seja, o sofrimento era visto como um mal e o portador deste mal só poderia ser um grande pecador. É por isso que os cegos, coxos e leprosos eram marginalizados, porque dentro daquele contexto, seriam pecadores e merecedores daquele sofrimento. Maior o sofrimento, maior o mal, maior o pecador, essa era a lógica. Com seu exemplo, Cristo revogou este vocabulário, mostrou que o sofrimento não é necessariamente um mal, e que pelo contrário, se aceito com amor pode se tornar um verdadeiro bem, instrumento de vida e de luz. O sofrimento aceito com amor eleva e fortalece seu portador, se este consegue unir seu dessabor à cruz de Cristo. Esta revolução é que fez os mártires cristãos, como dizia o antigo ditado romano ?o martírio é a semente dos cristãos?; a partir de agora a dor tem caráter transcendente.

 

A vida deste santo homem, o Papa João Paulo II, integralmente testemunhado pelo sentido verdadeiro e original do que é ser cristão comoveu o mundo. Comoveu o mundo porque mostrou não somente ser verdade que o sofrimento não é sinônimo de infelicidade, mas como a dor aceita por amor confere sentido a vida e de alguma forma, a toda a humanidade. Comoveu o mundo porque mostrou ser verdade as palavras de São Paulo ,?não sou mais eu quem vivo, mas é Cristo quem vive em mim?. E alguém tem alguma dúvida de que João Paulo II foi muito mais Jesus Cristo do que Karol Woityla em toda a sua vida? Assim como muitos desviaram a vista do rosto dolorido de João Paulo II, assim também desviaram a vista aqueles que passavam e viam Cristo pregado na cruz. “A cruz se transforma também em símbolo de esperança. De instrumento de castigo, passa a ser imagem de vida nova, de um mundo novo” dizia.

 

Como Cristo na cruz, transpassado pela lança, também João Paulo II trazia em seu corpo as marcas das balas que também atravessaram seu corpo no atentado da praça de São Pedro em 1981, e assim como Jesus perdou o seus assassinos este mesmo papa perdoa Ali Agca, o turco assassino, pessoalmente após se recuperar daquela quase tragédia. Assim como o mundo foi dividido em antes e depois de Cristo, agora pode ser dividido como antes e depois do Papa, tamanha a sua intervenção na história da humanidade, especialmente durante a Guerra Fria na ameaça de uma guerra nuclear, ao evitar a guerra entre Argentina e Chile, ao ajudar na queda do comunismo, ao adiar a guerra do Afeganistão quando anunciou na semana do início dos ataques americanos uma visita corajosa àquela terra. Assim como Jesus salvou Barrabás, João Paulo II salvou mais de 300 prisioneiros políticos do sistema comunista de Fidel Castro, que os libertou após as constantes insistências deste papa.

 

Quem dirá que a antiga profecia sobre Cristo, ?Assim o admirarão muitos povos: os reis permanecerão mudos diante dele? (Is. 52,15) não se aplicou literalmente a este Papa? Este Papa desafiou chefes de Estado a lutarem por uma cultura de vida nas Nações Unidas, apontou o dedo para George Bush e chamou Bill Clinton de assassino por defender a livre matança de bebês pelo aborto naquele país: ?se a criança por nascer tem negado o direito a vida, será cada vez mais difícil reconhecer sem discriminações o mesmo direito a todos os seres humanos?. Este papa jamais teve medo de dizer a verdade, mesmo que esta verdade incomodasse a muitos e lhe conferisse perigo de morte, assim como de fato ficou comprovado quando a própria KGB, serviço secreto soviético, encomendou seu assassinato. ?Abram as portas todas as nações para Cristo, um a um? disse João Paulo II no início de seu pontificado. E assim o fizeram em todas as 135 nações por ele visitadas. Generais tremeram, ditadores se humilharam, presidentes se curvaram ante este príncipe dos apóstolos que nada temia, assim como os antigos apóstolos, que faziam os demônios se curvarem ante o nome de Cristo.

 

Como Cristo, este Papa nunca se negou a ninguém. Como uma vela, se consumiu totalmente e até o fim, dando seu exemplo para iluminar nosso mundo perdido na escuridão de valores e de sentido. ?Se Cristo tivesse descido da cruz também eu teria o direto de renunciar?, dizia ante os rumores de uma possível renúncia pela sua saúde. Segurava sua cruz com intensidade, e nunca a soltou. Mesmo com todos os seus problemas de saúde, dormia apenas 4 horas por noite, passava outras 7 rezando e então, quando se podia contemplar os anjos em seus olhos, partia ao encontro dos homens. Durante suas noites no Vaticano, gostava de sair às escondidas para se encontrar com os pobres de Roma. Não é a toa que nos seus últimos momentos, agonizava ?como um santo? nas palavras do Cardeal Sodano, sofria de forma  ?extraordinariamente serena? nas palavras de Joaquim Navarro Valls. É claro, o estranho seria se não fosse assim, se fujisse da dor. No fim de sua vida ?tudo estava consumado?, não houve nada por fazer, nenhuma fenda, nenhum assunto, nenhuma pendência, sua missão estava completa. Quem dera todos os homens chegassem ao fim de suas vidas dessa maneira, sereno, completo, plenificado, ?tocando e vendo o Senhor? como disse um de seus Cardeais. Num mundo que teme a dor, que bane o sofrimento, que foge da morte, que eleva a ?qualidade de vida? como um novo ídolo, este Papa tem muito a nos ensinar.

 

Este homem reancedeu no fundo dos corações da humanidade esquecida de Deus, a chama do divino e a grandeza da fé: “a pessoa humana tem uma necessidade que é ainda mais profunda, uma fome que é maior que aquela que o pão pode saciar ?é a fome que possui o coração humano da imensidade de Deus”. Se levarmos a sério o pensamento de Santa Catarina de Siena, ?se fordes tudo o que haveis de ser, ateareis fogo ao mundo inteiro? teremos certeza de que o Papa João Paulo II foi tudo o que ele tinha de ser e foi ainda mais um pouco. Ele ateou fogo ao mundo todo, nas almas dos homens de boa vontade que abriram seus corações e lançaram fora seus preconceitos para ouvir seus ensinamentos com humildade. Não é a toa que do início ao fim do seu pontificado o número de católicos no mundo dobrou, de 500 milhões para mais de 1 bilhão de fiéis. Deu orgulho e coragem aos católicos que sofrem no mundo todo, nos países orientais com o martírio, e nos países ocidentais com a perseguição da mídia e da imprensa cada vez mais tendenciosa para o intelectualismo anti-católico.

 

O mundo parou e parece dizer que vai ficar pior sem a presença do Papa João Paulo II. Diante da emoção das multidões de todo o mundo, não há quem fique indiferente a este momento em que a Terra toca o Céu nitidamente, alí no Vaticano. Que celebridade, personalidade, esportista ou político poderia causar tanto luto quanto este Peregrino da Paz? O mundo parou porque quando este homem morreu, todos nós também morremos um pouco assim como em vida, vivificou a todos. E assim como na morte de Cristo, o dia se fez noite e espessas trevas encobriram a terra segundo o relato do evangelista, assim também no dia do enterro do Papa, um eclipse solar escureceu o dia e mostrou que a própria natureza parecia estar de luto.

 

Os fiéis passaram mais de 14 horas para dar o seu último adeus, o infiéis o chamaram de ?conservador?. De fato, se existe alguém que soube conservar o sentido original do que é ser cristão, do que é ser católico, que soube conservar o tesouro da fé genuína que Cristo passou para seus apóstolos e esses a todas as gerações de bispos da Igreja até agora, não houve homem mais conservador. E graças a esse conservar, podemos crer sem dúvida, que a morte, com Cristo, já não tem mais a palavra final, não é senão uma mera passagem. E este grande homem certamente vive, e vive para sempre no céu que sempre pregou e que viveu já aqui nesta terra, porque conservou a fé no que é genuíno, no que é nobre, no que é bom e verdadeiro até o fim. Até as últimas consequências.

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